10/12/2020

O Paladino

 


O rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na floresta de Gamywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme “doze-hastes”, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:

A esta distância, homem algum lhe consegue acertar!

Que prémio me dareis, se o atingir? ─ inquire Guloz, sobranceiro.

O rei semicerra os olhos e avalia a distância: “Impossível!”

O que me pedirdes! ─ declara o rei, categórico.

O senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo. Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal. Surpreendentemente, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.

Levanta-se um coro de regozijo na comitiva. O cavaleiro Potranc está apreensivo. O rei grita:

Hurrah! Que bela peça vamos ter hoje para a ceia. Felicitações, sire! Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei não volta atrás!

Guloz olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.

Quero a rainha Florence.

Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos das espadas. A rainha intervém:

Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafio justo.

Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.

Potranc diz ao rei:

Vós, pela vossa palavra, nada podeis fazer, mas eu, que não aceito a perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.

O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover. Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstáculo, sãos e salvos.

Logo à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desembainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se desequilibra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.

Potranc não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma bifurcação. Há sinais de cascos em ambos os caminhos. Vê um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:

Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu.

Todos os caminhos vão dar ao Senhor, mas o do evangelho é mais direto que o da epístola ─ responde o santo homem.

Deixai-vos de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes ─ riposta Potranc de mau humor. ─ Indicai-mo sem demora!

À vossa direita, sire ─ diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.

Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tomba e morre. O cavaleiro prossegue a pé.

Num troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com um enorme javali. O animal, ou porque está a defender o território ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc, surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga, mas o cavaleiro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de crânio aberto.

Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça no seu carro puxado por uma mula.

Para onde vais, almocreve? ─ indaga o cavaleiro apeado.

Para o castelo do rei Justin. Se quiserdes, posso levar-vos ─ responde o carregador, solícito.

Potranc não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.

Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita. Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio, pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria, arremete de espada em riste contra os sequazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz assoma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho.

Minha senhora, morrerei, se tal for preciso, para vos salvar ─ grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.

Guloz, com um gesto, manda parar o combate.

Que quereis daqui, cavaleiro?

A minha senhora, que vós, maliciosamente, usurpastes ─ responde Potranc enraivecido.

Vistes bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal.

Aposta, sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não tendes nobreza.

Já que quereis tanto bem à vossa senhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espada que deixei cair ao Lago do visco ─ enumera Guloz com um sorriso furtivo.

Não vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas ─ riposta Potranc. ─ Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a vossa própria palavra e criásseis outros obstáculos. Vós sois matreiro e cobarde!

O cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços, quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:

Guloz tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc, como seu paladino, tem direito a procurar contestar essa condição que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?

Ambos os contendores assentem. Na manhã seguinte, à hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se aglomeram junto ao palanque real, alinham-se os antagonistas. Justin dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O primeiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e recomeçam o combate.

Neste reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não se aproveita da vantagem. Desmonta e prossegue o combate a pé. Guloz já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantêm-se silenciosos, mas as damas não conseguem evitar um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o defensor da rainha Florence.

De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abundantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A rainha Florence será confiada à proteção de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do seu reino.

Após uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo, nobremente ajaezados. Embrenham-se na floresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.

De repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não tenha segredos para a rainha, desta vez, não consegue dominá-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cavalo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.

Daí a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por um forno de carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estômago com maçãs silvestres e descansam, como podem ─ Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.

Na manhã seguinte, quando Potranc acorda, fica amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também e percebe o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manhã.

Bem conhece ela o entusiasmo que o cavaleiro põe nos poemas e louvores que canta à sua beleza e a outros atributos e talentos, nos alegres e prazerosos serões do castelo, e lhe valem, não sem fundamento, o epíteto maldoso de “lançarote”. Sim, é certo que, muitas vezes, vai visitar o leito de Milore, mas com a alma deleitada pelas palavras e as canções de Potranc. Não será o rei que reclamará por esse acréscimo de languidez.

Eis agora junto a si, de olhar apaixonado e depois de se ter sujeitado a tantos perigos para a salvar, o mesmo generoso e bravo jovem que tantas vezes a faz sonhar nos jogos de amor cortês. Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mutuamente afeiçoadas. Uma enorme ternura invade Florence que quase desfalece. Os corações abandonam-se à vontade do destino. Nenhum tenta resistir à atração.

Os lábios encontram-se e os corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo há muito sublimado. As mãos libertam roupas e tateiam geografias ocultas. Potranc vislumbra finalmente o mármore e a seda que tantas vezes adivinha no corpo da sua senhora, quando nele cogita. Florence entrevê nos peitorais do cavaleiro a potência do Arcanjo Miguel. O encontro da seda e do couro não pode ser dito por palavras; o purgatório deve ser assim; o advento do paraíso é uma urgência.

