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10/02/2021

A talentosa professora Camila



A anterior confiança de Alcides vacilava. Acreditara que, apesar de toda a conjuntura desfavorável, seria possível a um licenciado em Construção e Conservação de 21 anos encontrar trabalho na terra da Merkel. Infelizmente, faltava-lhe uma disciplina para terminar o curso. A professora de Patologias da Pedra ameaçava não lhe dar nota para passar.

É certo que tinha feito um ano com muito namoro e muita cerveja, pelo que ambos os testes deram negativa. Até maio, no entanto, confiava que o seu charme e alguma melhoria no trabalho escrito alterassem o rumo negativo. Quando saiu a fraca nota do trabalho, foi falar com a professora, uma morena de uns quarenta e poucos anos, de cabelo curto e seios cheios, que ele costumava comer com os olhos nas aulas, explicando-lhe que o seu futuro estava dependente apenas daquela disciplina e pedindo-lhe, insinuante, que não o fizesse voltar no ano seguinte. Ela avaliou a importância do problema com um olhar simpático, quase cúmplice.

Alcides, eu não quero chumbar ninguém, mas você está com uma nota muito baixa. E estamos em meados de junho, as aulas já acabaram; já não há tempo para uma improvável recuperação. O que acha que eu posso fazer?

No momento, Alcides estava disposto a fazer qualquer coisa para salvar o ano e tudo lhe parecia possível.

Professora, dê-me uma semana. Depois pode fazer-me a prova que quiser.

Foi uma semana arrasadora. Levantava-se pelas sete e lia tudo o que encontrava da bibliografia até perto da meia-noite, só com intervalos para comer. Andava com os olhos como os dos cachuchos, de tanto queimar as pestanas.

Na tarde do sábado seguinte, Alcides compareceu na morada indicada, uma pequena vivenda da encosta de Pedrouços. Um jardinzito separava a porta, da rua.

A professora Camila recebeu-o cordialmente, convidando-o de imediato para lanchar. Vestia-se de maneira informal: um polo amarelo de decote em bico, que lhe realçava o peito, e umas calças leves pelo meio da canela. Camila encaminhou-o para a cozinha, para não o deixar sozinho enquanto preparava o chá.

Estudou muito, Alcides? — lançou sorridente.

Sei tudo na ponta da língua, professora. Vai ver! — respondeu ele, sincero.

Instalaram-se na pequena mesa da cozinha, à frente de um bule de chá e duas torradas.

O seu marido não lancha connosco? — quis saber Alcides.

Não; ele afinal saiu ontem para um congresso e só volta amanhã à noite. Somos só os dois — adiantou, com um sorriso talvez neutro, talvez não.

Alcides, como bom entendedor, ficou alerta para quaisquer indícios propiciadores daquela oportunidade potencial. Talvez por isso lhe tenha parecido que Camila espalhava a manteiga na torrada de maneira um pouco lasciva. E bebericava o chá pegando na chávena com ambas as mãos e fazendo um biquinho com os lábios. Estar a sós com a professora que tantas vezes desejara, em ambiente não de intimidade, mas ainda assim de privacidade, espicaçava-lhe os instintos. «Será que vou ter sorte?», divagava furtivamente.

Então, vamos começar? — inquiriu Camila, convidando o aluno para a sala.

Um pouco nervoso, mas confiante, Alcides instalou-se num maple, enquanto a professora se sentou no sofá em frente.

Como combinámos, Alcides, é preciso que eu fique com a certeza de que você está bem seguro da matéria, para conseguirmos reverter a situação. Está calmo e concentrado?

Ao aceno afirmativo de Alcides, pensou numa pergunta básica e lançou:

O que são rochas?

Alcides baixou os olhos procurando a concentração que se esbatera quando Camila, ao pensar na pergunta, baixara a cabeça e o tronco, expondo um pouco mais de pele, no decote.

São sistemas químicos inorgânicos. Formaram-se num determinado ambiente geológico e refletem o equilíbrio termodinâmico atingido na fase de formação. (…) Têm composição química razoavelmente bem definida, mas em proporções variáveis, pelo que não há duas rochas iguais.

Quais as tipologias mais frequentes? — continuou Camila, após a mesma flexão de tronco.

