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10/12/2023

Obra de misericórdia

 



Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato:

Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?

Era a sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade. Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes turísticos da zona.

Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco — lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa, sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora, vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?

Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então, agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente, escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal, mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.

A sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte desdobrava-se em perguntas.

Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma encomenda de uma peça para metro e meio. Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.

Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!

Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete, ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.

Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? — brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.

Ah! Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical. Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”, não sei se conheces.

Com programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe oferecia.

Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim fechado, mas público.

Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em Roma.

Mas isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? — admirou-se Duarte.

Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração! Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!

Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?

Já leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.

Duarte começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.

Parece latim, mas não me serve de muito… Já estou esquecido. O que é que isto significa?

Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança o que for preciso.

Filial?

Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do carcereiro, na visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia, “alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos, ambiguidades.

Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da amiga.

Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.

Duarte não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim. Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:

A mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.

Sobrinha!

Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora. Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados a olhar para a cena pintada?

Não sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás, parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas representando este tema. Pompeia! Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.

Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel relevante na sua popularidade.

Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha, se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar atirado para o alto da jovem representada — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio, acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para ela, há tanto tempo.

Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão ou mais passado do que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já tivera melhores dias.

Sabemos pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual. Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu. Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão dócil e sedosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura terna:

Chh! Com jeitinho!

Duarte não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão. Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”, suspeitou Duarte, por fim.

Em breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além, tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.

Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo lá do alto tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente. E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.

Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para afinar o modelo final da sua escultura.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 42ª edição (novembro/dezembro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 85):

https://drive.google.com/file/d/17eHuCBSfBm8MdceDc5oZApqQZcN-tIMv/view

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Outra versão deste conto tinha sido o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de leitores de Alcains, com a moderação de Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul.

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Imagem: Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.

Jardim Botânico Tropical, Lisboa.

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10/08/2021

As mulheres da Ourela

 

As mulheres da Ourela são o amparo da casa. Robustas e determinadas, ganharam admiração e proteção das deusas primordiais. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos, balançando as ancas cheias. Como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na Ourela, para lhes fruírem os meneios, em vez da rigidez de antanho.

Na década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e brilhante.

Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e, pelo meio dos pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, tenteando o peso, abanando as ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática religiosa, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas ourelenses e, disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para abusar de alguma delas.

Na década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da Ourela voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro.

Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milheirais, melanciais e aboborais, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade, em setembro, feijoeiro a feijoeiro. Calcorreavam extensões enormes, dobradas, apanhando as vagens maduras para as cestas, que eram despejadas em panais, que eram atados em trouxas quando as pilhas transbordavam, que eram carregadas para o carro de vacas, que as levava para a eira.

Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida.

A mais nova estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita.

Se houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra ninguém.

Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam segunda ao alvorecer. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!

Na década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Ourela amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas.

Mesmo com poucos homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora do Alto. No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Ourela, cantando modas menos religiosas que à ida.

Na década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a vulgarização do gás e a chegada da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de cinzas.

As mulheres da Ourela punham os cântaros à cabeça e percorriam distâncias, até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o seu caminhar!

Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.

Aos poucos, as mulheres da Ourela deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças.

Felizmente, Hera, também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Ourela voltaram a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso deleitado no rosto divino.


Joaquim Bispo

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Com o título “As mulheres da Paradanta”, este conto integra a coletânea resultante do X Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil, de 2016.

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Em 2021, também com o título “As mulheres da Paradanta”, foi um dos selecionados para a 28ª edição (julho/agosto de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 103 a 105).

http://revistaliteralivre.blogspot.com/2021/07/revista-literalivre-28-edicao.html

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Uma versão reduzida deste conto foi publicada na edição número 1703, de 18/08/2021, do jornal Gazeta do Interior.

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Imagem: Cariátides [figuras femininas esculpidas, servindo como suportes de arquitetura — colunas ou pilares] do templo Erectéion, Acrópole de Atenas, obra de 421–406 a.C. atribuída ao arquiteto Mnésicles.