Mas o corpo de Potranc, tão lesto e magnânimo quando, na solidão do seu leito de cavaleiro, fantasia com a rainha, mostra-se agora preguiçoso e refratário. A iminência de receber, sem resistências nem hesitações, a rendição da fortaleza, que sempre lhe parecera inexpugnável, desarma-o. A retirada é sombria e embaraçosa.

Florence cicia um «Não faz mal, meu paladino!». Acrescenta no mesmo tom «Sei agora que me respeitais tanto como me amais», enquanto lhe acaricia o rosto, onde uma névoa de tristeza se instalou. Ficam muito tempo abraçados, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris. Aninhado nos braços da sua senhora, Potranc adormece sobre o seu seio.

Nesse momento, o cavalo de Potranc relincha e ambos percebem que é tempo de regressar aos domínios do castelo, onde, desde os servos da gleba ao castelão, todos os esperam inquietos, sem saberem que Potranc já resgatou galhardamente a rainha e a traz de volta sã e salva.

Cavalgando com a sua senhora à garupa, Potranc é a imagem imponente do paladino intrépido e abnegado.


Joaquim Bispo

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Imagem: Henry J. Ford, Lancelot traz Guenevere a Arthur, 1902.

Ilustração de O Livro de Romance, de Andrew Lang, de 1902.

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10/11/2020

Agenda encontrada numa ribanceira da Serra do Açor

 

Dia 10/8/16: Mais uma vez — como todos os verões — vim passar duas ou três semanas na minha terra, esta lindíssima vila de xisto do vale do Alva. Como é bom rever e reviver as paredes de setenta centímetros da minha casa rústica e a sua frescura interior. E espero encontrar os amigos e os familiares, mesmo os emigrados, que “obrigatoriamente” aparecem no verão. Todos querem aproveitar a reunião inusitada para animar a vila com festas, encontros e comezainas.

Como desde há três anos, vou a um almoço dos nascidos em 1944, à semelhança do que fazem os nascidos noutros anos. O almoço é o pretexto para o encontro e a partilha da alegria de estar (ainda) vivo. Reveem-se os conhecidos, reconhecem-se as parecenças antigas por baixo das rugas modernas dos que vêm pela primeira vez, atualiza-se a fisionomia que cada um guarda do outro.


Dia 14/8/16: «O Nunes está todo encarquilhado. A Georgina agora é loira.»

Lembras-te de eu te abrir a cabeça à pedrada? — perguntou-me o Ramos.

Lembras-te de me fazeres serenatas? — tentou a Marisa.

As lembranças são um amontoado de tralha pessoal inútil, falsificada pelas ruminações, em que não consta a maior parte dos registos que os outros guardaram. Lembro-me dos folhos da Matilde, na igreja; lembro-me das reguadas que apanhei por causa do Zé Caçoila. O resto? Sei lá! Deve ter acontecido, se eles o dizem... O mais importante mesmo deve ser o encontro com pessoas do mesmo grupo etário. Ainda que não nos lembremos uns dos outros, temos lembranças no mesmo contexto, porque vivemos no mesmo ambiente, em certo tempo, mas, se calhar, o mais importante é que somos da mesma idade. Como estamos a viver a nossa reforma, a nossa velhice galopante? Vivemos para o futuro ou do passado?

Vocês viram ontem a chuva de estrelas cadentes? ― lançou um tipo de cabelo branco, mas ainda farto, quase à minha frente.

Quando? Ontem? Não soube de nada! ― disse uma. ― Eu à noite vou para a caminha ― respondeu outro. ― Chuva… ― desdenhei eu. ― Estive uma hora num caminho escuro da serra, mas só vi umas cinco.

Aquilo é um espetáculo fabuloso, não achas? ― prosseguiu o aficionado sideral, dirigindo-se-me decididamente.

Acontece todos os anos por esta época, não é? ― comentei, tentando mostrar algum conhecimento. ― Parece que são meteoritos que vêm da constelação de Perseu.

Não é bem assim ― contestou ele, sem alarde. ― São restos da cauda de um cometa que passou por aí.

Interessas-te por astronomia? ― perguntei, meio que para fazer conversa.

Eu interesso-me por tudo ― afirmou, categórico. ― Tem de ser; não quero deixar enferrujar os neurónios.

Os outros tinham-se entretanto alheado da conversa, que se tornara nossa, e falavam dos colegas que tinham morrido, desde o último almoço.

Já viste o que nos espera, se não nos soubermos precaver? ― insinuou, apontando os circunstantes com o queixo.