Alcides, embora atento à pergunta, não conseguiu evitar que os olhos se abandonassem ao vislumbre daquela alvura láctea. Demorou um pouco a iniciar a resposta.

Sabe a resposta ou passamos a outra? — condescendeu Camila, após uns segundos.

Não, não! — reagiu Alcides. — Em peso, a quarta parte da crusta terrestre é composta por silício e metade por oxigénio. Os minerais mais abundantes são os silicatos, nas ígneas (granitos e basaltos), sedimentares (argilas, xistos e grés) e metamórficas (gnaisses e micaxistos), seguidos de longe pelos carbonatos, nas sedimentares (calcários) e metamórficas (mármores).

Muito bem! Que rochas predominam nos monumentos portugueses?

A concentração de Alcides baqueava. Aquelas rotundidades anunciadas estavam prestes a condená-lo. Baixou os olhos a tentar recompor-se, mas entrara numa batalha interior, como um computador bloqueado por excesso de tarefas.

Alcides, você prometeu-me que ia preparar-se! O que se passa?

O jovem, encurralado, resolveu abrir o jogo.

Professora, desculpe, mas não consigo concentrar-me — declarou, apontando com os olhos para a origem da perturbação.

Camila olhou para o próprio decote.

Oh, desculpe. De qualquer modo, na vida profissional temos de saber ultrapassar certas pequenas distrações. Quer que me tape? — perguntou, sincera, puxando o decote para cima. Após a hesitação de Alcides, perguntou com um sorriso irónico: — Ou quer que me destape?

Alcides leu a pergunta como uma das tais oportunidades que podem render benefícios sensuais, se não forem desperdiçadas.

Posso escolher? — arriscou, com um sorriso cúmplice. — Podíamos fazer uma espécie de strip-poker! — adiantou, de olhar brilhante.

Camila ficou uns segundos calada a avaliá-lo. Há muito tinha percebido como era malicioso aquele aluno. Depois levantou-se e foi ao bengaleiro buscar um cachecol.

Acho que o melhor é tapar-lhe os olhos, para não se distrair — anunciou, enquanto lhe enrolava o pano em torno da cabeça, atando-o atrás.

Ok, professora — concedeu Alcides, desistindo de expectativas mais ambiciosas, que tinham chegado a dominá-lo nos últimos momentos. — Já vi que não tenho sorte…

Alcides, você é danado! A sorte não cai do céu; constrói-se todos os dias — ralhou docemente, fazendo-se desentendida. — Se calhar foi um ano com brincadeira a mais. Mas eu não acho mal, se o estudo não for de menos. O importante é atingir o objetivo. — Meditou um pouco. — Sabe qual é o meu objetivo, neste momento? Conseguir que você acerte as respostas às perguntas que lhe quero fazer. Mas, por falar em sorte, também não desgosto de jogos atrevidos — disse a sorrir. — Vamos lá experimentar esse póquer maroto. Uma peça de roupa por cada resposta, é isso?

Maravilha, professora! Já me agrada mais.

Uma coisa lhe prometo: se você acertar as respostas todas, ganha uma prenda no fim…

Bora lá, professora! — rejubilou Alcides, a abarrotar de entusiasmo por baixo do cachecol.

Vamos lá, então. Que mármores coloridos da península de Lisboa conhece?

O encarnadão de Pêro Pinheiro, o amarelo de Negrais, o azul de Sintra e o negro de Mem Martins.

Boa! Lã vão as sabrinas. O que é a meteorização?

Ao ouvir o som das sandálias a cair, Alcides percebeu que seria vantajoso acompanhar e tirou também os ténis, antes de responder:

Quando a rocha é arrancada à pedreira e colocada sob o ataque de agentes externos, como o ar, as diferenças de temperatura, a água — com as consequentes oxidações, expansões e dissoluções —, as redes cristalinas da rocha são destruídas ou rearranjadas. É a essa tentativa de reequilíbrio que chamamos meteorização. A desagregação é o equilíbrio final que a rocha de um edifício atinge.

Boa! Essa bem merece a camisola. Fora! Fale-me da corrosão.