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10/03/2020

O cavalo que queria ser famoso



Era uma vez um cavalo que vivia em Pádua. Servia como montada de um capitão do exército, e o que se vai contar passou-se há muitos anos, quando as guerras eram feitas com cavalos e espadas.
Certo dia, quando o cavalo estava no tronco para ser ferrado, entrou um ladrão no recinto. O meliante, que vinha armado, levantou um ferro para bater na cabeça do ferrador. O cavalo assustou-se, e, como ainda não estava com as patas presas, pregou um valente coice no assaltante, que foi abater-se contra um muro. O ferrador ficou muito agradecido e disse ao cavalo:
Vou cravar-te, no casco da pata direita, uma ferradura, que me deu um génio, há muitos anos, por serviços prestados. Quando estiveres em perigo, raspa com ela no chão e diz três vezes: Hihihipoho.
O cavalo foi-se embora e quase que se esqueceu do assunto, mas um dia, em grande galope numa batalha, tropeçou e estatelou-se com uma pata partida. Lembrou-se logo da ferradura mágica do ferrador; escarvou o chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Encontrou-se, de repente, numa clareira duma floresta de carvalhos e viu um génio, que era homem da cintura para cima e cavalo da cintura para baixo, que lhe disse:
Que ajuda precisas, cavalo?
Parti uma pata e quero que me salves de ser abatido. Um cavalo de pata partida já não serve para montada de ninguém.
O génio deu três sacudidelas com a cauda e o cavalo ficou curado.
Ainda tens dois pedidos — disse o génio esfumando-se. — Usa-os bem!
Ora, uns tempos depois, passou o “nosso” cavalo no adro da basílica de Santo António e, como o seu dono encontrou outros cavaleiros e se pôs a conversar, pôde admirar a estátua equestre ali erguida. O cavalo de bronze era tão possante, que parecia ser ele que dirigia o cavaleiro. Perguntou aos outros cavalos, quem era aquele da estátua, mas nenhum soube dizer. Então, interrogou um pombo que por ali andava e este respondeu:
O cavalo, não sei, mas o cavaleiro é o grande comandante veneziano Gattamelata, esculpido pelo, não menos famoso, Donatello. É o que ouço dizer.
O cavalo ficou tão impressionado pela majestade da estátua que, após muito meditar, resolveu que ia dedicar o resto da vida a servir alguém famoso, para ser retratado com ele para a posteridade e também ficar famoso. Quando ficou a salvo dos olhares humanos, raspou com a ferradura mágica no chão e disse três vezes “Hihihipoho”. Viu-se logo na clareira do génio-centauro, e este perguntou:
Que ajuda precisas, cavalo?
Não estou em perigo, génio, desculpa — explicou o cavalo —, mas preciso que me arranjes um dono famoso, para ser retratado para a posteridade, como o cavalo de Gattamelata.
Tu é que sabes! — ralhou o génio. — Olha que este pedido te pode fazer falta mais tarde!
Eu quero ser retratado em bronze, nada mais me interessa!
Então, o génio, vendo a decisão resoluta que o cavalo tinha tomado, disse-lhe:
É pena não teres pensado nisso um pouco mais cedo. Está a ser erigida, em Veneza, uma estátua equestre maravilhosa, a do comandante veneziano Bartolommeo Colleoni. Mas é melhor veres.
Dito isto, apareceu no centro da clareira uma estátua equestre. O cavalo parecia mais pequeno que o de Pádua, mas estava esculpido com tal garbo e com tal realismo de pormenores, que parecia vivo.
É assim mesmo que eu quero! — emocionou-se o cavalo.
Infelizmente, quem fez este já não faz mais; foi esculpido por mestre Verrochio, que morreu há pouco. Mas, sempre te digo, que o seu discípulo Leonardo é um artista prometedor a quem muitos poderosos já recorrem. Queres ficar ao seu serviço?
O cavalo relinchou agradecido e pouco depois achou-se em Milão, na cavalariça usada por Leonardo da Vinci. Estava este a arquitetar uma estátua equestre gigantesca, de mais de sete metros atuais, para a corte de Milão, pelo que observava e desenhava cavalos, anotava a medida de cada parte do seu corpo, para encontrar a proporção ideal, e tentava arranjar maneira de fundir uma peça tão grande. Também o nosso cavalo foi sujeito a medidas rigorosas, o que muito o alegrava, imaginando já, retratada em escala monumental, alguma parte do seu corpo, se não o todo. Ao longo de dois ou três anos, viu multiplicarem-se os esboços, e crescer o modelo em barro. Infelizmente, antes de a estátua final estar acabada, o bronze foi necessário para fazer canhões e o projeto foi abandonado.
Muito triste com o malogro, o nosso cavalo escarvou, outra vez, o chão e disse três vezes “Hihihipoho.
Que ajuda precisas, cavalo? — perguntou o centauro na clareira de carvalhos.
O projeto de Milão fracassou. Estou desesperado, não sei o que fazer — choramingou o cavalo.
Não te prometo nada, mas se te mantiveres sempre perto de Leonardo, estou convencido que acabarás por ter êxito.
E, assim, foi o nosso cavalo parar a Florença, onde Leonardo veio a ter a encomenda da pintura mural de uma batalha, para o salão nobre do palácio do governo da República. Foi escolhida a de Anghiari — uma batalha entre florentinos e milaneses — cujo motivo central Leonardo resumiu ao choque selvático entre quatro cavaleiros. Durante longas horas, o nosso cavalo posou, pacientemente, nas cavalariças de Santa Maria Novella, onde Leonardo preparava um enorme esquiço, que depois transferia para a parede do palácio. Jurava, para si próprio, que a cabeça do cavalo mais à direita, embora em esgar de furor, era tal qual a sua. Infelizmente, Leonardo era lento a trabalhar e começou a ser solicitado por trabalhos mais bem pagos, de modo que a pintura da batalha não chegou a ser concluída.
O nosso cavalo ficou muito desanimado, mas, quando pensava que era o mais infeliz dos cavalos, sobreveio o pior: o seu artista, o homem a quem tinha dedicado tantos anos de sacrifício, em poses longas e difíceis, tencionava abatê-lo para lhe estudar o esqueleto, os nervos e os músculos. Entrou em pânico. Assim que pôde, raspou com a ferradura mágica no chão e gritou:
Hihihipoho. Hihihipoho. Hihihipoho.
Por que me chamas, cavalo? — perguntou o génio.
Salva-me, por favor, que Leonardo quer abater-me para me estudar os ossos.
Ó cavalo, tenho muita pena, mas já esgotaste os pedidos! Eu avisei-te! — respondeu o génio, com um ar muito contristado. — Não posso fazer nada. E, além do mais, já tens que idade!?; mais de vinte anos! Eu, se fosse a ti, continuava com Leonardo. Dizem que os desenhos que faz, de ossos e músculos de homens e animais, são tão admiráveis como as suas pinturas e as suas máquinas de guerra. Assim, como assim, a que é que querias dedicar-te nessa idade?
O nosso cavalo voltou para casa, resignado. Umas semanas depois, Leonardo dissecou-o, examinou e mediu todos os elementos, e desenhou-os com todo o rigor. Nessa altura, andava empenhado em comparar o esqueleto e os músculos dos membros do Cavalo e do Homem.