No resto do almoço, tornou-me seu cúmplice num discurso de meias palavras, que se mostrou enfático quando, após os pratos quentes, deambulámos pelas mesas dos queijos e dos doces:

Convence-te! Nós pertencemos à praga grisalha que só atrapalha. Cada vez somos mais a papar reformas. Que país é que aguenta isto? Passeamos, banqueteamo-nos, consumimos e não produzimos nada, já viste? Que planeta é que suporta isto? Não há recursos que aguentem.

Recebemos reformas, mas trabalhámos para elas ― tentei argumentar.

Mas agora somos uns inúteis. Uma sociedade bem organizada, sem tolerar desperdícios, devia descartar este peso morto.

Mas isso é fascismo! ― indignei-me. ― Felizmente que a esperança de vida aumentou! Querias instaurar uma espécie de eutanásia por caducidade de prazo da validade produtiva?

Olha, porque é que não vens almoçar connosco um dia destes? Tenho um refúgio paradisíaco nos altos da serra do Açor. Podíamos falar deste e doutros assuntos aliciantes que ameaçam a Humanidade.

Apesar da minha relutância inicial, dei por mim a sentir uma curiosidade genuína pelas ideias dele e pelo modo de vida que levaria no tal refúgio serrano.


17/8/16: Às onze apresentei-me em Vide e fui conduzido por um trilho de terra batida que serpenteava pelas faldas da serra até desembocar numa espécie de côncavo arborizado com umas vistas de tirar o fôlego. O local parecia uma quinta de experimentação pecuária e botânica. Vários animais estavam confinados a espaços criteriosamente concebidos, em microambientes bióticos, com plantas específicas para cada animal. Alguns pareceram-me ligeiramente mutantes, como um, semelhante a um pequeno urso, que se alimentava de cenouras.

Conseguimos produzir cenouras com um alto teor de proteínas. A carne vai tornar-se um bem escasso num mundo como o nosso ― argumentou o Martins, o nome do meu insuspeito amigo de infância.

A esposa tinha preparado um almoço delicioso, com beringelas que sabiam a salsichas alemãs, beterrabas amarelas, com sabor a pato, e carne de cabrito que sabia mesmo a cabrito… Com sabor a vegetais, havia outras iguarias muito desleixadas pela maioria dos produtores agrícolas: figos de cato, juncos e fatias de uma espécie de meloa vermelha.

A conversa decorreu animada, mas encaminhou-se para rumos totalmente inesperados, apesar da conversa no almoço dos contemporâneos.

São versados em teorias da conspiração. Afirmam que os governos mundiais estão tomados por interesses estranhos, e que usam muitas técnicas de condicionamento. Dizem que os aviões dos governos espalham químicos na atmosfera, para nos tornar dóceis; que estão a ser aplicados “chips” nos recém-nascidos para monitorização de tendências antissociais; que existem muitos extraterrestres no planeta a preparar a invasão, com a conivência dos governos; que eles querem invadir o nosso planeta, porque ainda não conseguem produzir a carne que os nossos animais produzem com tanta facilidade.

Eu reagi, mais divertido do que assustado:― Mas por que é que vocês suspeitam disso tudo? Têm alguma prova de qualquer dessas teorias?

Então o meu amigo de escola primária, de quem eu não me lembro, abriu-se em revelações, talvez por achar que eu não iria acreditar nele, talvez porque não tinha nada a temer. Disse que, na verdade, ele e a mulher são extraterrestres; que estão na Terra outros duzentos mil; que a vida no seu planeta se tornou assustadoramente claustrofóbica, devido à praga grisalha que lá se tornou quase imortal; que a absurda quantidade de carne necessária à alimentação de tanta gente obrigou-os a socorrerem-se de outros mundos; que a obtenção de carne humana é a prioridade atual, dado o seu sabor sofisticado, parecido com o do cabrito, mas queixou-se da imprevisibilidade do fornecimento proporcionado pelas guerras.

Eu estava abismado, mas arrisquei uma piada, para amenizar a situação:

Caramba! Ainda bem que eu já não sou novo e que a minha carne deve ser rija. Só se fosse para chanfana...


Eles não riram com a piada, ou antes, pareceu-me detetar um ténue e síncrono sorriso a iluminar-lhes o rosto. A conversa alongou-se ainda por várias horas, apesar de alguma inquietação latente minha, mas eles continuaram simpáticos e hospitaleiros. De tal modo que aceitei o convite para jantar e dormir aqui esta noite, neste paraíso natural e incrivelmente sossegado.

Estou a ficar com sono, mas não quis deitar-me sem registar os eventos deste dia incrível, enquanto ainda estão frescos. Amanhã podia não me lembrar.