Ainda mal pressentira que Camila despia o polo e já Alcides tirava a sua t-shirt. Cheio de confiança, não hesitou:

A corrosão avança nos pontos vulneráveis do sistema cristalino. Os cristais reais não são perfeitos; podem conter dezenas de milhões de defeitos por centímetro cúbico: deslocações, lacunas, impurezas. Tais defeitos representam outros tantos constrangimentos físicos. Ao nível do grão, uma rocha é tanto mais resistente quanto mais fino for o seu grão.

Muito bem! — incitou Camila, sem dar a entender que o seu olhar, à solta, se alongara no desfrute do tronco robusto e algo peludo do aluno. — Calças fora. O que são crostas negras?

Alcides, de coração acelerado, tirou as calças de ganga. Estava num estado de alguma agitação, visualizando a professora com o belo peito a sobressair do sutiã e em cuequinhas.

São zonas enegrecidas nas superfícies das pedras, constituídas por depósitos de sais e de partículas da poluição da atmosfera, as quais produzem gesso a partir do dióxido de enxofre e do ácido sulfúrico destas, na sua interação com os substratos siliciosos e carbonatados.

Certo! Falta uma. Qual a origem dos oxalatos de cálcio nas superfícies dos edifícios?

Alcides ouviu o bater dos fechos do sutiã sobre a mesinha de apoio. A informação química desencadeada percorreu o seu corpo a alta velocidade, levando ordens aos corpos cavernosos. Alguma coisa em si passou a forcejar para se libertar. Alcides ofegava. Era demasiado bom o que lhe estava a acontecer. E sabia a resposta seguinte.

Os oxalatos, visíveis como formações relevadas, não têm origem em deposições externas sobre a pedra, mas na transformação dela. Devem ser associados à segregação de ácido oxálico pelas raízes de fungos, algas e líquenes, na sua atividade bioquímica sobre as rochas carbonatadas.

Muito bem, Alcides, muito bem! Pode tirar o pano dos olhos.

Yes! — gritou o felizardo, saltando e arrancando de repelão o cachecol, desejoso de passar à prometida fase seguinte. Inexplicavelmente, a professora continuava vestida. Perante o rosto de surpresa e desapontamento do aluno, Camila sorriu, quase maternal, escondendo alguma perturbação.

Ainda bem que o cachecol permitiu que não se distraísse mais. Correu bem, não acha? Está satisfeito?

Satisfeito é dizer pouco. É evidente que estou muito… mesmo muito contente — abandalhou Alcides, ainda confiante, exibindo os bóxeres tensos. — Mas a festa vem agora, não foi o que prometeu, professora?

Prometi-lhe uma prenda, sim. Quere-a já? — indagou, um pouco matreira.

Ó professora, é o que eu mais quero — inflamou-se Alcides. — Sempre a desejei!

Está bem! Eu também acho que é a coisa mais importante para si, agora. Aqui tem! — E estendeu a Alcides uma folhinha com a nota final da disciplina: 11. — Tudo de bom para si, lá na Alemanha! E beijinhos à senhora Merkel — riu.


Joaquim Bispo


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Imagem: Escultura de Francisco Simões.

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(Este conto integra a coletânea Bad Girl — Contos Eróticos, Silkskin Editora, Lisboa, 2015.)

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10/01/2021

Para além do confessável

 

Quando o padre Onanias entrou na barbearia, temeu por um momento que não fosse conseguir cortar o cabelo antes da missa das seis: na cadeira do “ti” Matias estava o presidente da Junta, e à espera estava o secretário, mas depressa percebeu que este não vinha para cortar o cabelo; simplesmente acompanhava o chefe para todo o lado.

Boa tarde, meus senhores! — cumprimentou.

Boa tarde, senhor padre! — responderam os três em coro.

Sentou-se num dos bancos forrados a napa que se alinhavam voltados para a majestosa cadeira onde os homens se vinham libertar de sumptuosas melenas, quando se tornavam demasiado rebeldes para aceitar o pente. Na telefonia acabara de cantar Artur Garcia e anunciava-se Suzy Paula.

Então, senhor padre, já está ambientado cá à terra? — perguntou o presidente.

O padre Onanias tinha sido colocado em Leirosa do Côa havia pouco mais de um mês e quase só conhecia o pequeno grupo que ia à missa. Ainda não tinha atingido os trinta anos, era alto e rosado, e não vestia batina.

