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10/11/2023

O condutor de rebanhos

 


Um certo pastor de ovelhas foi imortalizado pelo grego Esopo, que contou como ele se divertia a enganar os vizinhos, gritando “Lobo!” sem justificação. De cada vez que gritava, os outros pastores corriam a acudir, em vão. Tantas vezes os enganou que, um dia, vieram os lobos, ele gritou “Lobo"!, mas ninguém o foi ajudar.

Ressabiado com o desaire, vendeu terras e rebanho e foi viver para uma vila distante. Instalou-se num casarão da rua principal — a Alameda Atlântica —, rodeado por outras casas de gente bem instalada na vida, mas com as traseiras para uma rua de casebres humildes — a Rua Terceira.

Neo — assim se chamava o anónimo pastor de Esopo — adotou ali o nome Búfalo Neo, e foi vivendo uma existência tão ou mais monótona do que a que vivia na serra, mas depressa embirrou com um orgulhoso vizinho das traseiras que cultivava tabaco e açúcar. O antigo pastor começou a espalhar rumores de que este vizinho, chamado Habano, tinha amigos arruaceiros de Leste e pretendia trazê-los para as suas plantações. Para manter o bom ambiente da vila, dizia Búfalo, o melhor era que os cidadãos honrados da rua mais nobre se unissem e obrigassem o suburbano a afastar os amigos, para não causarem mau ambiente.

Na verdade, os vizinhos, sem conhecerem o mau-caráter de Búfalo Neo, apoiaram as medidas propostas pelo distinto conterrâneo que denunciara as companhias de Habano. Contra vontade, este desistiu da ajuda de Leste, mas, à cautela, os notáveis da vila decidiram boicotar a sua atividade produtiva. A partir de então, o cultivador não poderia abastecer-se no comércio local, fosse qual fosse o ramo. Nem vender. Esperava-se que o garrote deste embargo económico o levasse a abandonar a vila, e a comunidade pudesse regressar a uma vida tranquila. O desgraçado cultivador gritava “Maldito seja Búfalo”, mas de nada lhe servia.

Passado algum tempo, Búfalo embirrou com outro vizinho. Queixou-se ele às autoridades da vila, de que então já fazia parte, que um tal Golias, arruaceiro contumaz, nas suas palavras, causava muitos incómodos a um outro de boa índole e seu amigo, chamado Moisés, que entretanto chegara à região, mas pretendia instalar-se na propriedade de Golias, com o argumento de que em tempos ali vivera. Búfalo cedo gostou dele, sobretudo porque entrevia a possibilidade de caçar naqueles terrenos sem autorização. Daí a defender as suas pretensões foi um passo. Moisés começara por aceitar ficar num descampado, mas, aos poucos, sentindo que Búfalo o apoiava incondicionalmente, foi ocupando o terreno de Golias, e agora já dizia que a propriedade era toda sua.

A princípio, o conselho local de homens sensatos não apoiou tão estranha reivindicação, mas Búfalo, que vinha a ganhar poder nos negócios da terra (tinha até criado uma organização de cariz mafioso de ajuda musculada mútua chamada Organização para o Tratamento Adequado de Nefastos), foi muito incisivo nas denúncias das reações agressivas de Golias e acabou por levar o seu intento avante. Já não estava em causa a maior ou menor razão de Golias, mas a sua fama de brigão. Decidiu-se manter uma aparente imparcialidade, mas, de cada vez que Golias levantava a voz a reclamar os seus direitos de propriedade, o usurpador agredia-o e clamava por ajuda das autoridades, que emitiam sempre o mesmo discurso: «Moisés tem o direito de se defender». Aos poucos, Moisés, o invasor, foi ficando com cada vez mais propriedade do expropriado Golias, que se viu confinado a um redil e dependente da caridade pública. Só lhe restava bradar “Maldito seja Búfalo”.

Passado mais algum tempo, Búfalo voltou a tomar de ponta um vizinho — Eufrates —, que vivia num terreno barrento, com grandes dificuldades. Não se sabe bem se lhe cobiçou a olaria que administrava, ou se, simplesmente, não gostou da sua postura altiva, o certo é que passou a acusá-lo das maiores infâmias contra os próprios familiares, afirmando que escondia estricnina e outras drogas de destruição maciça com que pretendia envenenar os parentes.