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 23ª edição (setembro/outubro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 113 a 116).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_23__edi__o

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Integra também a coletânea A Arte do Terror — Volume 4, da Elemental Editoração, 2017 (páginas 174 a 176).


https://issuu.com/elementaleditoracao/docs/a_arte_do_terror_-_vol_4_pdf?fbPageId=1630337707215091

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Imagem: Lucian Freud, Homem Nu, Vista Posterior, 1991–92.

Museu Metropolitano de Arte (The Met) e Galerias Acquavella, Nova Iorque.

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10/10/2020

O homem invisível

 A H. D. — amigo e mestre

 


Conta-me uma história verdadeira, avô! — lança o menino de uns oito ou nove anos. — Daquelas da televisão!

Desde pequeno que o ancião lhe conta histórias do seu passado profissional na televisão pública, sobretudo as dos tempos pioneiros. Recorda com prazer esses episódios antigos e surgem-lhe mais nítidos do que as vivências recentes. A idade traz destas contradições.

Já tas contei todas, Ricardo! — mente ele, conscientemente. As histórias não acabam nunca, sabe-o bem, a única limitação é a memória. — Queres qual?

Aquela da avaria das luzes da câmara do locutor; e ele fazia caretas, a pensar que a câmara não estava a transmitir — entusiasma-se o miúdo.

Aquela lembrança divertida traz-lhe instantaneamente, sem saber por quê, outra recordação antiga, passada também no mesmo estúdio. Não sabe se já a contou, mas envereda por essa peripécia:

Vou-te contar a do Homem Invisível — declara, confiante na proposta.

Conta, avô, conta! Essa não conheço — delira a criança.

Foi assim: no princípio da Televisão, havia um programa que passava filmes policiais e que era apresentado por um senhor que se intitulava “Inspetor Varatojo”. O senhor explicava muitas coisas dos filmes e a maneira como os polícias e os detetives, por meio de raciocínio e muita observação, descobriam os bandidos que faziam os crimes. O programa era só isso: o senhor a explicar estas coisas e depois passava o filme. Mas era muito popular.

Ricardo começa a ficar parado, preso à história.

Como só tinha um senhor a falar, o programa era feito num estúdio pequenino, ainda mais pequeno do que esta sala. E não precisava de mais do que duas câmaras: uma para dar a cara do senhor e outra para o mostrar em tamanho maior, a ver-se em fundo uma secretária ou um mapa ou algo assim. Na altura, eu era operador de câmara, mas fazia o que fosse preciso, das coisas técnicas. Nessa época, éramos “meia dúzia”, éramos como uma família. Ora, certa vez, o senhor Artur Varatojo — era assim que ele se chamava — precisou de ir ao Brasil, lá por coisas dele. E, portanto, não podia estar cá para apresentar o programa, que passava uma vez por semana.

Então, gravaram-no a falar no estúdio, antes de ele ir embora, e no dia do programa passaram o vídeo! — deduz o rapazito, já muito rodado em tecnologias.

Pois… O problema, Ricardo, é que nessa altura não havia gravadores de imagem, só de som… — articula o avô, ciente da mossa que está a causar nas certezas do petiz e do aumento de curiosidade que lhe está a suscitar.

Não havia, avô? Como é que isso podia ser?

Era! Não havia. Tudo era feito em direto: peças de teatro, concertos, provas desportivas. Só se filmava quando alguma coisa não se conseguia passar em direto.

Já sei, filmavam com uma máquina fotográfica, como aquelas que tens guardadas — adianta-se o neto, a agrupar informações.

Isso! Mas maiores; máquinas de filmar que usavam grandes rolos de fita de filme. Era um processo complicado, demorado e caro. Por exemplo, as notícias para o Telejornal eram captadas em filme. O operador, depois de as filmar, voltava para os estúdios, levava o filme ao laboratório, onde era revelado; depois era montado, para tirarem as partes sem interesse, e só então era posto na máquina que o transmitiria durante a emissão do Telejornal — descreve o ex-técnico com pequenos lampejos no olhar. — Percebeste tudo?

Hmm! Acho que sim. O avô já tem falado disso.

Mas, dessa vez, não filmaram o Inspetor Varatojo, já não me lembro por quê. Se calhar, foi porque gostou da solução engenhosa que combinou comigo.

O quê, avô, tu é que resolveste o problema? — recrudesce o entusiasmo parental do rapaz.

Já não me lembro de quem teve a ideia. Sei que nessa altura — o antigo operador de câmara semicerra os olhos, a concentrar-se na memória, que cada vez está mais volátil — devia ser aí por 1961, 62..., andavam a passar na televisão os filmes do Homem Invisível. Com grande êxito. E uma coisa levou à outra. Pois se o Inspetor não estava cá… estava invisível. Às vezes umas ideias puxam as outras.