Sim, já conheço bastantes paroquianos, alguns até em confissão. Já se confessaram este ano? — inquiriu, com um prazer pouco católico.

Lá havemos de ir, senhor padre! — respondeu o presidente, prazenteiro. Era um homem na casa dos sessenta, um pouco anafado, de cabelo ralo e nariz abatatado. — Todos os anos, pela Páscoa, me confesso. Eu e aqui o meu secretário, não é verdade, Azeitão?

O visado acenou que sim, subserviente. Teria quarenta e poucos anos, usava o cabelo liso com brilhantina e trazia um fato escuro.

Mas isto é uma terra sem pecados — carregou o presidente, enquanto o barbeiro se esmerava no recorte da orelha direita. — Aqui é tudo boa gente, sem cobiça, sem luxúria. Olhe, aquela que ali vai, a dona Naftalina, não deve ter mais de cinquenta anos; ficou viúva há uns quatro e nunca mais se lhe conheceu homem, ou sequer interesse por eles. Passa a vida na igreja. Às vezes, até gostava que houvesse mais movimento, para a gente ter de que falar, sem ser só de caça. A propósito, o senhor padre não caça? — rematou, com muita malícia na entoação. — Há por aí umas coelhas…

O secretário e o barbeiro riram-se, mas com pouco à-vontade, devido à inconveniência do presidente da Junta. O padre também riu, e sem cinismo.

Há muito tempo que a minha alma e o meu corpo pertencem à Igreja. Sou homem, reparo quando uma mulher é bonita, mas estou comprometido com algo maior e só aos seus encantos me dedico — acentuou, numa meia verdade. Fazia parte do saber viver do relacionamento social.

Ah, senhor padre, contam-se muitas histórias de padres e saias. E não são batinas. Ali na aldeia de Trevez correram com o de lá, há uns cinco anos, porque andava metido com a governanta, o desavergonhado. Levou uma sova!

Há sempre ovelhas ronhosas em todos os rebanhos. Por mim, espero ficar aqui por muitos anos, com o respeito de todos, que já vi que estou entre gente honrada.


Sentada numa das filas da frente da igreja, dona Naftalina observava o Cristo crucificado de tamanho natural, que estava em fundo, sobranceiro ao altar-mor. Os seus olhos percorriam os músculos das pernas, magras como as do seu Grinaldo, que Deus tinha. Custava-lhe muito a viuvez. Nenhum homem se tinha aproximado, a não ser o untuoso do presidente da Junta, com umas insinuações porcas. Ela própria também não se mostrava acessível. Tinha muitas saudades, mas do seu homem. Recordava-o, ao olhar este Cristo: o mesmo corpo ossudo, a barba, uma certa expressão de abandono. Ficava horas esquecidas a percorrer-lhe o corpo com o olhar. Em momentos de maior desvario, imaginava que o abraçava, indefeso, e lhe arrancava o pano que a separava de algo tão indefinível que só se reconhece quando se volta a experimentá-lo. Louca! O mais perto que conseguia chegar desse algo indefinível acontecia quando, antes de adormecer, se persignava interminavelmente com o crucifixo, em que um Cristo em tudo igual, só que mais pequeno, abria os braços de impotência perante tal carência. Elevava-o ao rosto, aos lábios, beijava-o: “Em nome do Pai”; baixava-o até ao ventre, a rojar sempre um pouco mais abaixo, a cada descida: “do Filho”; roçava com ele os peitos, por cima da camisa de dormir: “do Espírito… Santo”.


Pouco depois, de cabelo cortado e pescoço escanhoado, o presidente abandonou a barbearia do “ti” Matias, seguido pelo secretário. O padre Onanias sentou-se, pediu só uma aparadela, e daí a pouco estava na igreja.

