10/11/2015

Esta Cidade não é para Frutos Secos



Paulina, a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua ambição era ficar ali pela terra e um dia gerar um grande castanheiro.
Maior e mais majestoso que o papá ― chilreavam de entusiasmo as irmãs.
Antes de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da curva do caminho.
Um dia, de manhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se mantinham no aconchego do ouriço familiar, e partiu em direção a sul. A meio da manhã, encontrou outra castanha como ela, mas mais anafada.
Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou Paulina.
Sou uma Castanha da Índia e vou para a cidade. Uma prima arranjou-me trabalho ― respondeu a outra, radiosa nas suas bochechas luzidias.
Então vamos as duas!
Mais à frente, encontraram uma espécie de castanha pequenina e redondinha.
Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou a Castanha.
Sou a Avelã e vou para a cidade. Quero arranjar trabalho e ganhar dinheiro.
Então, vamos as três!
Por volta do meio-dia, num cruzamento, encontraram outras duas.
Olá! Quem são vocês e para onde é que vão? ― disse a Castanha da Índia, que já tinha aprendido a senha. A mais encorpada respondeu:
Eu sou a Noz e esta minha amiga é a Amêndoa e vamos para a cidade estudar. Estamos fartas de ser cascas-grossas.
Então, vamos todas de companhia! ― Era a vez de a Avelã concluir.
E lá foram divertidas e tagarelando a tarde inteira. Ao anoitecer, encontraram uma bolota pilada, toda encarquilhada, que lhes ofereceu guarida junto a uma azinheira. Aceitaram agradecidas, que a noite está cheia de roedores; mas apenas começou a haver luz, partiram e chegaram à cidade ainda de manhã.
Deram uma volta a apreciar os prédios enormes e o formigueiro dos carros. Depois, encontraram um jornal de anúncios grátis.
Olha este ― disse a Amêndoa. ― «Precisa-se amêndoa para fábrica de doces conventuais». Vou responder! Se for um part-time, posso ganhar uns dinheirinhos e ter tempo para estudar.
Boa, este é para mim! ― entusiasmou-se a Avelã ― «Chocolataria procura avelã grada. Paga bem». Se ganhar muito dinheiro, compro um pulverizador à minha mãe.
Hum, não sei o que este é ― disse a Castanha carregando o sobrolho ― «Castanhas nacionais e estrangeiras. Quentes e boas!». É capaz de ser uma empresa de trabalho temporário. Mas não há mais nada! Acho que vou tentar.
Combinaram que cada uma iria responder ao seu anúncio e que voltariam a juntar-se de tarde. Paulina resolveu esperar pela Castanha da Índia, na esperança de que esta lhe arranjasse vaga.
À hora aprazada chegou a Noz muito zangada. Tinha ido responder a um anúncio para Segurança num armazém e tinham-lhe dito que era um estágio não remunerado.
Lá na terra, muito ou pouco, sempre pagam a quem trabalha. Nunca me fizeram uma proposta tão desavergonhada!
Eu cá estou contente com o trabalho ― chegava a Castanha da Índia. ― Fiquei a trabalhar em casa de uma velhota simpática e o que tenho de fazer é só ficar numa gaveta de roupa a afugentar as traças. ― O sorriso de orgulho que lhe assomara à casca fechou-se logo a seguir. ― Mas não é trabalho para vocês, meninas! Não têm este cheiro que afasta os insetos. Agora, tenho de ir. Adeus. Vemo-nos por aí.
Da Amêndoa e da Avelã, nem sinal. A Noz e a Castanha esperaram ainda um par de horas, e, como as outras não vinham, foram responder ao anúncio para a Paulina.
Era numa rua estreita e o local de trabalho, envolto em fumo, não passava despercebido. Aproximaram-se, sem dizer nada, e ficaram à espreita, para descobrir qual era o ramo de negócio do patrão. Este, de bigodinho e cabelo oleoso, pegava nas castanhas, rasgava-lhes a casca de um golpe e atirava-as para um pote esburacado que tinha sobre brasas.



Só então, horrorizadas, se aperceberam do cheiro a castanhas assadas que enchia o ar; e as viram amontoadas num grande tabuleiro. Estavam irreconhecíveis. A casca golpeada encanecera como noiva adiada e abrira-se pela ação do calor, deixando ver o delicado véu interior, que separando-se do miolo, expunha o corpo dourado das castanhas. «Que degradante! Porque faz esta atrocidade, porquê?» ― perguntavam-se. Observaram então como os homens se aproximavam de olhos lúbricos, pagavam o preço combinado e, apossando-se dos objetos do seu apetite, esmigalhavam com mãos papudas o resto de casca e de película que parcamente ainda vestia as castanhas. E depois de completamente descascadas ― oh, horror! ― de uma só dentada comiam-nas. Inteiras.
Escapou-se-lhes um «Oh!» involuntário. O homem das castanhas viu-as e baixou-se para as apanhar. Estava quase a agarrar Paulina quando a Noz, ginasticada e enraivecida pela repulsa, saltou. Apontou uma cabeçada aos dentes do homem. O lábio superior deste interpôs-se e ficou esmagado entre os próprios dentes e a cabeça dura da Noz. O homem gritou agarrado ao lábio a sangrar. Várias cabeças de homens se voltaram. A Castanha e a Noz sentiram aquelas dezenas de olhos sobre si. Um medo imenso apoderou-se delas.
Fugiram dali, tão depressa quanto conseguiram, sem olhar para trás. Ao virarem uma esquina, quase foram esmagadas por um carro. Atiraram-se para o lado às cegas e caíram numa sarjeta. No escuro, húmido e fétido, olharam em volta, tentando enxergar o que quer que fosse. Só três pares de olhos brilhantes guinchavam.

Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008, com o título “Paulette na cidade”.)

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