O quê, avô, o quê? — o jovem não cabe em si de excitação.

Pensámos pôr o Inspetor Varatojo a apresentar à maneira do Homem Invisível! Embrulhado em ligaduras? Não; invisível. Só com a voz dele.

Eh, avô, isso era batota, não? Só o som?

O problema é que ficava uma imagem muito pobre, sem movimento. Televisão são imagens a mexer. É o que as pessoas esperam. Então, resolvemos dar-lhe algum movimento, para parecer verdade. Fizeram-se as gravações de som do Inspetor Varatojo a apresentar os seus filmes policiais e ele pôde ir à vida dele.

Com tanto contacto com filmes, o ex-técnico aprendera alguma coisa da maneira de fazer render uma história, até porque também passara pela realização.

O que combinaram, avô? Diz, diz! — desvaira o moço, de suspense.

No dia do programa — acho que era às segundas-feiras — apontou-se uma câmara de frente para uma secretária, com uma máquina de escrever em cima; outra câmara só a mostrar a máquina, do ponto de vista de quem estivesse sentado a escrever à máquina. Era uma máquina daquela época, grande, mecânica, com uma letra metálica em cada braço comandado por uma tecla. À hora do programa, quem estivesse em casa a assistir ouvia o bater das teclas e a voz de sempre a apresentar os filmes, mas não via o Inspetor, supostamente sentado à secretária, a ler o que batia à máquina; só a secretária e a cadeira vazia.

Um sorriso deliciado, mas subtil, aflora o rosto do narrador.

A outra câmara ia mostrando a máquina de escrever a bater as teclas sem ninguém lhe tocar. Ninguém, não! A voz do Inspetor avisara no princípio, em tom maroto, que nesse programa ele próprio estava invisível…

Boa, avô; fantástico! Isso devia ser ainda mais interessante do que nos outros dias, não? Mas como é que as teclas batiam sozinhas?

Eh, eh, eh! — a voz excitada do miúdo é música para os ouvidos do ancião. É hora de lhe fazer, finalmente, a revelação. — Por baixo da secretária em que a máquina estava pousada, estava eu, com dez cordéis presos aos dedos, cada cordel atado a um dedo e a um braço da máquina… Enquanto ouvia a voz gravada do Inspetor, eu ia puxando ora um, ora outro cordel, dando a ideia de que o Inspetor invisível é que estava a acionar as teclas...

Caramba, avô! Afinal, nesse dia, o homem invisível eras tu!

Sim, e era duplamente verdade — eu também estava bem invisível por debaixo da secretária.

E as pessoas a julgar que era o Inspetor Varatojo invisível… Esta foi boa, avô! O teu trabalho devia ser muito divertido. Quando for grande, também quero ir trabalhar para a Televisão. Agora, queres jogar às escondidas?


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 22ªedição (julho/agosto de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 130 a 132).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_22__edi__o

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Imagem: René Magritte, O Espelho Falso, 1928.

Museu de Arte Moderna (MoMA), Nova Iorque.

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10/09/2020

O burro e a vaca

 



Era uma manhã cheia de sol. Uma vaca pastava muito tranquila no prado. Embora ninguém a visse sorrir, estava feliz por saborear as tenras folhas do trevo e as flores e as vagens do tremoço. De repente, a serena manhã da vaca foi agitada por um coelho que passou junto dela, tão veloz como todos os coelhos que fogem aflitos dos cães dos caçadores, e lhe gritou:

Sai da frente, vaca!

A felicidade dela desapareceu nesse momento. Estava farta de lhe chamarem vaca. É certo que tinha algum peso a mais, mas estarem sempre a lembrar-lho... Até um insignificante coelho? Estava farta!

Nessa tarde já pouco comeu. Nos dias seguintes, só comeu os talos mais rijos das ervas que lhe pareciam menos nutritivas. Para tentar emagrecer. Durante muitos dias passou fome, mas obrigou-se a comer só o que não a faria engordar.

Na verdade, passadas umas semanas, a vaquinha tão rechonchuda de antes não parecia uma vaca; mais parecia um esqueleto em pé, só pele e cornos.

Um dia passou por ali um burro que ficou muito admirado de ver uma vaca tão mirrada. Perguntou-lhe:

Estás doente, vaca?

A vaca começou a choramingar:

Estou tão infeliz por passar tanta fome e tu ainda me chamas vaca? Eu já não sou vaca; estou até muito elegante!

O que dizes tu? — admirou-se o burro. — Tu és uma vaca; sempre serás uma vaca, mesmo que não sejas gorda.