Dona Veludina, a esposa do presidente da Junta, veio pedir-lhe para se confessar. Era uma paroquiana muito bem arranjada, de uns cinquenta anos. Como ainda faltava quase meia hora para a missa, o padre acedeu. Pôs a estola e sentou-se no confessionário. Do outro lado da grelha, a senhora, em vozinha sussurrante, pediu perdão dos pecados e começou a estender um rol dos atos que vinha a praticar com o seu homem e que ela temia que fossem pecados da carne. Pormenorizava o que ele fazia, como fazia, com que vagares. O padre Onanias, envolvido pelo perfume floral de dona Veludina, ia ouvindo a confissão num fluxo morno ciciado junto ao ouvido, tentando avaliar se a paroquiana era culpada de luxúria ou tudo se devia ao cio do marido. Foi a voz suave de dona Veludina que se encarregou de o elucidar: queria confessar tudo, porque se sentia culpada de ter gostado e de ter colaborado com entusiasmo. “Perdoai-me, padre, que eu pequei!”, pedia. O sacerdote observava o rubor do rosto da pecadora, os lábios cheios, o suave arquejo do peito generoso. Concluiu pela condenação: vinte padre-nossos.


Dona Veludina sentou-se na sua cadeirinha almofadada da primeira fila e esperou pela missa, enquanto cumpria a penitência. Sentia-se mais aliviada. Tinha confessado tudo. Ou quase. Tinha descrito as partes mais escabrosas, mas dissimulara com quem praticara os atos confessados. Não tivera coragem de contar que, às vezes, enquanto o marido ia à reunião com o presidente da Câmara, na cidade, ela se encontrava com o secretário Azeitão, num anexo da Junta. Por outro lado, cedera ao prazer mórbido de se alongar em pormenores, para ver a reação do jovem padre. Pressentira a sua perturbação, o que, perfidamente, lhe agradara.


O padre Onanias disse a missa um pouco inquieto. Não que duvidasse da sua vocação, mas aquela vozinha insinuante reavivara-lhe algumas memórias gratas de adolescente. Quando chegou o momento da comunhão, dona Veludina encabeçou a pequena fila de comungantes. Ajoelhou à frente do padre, entreabriu a boca, pôs a língua ligeiramente de fora, estendeu um pouco o rosto para a frente e fechou os olhos. O padre, sugestionado, pensou reconhecer nesta visão uma das peripécias lúbricas ouvidas há pouco em confissão, mas mal hesitou: pegou na hóstia branca e, com calma forçada, depositou-a na língua húmida e rosada da cativante paroquiana. Logo a língua se recolheu com a sua preciosa carga, como se recolheu dona Veludina à sua cadeira, de cabeça humildemente baixa, tentando não morder o que era para manter na boca até se liquefazer.


Acabada a missa, o padre Onanias refugiou-se no seu pequeno reservado da sacristia. Depois de, em gestos rápidos, retirar os paramentos, sentou-se na cadeira da escrivaninha e abriu a sua Bíblia, de onde retirou um “santinho”. Era uma reprodução de uma “virgem do leite” do pintor Frei Carlos, que ele procurava em momentos de maior perturbação, desde os longos tempos de desamparo do seminário. Reviu o rosto adolescente da imagem, o olhar inocente, a boca onde parecia aflorar um sorriso compreensivo. Demorou-se a contemplar o seio da Virgem, que esta apertava, e do qual jorrava um fino esguicho de leite em direção à boca do Menino, da qual escorria em veios brancos pelo queixo. A estampa, talvez pela assumida carnalidade, desencadeava sempre um movimento do seu âmago, desta vez potenciado pela visão dos seus dedos a introduzirem na boca recetiva de dona Veludina o corpo de Cristo, com a mesma delicadeza com que agora seguravam o seu corpo e, mentalmente, repetiam o mesmo gesto. A centelha celestial não tardou. Em arrebatamento. Em ausência de si. Em transcendência. A comunhão com o divino atingia-se de muitos modos.


Joaquim Bispo


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Este conto foi um dos selecionados para a 24ª edição (novembro/dezembro de 2020) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 79 a 81).


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_24__edi__o


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Imagem: Frei Carlos, Virgem do leite, 1518–1525.

Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.


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10/08/2015

Saudades da Minha Terra


Sou camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa, rodeado de carros e camiões, mas sozinho, a ver desfilar cidades para lá das estradas, e serras para lá das cidades, a trabalhar demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão bela e tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e, depois, ia passar o mês inteiro de férias a visitá-la, a conhecê-la, a amá-la.