O Grão Conselho, agora já presidido por Búfalo, em vista da gravidade das acusações, resolveu intervir de forma decidida e decisiva, e não de formas mais ou menos mitigadas como anteriormente. Enviou os bombeiros à procura dos venenos. Em vista dos resultados negativos, enviou uma brigada da Proteção Civil, que também veio de mãos a abanar. Já bastante irritado, o Conselho enviou uma força de intervenção da Polícia, com ordens para prender o assassino em potência e encontrar a todo o custo os tão perigosos instrumentos de morte. Os militares avançaram destruindo tudo à passagem e, na confusão criada, o virtual envenenador acabou por ser morto.

Para grande frustração do Conselho, no entanto, não foram encontrados os venenos temíveis. «Eles estão lá», afiançava Búfalo, que comandara pessoalmente a operação. Passaram dias, passaram meses, mas ninguém encontrou qualquer veneno. Os familiares de Eufrates clamavam “Maldito seja Búfalo”, mas, na falta do patriarca, passaram a viver na pobreza, acusando, à boca-cheia, o poderoso ex-pastor de ter inventado tudo para ficar com a olaria, que, em vista das dificuldades, a família teve de vender.

O resultado dramático desta operação de justiça preventiva maliciosa desencadeada por Búfalo Neo suscitou grande constrangimento em todos aqueles que tinham acreditado na veemência das acusações e que, piamente convencidos, tinham apoiado a operação punitiva que veio, ela sim, a revelar-se assassina. À socapa, passaram a referir-se-lhe como Neo Con.

Búfalo pareceu acalmar por algum tempo, mas foi sol de pouca dura. Certo dia, saiu-se com uma nova acusação. Segundo ele, Ming, um outro empresário que tinha há muito uma confeitaria no fim da Alameda do Oriente, estaria a roubar-lhe as receitas dos bolinhos da sorte, pelo que apelava a toda a população para que boicotasse a produção de doçaria do gatuno.

Foi a gota de água que faltava. O povo começou a murmurar, as figuras gradas da terra, escaldadas com o escândalo de Eufrates, e que não queriam conflitos com o poderoso empresário confeiteiro, abriu uma investigação. Enviou uma delegação à serra onde Neo fora pastor, que trouxe a notícia do caso das mentiras que, compulsivamente, lançara e onde era conhecido por Neo Trafulha.

O Grão Conselho reuniu-se de emergência e discutiu o problema de Neo Con, já como caso patológico. Já lhe chamavam Silly Con. Em vista das provas demolidoras, o Conselho percebeu que, para haver concórdia na terra, o intriguista tinha de ser afastado. Depois, mandou emendar a injustiça feita ao cultivador Habano, voltando ele a poder vender os seus produtos na vila; delimitou e atribuiu, por caridade, um bocado de terreno ao alucinado Moisés, apesar do seu comportamento desumano, devolvendo ao injustiçado Golias a maior parte da sua propriedade; obrigou o vigarista a devolver a olaria aos familiares do infortunado Eufrates e a indemnizá-los pelas agressões sofridas, e instituiu o livre comércio em toda a vila, quer de doçaria, quer de quaisquer outros produtos.

Búfalo Neo Trafulha Silly Con, em vista da grave derrota sofrida — em perda de poder, de prestígio, de credibilidade e até de grande parte da fortuna —, achou melhor voltar à antiga atividade de pastor. O seu amigo Moisés, olhado com asco por todos, preferiu ir com ele. “Talvez aprendam humildade com as ovelhas e moderação com o silêncio edificante das serranias”, comentava-se, mas, pode alguém ser quem não é?

Sabe-se, sim, que o vocábulo “trafulha” passou, desde então, a ter o sentido pejorativo que hoje conhecemos e começou a chamar-se Dia das Mentiras ao dia em que Trafulha acusou Eufrates, injustificadamente.

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Este é um final edificante, apropriado para terminar fábulas e nos deixar enternecidos com “a justiça que, apesar de tudo, reina no mundo”, mas, na verdade, o final é ficcional e as óbvias semelhanças na história com países, pessoas, acontecimentos políticos, militares ou geo-estratégicos não tiveram um final minimamente parecido com este, à data desta publicação.

Joaquim Bispo

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Uma versão desta fábula foi selecionada em concurso literário para integrar a coletânea de contos “Esopo Revisitado”, da Editora Olympia, Brasil, 2019.

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Imagem:

Ilustração de “O jovem pastor e o lobo”, fábula de Esopo.

Ilustrador não identificado.

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