Então, não é a mesma coisa? — respondeu a vaca, muito convencida. — O mal-educado de um coelho chamou-me vaca… Tu não achas que ele me chamou… gorda?

Claro que não! Ele chamou-te… o teu nome, o nome que os homens te deram — explicou o burro, instrutivo. — Comigo aconteceu uma história parecida: vivia muito infeliz, porque me chamavam burro, e julgava que me chamavam estúpido. Só mais tarde percebi que burro é o meu nome, o nome que os homens me deram. A partir daí, nunca mais me importei. Pois, se é o meu nome!

Ah, então é isso? Faz sentido! — convenceu-se a vaca. — Obrigada, burro! Explicaste-te muito bem. Acho que não és nada “burro”.

E tu não és nada “vaca”. Estás até muito magra e isso não é nada saudável. Vê se comes melhor, para voltares a ser uma vaca bonita.

Quando o burro se afastou, a vaca mastigava um grande ramo de trevos suculentos, mas ainda conseguiu fazer um “muuuu!” de agradecimento e despedida.


Joaquim Bispo


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Esta crónica foi selecionada para a 21ª edição (maio/junho de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra, a páginas 114 e 115:

https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_21__edi__o


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Imagem: Domenico Ghirlandaio, Adoração dos Pastores, 1485.

Capela Sassetti, Igreja da Santa Trindade, Florença.

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10/08/2020

Querida mãezinha!


Compreendo quem se lamenta da sua triste sina e não para de tecer teorias da conspiração sobre a própria sogra, embora eu não tenha razões de queixa. Mal vejo a minha.
É claro que antes sofri muito. Nos primeiros meses de casado, perdi dez quilos. Dormia mal, tinha pesadelos em que era atacado por matronas rotundas armadas de panelões de feijoada, que tocavam à porta às seis da manhã e me lambuzavam a cara de batom encarnado. Fiz terapia, voltei a frequentar a igreja, mas só o estudo me salvou — um mestrado em Estudos Militares.
Uma das disciplinas parecia delineada especialmente para o meu caso: “Como evitar dar o flanco e recuperar a iniciativa”. Textos obrigatórios: os de Maquiavel e A Arte da Guerra de Sun Tzu. Percebi rapidamente que qualquer dos autores transmite ensinamentos muito úteis para a sobrevivência de um genro, bastando substituir, em qualquer dos aforismos, a palavra “inimigo” por “sogra”. Vejamos alguns exemplos de A Arte da Guerra:
O guerreiro superior ataca enquanto o inimigo está projetando os seus planos.” Isto é, quando perceberes que a tua sogra está a pensar ir lá a casa mostrar os álbuns de fotografias das férias, deves ligar-lhe anunciando quão pesaroso ficas por não poderes recebê-la, porque vais em serviço para a Austrália.
Sê completamente misterioso e confidencial, até ao ponto de seres silencioso.” Isto é, não dês qualquer pista à tua sogra sobre os teus passos, os teus trabalhos, os teus horários. Responde com evasivas, de modo que nada lhe permita saber onde estás, seguir-te, espiar-te. Se fores encurralado, finge que perdeste a voz ou transmite informações falsas, e assim “o adversário não pode combater contigo porque lhe dás uma falsa pista.”
Suspeito que A Arte da Guerra tenha sido escrito como estudo prévio para um projeto mais grandioso sob o tema: “Táticas para sobreviver à própria sogra”. Infelizmente, essa obra não chegou até nós, talvez por algum equívoco estratégico. As sogras não brincam. No entanto, um outro preceito revelou-se inestimável:
Faz algo por ele, para lhe captares a atenção, de maneira que possas atraí-lo, descobrir os seus hábitos de comportamento, de ataque e de defesa.” Isto é, se quiseres viver em paz, procura conhecer a tua sogra, como costuma atacar, o que pode desencorajar esses ataques; mantém-na constantemente sob vigilância e faz com que ela confie em ti.
Um dos grandes problemas das sogras é sentirem-se isoladas e inúteis. Arranja-lhe atividades que a entretenham: apresenta-a a um grupo de canasta; inscreve-a em grupos excursionistas; matricula-a em aulas de danças de salão; convence-a a ser escritora e a enviar textos para concursos literários. Se, mesmo assim, lhe sobrar tempo para azucrinar a tua vida, interessa-a em projetos relevantes de grande fôlego, daqueles que ocupam uma vida inteira: acabar com a fome no mundo, descobrir a cura da estupidez; encontrar um sistema político sem governantes corruptos. É praticamente impossível? Eu sei — é essa a ideia.
Felizmente, após muitas diligências pouco frutuosas, encontrei a solução, o que me trouxe, outra vez, calma e esperança no futuro: inscrevi-a em vários sites de corações solitários, com o nome “Gostosa carente”. Quando eu já desesperava e acreditava que o coração dela estava irremediavelmente empedernido, apaixonou-se por um idoso folgazão, e já não quer saber da filha nem do genro para nada. Anda alegre como um passarinho.
Agora, fiquem bem, que tenho uma genuína gostosa à minha espera, para uma batalha sem quartel, sem medo de sermos interrompidos por invasões de panelões de feijoada.