Assim que cheguei, fechei-me em casa, cerrei as persianas e ferrei-me a dormir, como se já não dormisse há semanas, o que não era completamente mentira. Queria recuperar o vigor, nem que para tanto gastasse dois ou três dias de férias. Durante horas incontáveis, dormi profundamente, pressentindo o meu corpo a relaxar, a distender-se, a ganhar as formas que a Natureza lhe quis dar. A certa altura, senti-me leve, solto, fluido. Acordei aéreo, atmosférico. Achei-me um pouco estranho mas, longe de me inquietar, aceitei-me e foi sob essa feição que parti finalmente a conhecer a Minha Terra.

Iniciei a viagem muito lentamente, como leve aragem, percorrendo a sua superfície. Subi o Alentejo langorosamente, acariciando a planície, a contrapelo. A Minha Terra parecia agradada. Mostrava-me, de vez em quando, o branco dos seus casarios. Avancei silencioso e morno. Balancei-me, delicadamente, no sobe e desce das pequenas elevações e das suaves baixas. Insinuei-me nos vales dos maciços centrais, explorando cada dobra, evaporando a geada de uma várzea aqui, ondulando o pasto de uma encosta acolá. Subi as serras atapetadas pelo mato, monte a monte, envolvi os cumes em névoa. Sussurrei segredos às fragas. Do alto dos talefes, alarguei a atenção, a escolher outras explorações. Entusiasmado, desci os declives, mais apressado que na subida, fiz ondular a cabeleira das florestas, deambulei por entre os troncos majestosos. Soprei sobre as gargantas, os riachos e os açudes. Desci às grutas. Brinquei com a água das fontes e das lagoas, deixei-me arrastar pelos caudais dos rios. Humedeci, liquefiz-me.

Agora eu era mar. As minhas ondas batiam nas arribas, lambiam as rochas de baixo para cima e estas ficavam a escorrer, lascivas. As vagas do meu corpo recuavam e logo voltavam, altas e empenhadas. No Algarve, brincavam por entre as rochas esburacadas, a fazer cócegas à Minha Terra. E ela a provocar, a abrir enseadas, a elevar promontórios, a estender cabos, atiçando o meu corpo líquido. As suas areias a arder, a chamar pelo meu afago refrescante. E eu fluía e refluía sobre as areias da Minha Terra, uma e outra vez, afagando-as numa dolência de amantes. No Minho a arrepiá-las com as minhas carícias geladas. E a entrar atrevido no estuário de Viana. A surpreender a Minha Terra com uma incursão inesperada na foz do Douro. E depois, grosso e seguro, a encher a Ria de Aveiro. E a retirar-me maroto e sabido. E a deixar um gosto salgado e sensual. Ao mesmo tempo, o meu corpo longo e ondeado roçava-se nos extensos areais do Sul, toque aqui, toque ali. A costa alentejana, cheia de refegos, a resistir mal. E eu a rebolar-me nos areais da Comporta e de Troia, guloso e lúbrico. A experimentar, obsceno, o estuário do Sado, crescendo demorado em vagares maliciosos: maré-cheia, maré-vazia. Iludindo. Insinuando Setúbal e apontando a Lisboa. Fluindo e refluindo. Engrossando. Em maré viva, franqueio a barra do Tejo, transponho a Ponte 25 de Abril e espraio-me em plenitude pelo Mar da Palha. E refluo, e volto com mais vivacidade. Uma e outra vez. Venço a resistência da Ponte Vasco da Gama, encho esteiros e valados e alcanço Vila Franca. E, fecundador, inundo a lezíria. Avassalador, imenso, cósmico.

Durante muito tempo, o meu espírito anda disperso pelo éter. Flutuo num limbo, sem energia nem densidade. Onde estou, por onde andei? Lentamente, tomo consciência de mim. Estou alagado em suores, humores, fluidos. Parece-me que a viagem demorou um mês inteiro, mas não durou mais que umas horas. Foram o suficiente para que o meu corpo e o meu espírito se unissem profundamente à Minha Terra. Dissolveram-se e voltaram a condensar-se. Inteiros. Refeitos. Apaziguados.

Nunca pensei que as minhas saudades dela fossem tão grandes!

Joaquim Bispo
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(Este conto foi publicado no número 8 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2008)

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Imagem de Jackie Adshead, na net
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