Joaquim Bispo

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Esta crónica foi uma das 50 selecionadas para compor o e-book “Crónicas humorísticas” do coletivo Covil da Discórdia:
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Esta crónica foi também selecionada para a 20ª edição (março/abril de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book, que integra — páginas 109 a 110.
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Imagem: James Whistler, Retrato da mãe do artista [Whistler's Mother], 1871.
Museu de Orsay, Paris.

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10/07/2020

Obsessão


Fernando Nunes tinha a certeza de que as forças encobertas não deixariam passar aquela ocasião, não iriam ignorar aquele descuido fatal da sua segurança. Morreria nesse dia e sabia como, só não sabia de onde surgiria o golpe decisivo.
Não era supersticioso. Ou, pelo menos, achava que não era. Aliás, fazia questão de mostrar que não ligava a gatos pretos, nem se inibia de abrir guarda-chuvas em casa ou de passar por baixo de escadas. É certo que o fazia com algum acinte e esforço de racionalização. Sabia perfeitamente que certas superstições radicavam em sabedoria prática, que tinha degenerado em norma dogmática de difícil justificação e muito pouco questionamento. Usava, no entanto, de um cuidado redobrado nessas situações potencialmente nefastas. Agora, o caso era perigoso.
Esse esforço de racionalização vinha já da infância e da juventude. Então, muitas vezes se sentia compelido a contar os passos entre dois pontos da rua. Se errasse por muito, sentia-se ameaçado. Como se sentia em transgressão, se pisasse alguma separação dos blocos de pedra de alguns passeios mais nobres. Tinha de fazer um esforço para decidir que nenhum perigo advinha se errasse o cálculo ou se pisasse alguma dessas separações, mas continuava o jogo mental, ao mesmo tempo lúdico e sinistro, com as entidades que tudo veriam e estariam certamente atentas às suas falhas. Era uma ameaça mais intuída que percebida, com origem indeterminada, mas obviamente sobrenatural. Nunca as vira, mas sabia que estavam sempre lá, a espiar-lhe os movimentos, a julgá-lo.
Certa vez, num teste vocacional da adolescência, um psicólogo apontara-lhe uma personalidade esquizotípica. O relatório falava em crenças estranhas e pensamento mágico influenciando o comportamento, fuga da realidade e ruminações sem resistência interna, mas não ligou muito nem ficou preocupado, porque pressentia que tudo correria bem se fosse cuidadoso.
Naquele dia, Fernando fora descuidado. E os descuidos podem ser ciladas das forças obscuras. Sabia-o e temia o que aí vinha, necessariamente. Os apaziguamentos de racionalidade chocavam com o perigo da situação. Que parecia simples e prosaica. E, no entanto, continha um alto grau de ameaça.
Qual era a situação? Não tendo encontrado em qualquer estância de materiais, em Lisboa, as placas de fibra de madeira, da largura que necessitava para construir o interior de um roupeiro, na sua casa na terra, mandou cortá-las numa grande superfície de Santarém.
A satisfação por ter conseguido encontrar o que necessitava deu lugar a uma grande apreensão, ao perceber que não conseguia acomodar as placas maiores na bagageira do seu carro, mesmo dobrando os bancos traseiros. Como bom suburbano, resolveu alojá-las no lugar do “pendura”, com o banco um pouco reclinado.
Percebeu logo o perigo que tais placas, à solta no habitáculo do carro, representavam, em caso de acidente. Com as suas massa e inércia, deslocando-se abruptamente no mesmo espaço que ele, seriam como cutelos cortando carne num talho. A decapitação seria o resultado mais piedoso.
Sentiu-se ridículo, ao apertar o cinto de segurança ao grupo das quatro placas de um metro e setenta. Imaginou o sarcasmo das forças emboscadas nos meandros das subtilezas sobrenaturais: tesas, as placas lembravam um esqueleto a seu lado.
Tomou a A1, a caminho da Mealhada, com o coração apertado. Havia que fazer um plano, para minimizar as hipóteses de intervenção das forças obscuras. Havia que manter uma velocidade moderada, para baixar as possibilidades de acidente, por pneu rebentado ou despiste. Havia que evitar uma velocidade demasiado baixa, para não ser abalroado. Muito tenso, mas atento, ia tomando consciência dos quilómetros percorridos ― perigo passado ―, mas apreensivo pela enorme distância a percorrer.
Olhando pelo retrovisor, a dezena de carros que avistava pareciam-lhe uma matilha em sua perseguição. Algum deles podia estar tomado pelo inimigo. Podia embater no seu carro, violentamente. Ou podia, simplesmente, dar-lhe um pequeno toque lateral. Seria o suficiente para o carro entrar em descontrolo e dar meia dúzia de cambalhotas. Nem queria pensar no que aconteceria dentro do habitáculo.
Depois de Fátima, um camião lá à frente em marcha mais lenta podia ser a barreira contra a qual seria encurralado por aquela carrinha compacta que vinha lá atrás, em alta velocidade; mas passou. Ao ultrapassar o camião, Fernando viu os cilindros metálicos. Podia ser agora: os tubos soltarem-se e invadirem a estrada ou mesmo caírem-lhe em cima. Passou. Pareceu-lhe ouvir um zumbido na zona do pneu dianteiro direito. Um rebentamento seria fatal. Era agora? Abrandou um pouco.
Perto de Pombal, tentou fazer um exame de consciência: afinal, como tinha conduzido a sua vida?; merecia ser castigado? Claro que sim! Tantas vezes fora reles e perverso, tantas vezes tratara mal as outras pessoas, tantas vezes fora pouco honesto. Sim, certamente seria castigado. Mas, morto? Sentiu pena de deixar de viver já. Tinha ainda tantos planos, tantas coisas mal resolvidas. Viver era tão bom. Gaita! Sempre suspeitara de que era demasiado bom para durar. Deve haver sistemas de reequilíbrio no Universo.
Apesar do veredito, decidiu ir à luta. Iria continuar com a condução defensiva e estar atento a todos os tipos que mudassem de direção, sem fazer piscas.
Como que reagindo ao seu desafio, um nevoeiro progressivamente mais compacto formou-se, ao passar nos vales baixos próximos de Condeixa. Agora nenhuma precaução podia salvá-lo. Ligou máximos, ligou luzes de nevoeiro e os quatro piscas, tentando fazer-se ver, já que não enxergava mais do que uns quinze metros à sua frente. As mãos ferravam-se-lhe no volante, os olhos no nada da estrada, e sempre controlando o retrovisor. Em vão. Sem referências de nenhum tipo, parecia ter passado para outra dimensão, uma dimensão que não era deste mundo. Esperava o embate a qualquer momento. De que é que estavam à espera? Uma enorme tristeza invadiu-o. Sentiu que não podia nada contra estes inimigos.
Uma dezena de quilómetros depois, o nevoeiro esfumou-se de um momento para o outro. Passou Coimbra e começava a acreditar que talvez se safasse. Se calhar, os traiçoeiros tinham mudado de ideias. Ou estariam a fazê-lo acreditar que estava a salvo, para então lhe aplicarem o golpe fatal e se comprazerem com a surpresa no seu rosto?
Já depois da Mealhada, teve de tomar as estreitas e sinuosas estradas para a sua Antã da Serra, no meio da serra do Buçaco. Ali, as velocidades eram diminutas, mas a probabilidade de um choque ou uma saída de estrada era bem maior. Devia ser agora. Pareceu-lhe que as tábuas já se moviam nas curvas. Sentia outra vez uma nostalgia do que ia deixar. Como era belo o mundo. Aquela serra era gloriosa. Que pena ir embora agora. Se calhar, tinha de ser.
Mas não. Para grande espanto seu, chegou a casa sem qualquer percalço, sem qualquer mazela. Manteve-se ao volante, no carro parado, envolvido pelo silêncio local, tentando equacionar a situação. Como era possível? Tanta tensão, tanta concentração nas últimas duas horas e o terrível clímax não surgira. Obviamente, tinha sido agraciado com mais uma vida. Agradeceu mentalmente, por descargo de consciência, não sabia a quem. Só o zumbido nos ouvidos e alguns estalos do motor a arrefecer lhe responderam. Aliviado, racionalizando o caso, concluiu que não havia razão para ser supersticioso. Mas tinha de ter mais cuidado.

Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 192 a 194 — a antologia “Adentre-me – O Almanaque do Suspense” da Editora Jogo de Palavras, em 2019: https://www.jogodepalavras.com/antologias

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Imagem: Agesandro, Atenodoro e Polidoro (cópia atribuída), Grupo de Laocoonte, c. 27 dC.
Museus do Vaticano, Roma.

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