Assim acaba a história do cavalo que queria ser retratado como os famosos, o que, de certa maneira, conseguiu. Ninguém pode dizer que os rascunhos de Da Vinci para o grande monumento de Milão ou para o salão de Florença tenham elementos de um único cavalo, mas alguns investigadores estão convencidos de que os esboços anatómicos de um cavalo que são comparados com os de um homem são de um só animal, um que nós sabemos!

Joaquim Bispo
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Este conto foi publicado no nº 10 da Revista de Artes e Ideias, Alma Azul, Coimbra, 2014
e,
por seleção em concurso literário, integra — páginas 54 a 58 — a antologia “Zoonarrativas Zooopoéticas” da Editora Jogo de Palavras, de março de 2019:


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Imagem: Maria Leal da Costa, Luís Valadares, Cavalo Alter Real, 2005.
Alter do Chão
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10/07/2018

A Estátua sem Rosto




O que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus pés era apenas «(…) mingo, 5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)», mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos, apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam inaugurações.
Ribeira de Velas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do avesso havia dois meses. Máquinas e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento, repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D. Moniz — de que falava o folheto — na praça com o nome do monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Velas, o que constitui um motivo de orgulho para a cidade.
Alertado pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia de inauguração, estava presente uma representação da Câmara Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano e ao que ele representou para Ribeira de Velas. A seguir, falou a presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente, alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem alta: «Senhora presidente, o povo não está contente; el-rei D. Moniz não tem cara nem nariz», o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso, estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se, talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz, e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o manto majestático; a cruz da ordem de Cristo, por ele fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e trinta poemas; além de uma mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista. Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
Mestre Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
Tem um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora — explicou o escultor. — Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito da estilização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra, não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que representam. Não sei se me fiz entender.
A opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de não existirem imagens do rei? — insistiu o repórter.
Não — continuou o artista —, há imagens que, sem serem da época, são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos. Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor que fez parte do júri de seleção dos vários projetos apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a representação realista dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo quando pensamos que está morta, extinta e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados, como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí, não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível, a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida pelas pessoas — como parece que as vossas reticências ilustram — cavou fundo no grupo de decisão.
Mas, afinal, ganhou? — interveio o repórter.
Não ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante, em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o celebrado David de Miguel Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos — uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para liquidar Golias — e que vivemos rodeados de significantes, desde a linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino ingénuo e sonhador — que é o que na verdade foi — do que o combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta vez os mouros de Marrocos. Não podia ser mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
Então, quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o caracteriza está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
Exatamente! Estes são os caracteres com que se pronuncia D. Moniz.
Não sei se o repórter ficou convencido, mas isso também não se lhe exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao grosso da população que não tinha estado presente.
Na verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma opinião sobre o assunto.
Mas você diz que aquilo está bem feito? — protestava agastado o Sr. Albano.
Um espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores. Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus, os das flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix, que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por “pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr. Albano?

Joaquim Bispo

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(Esta ficção baseada em esculturas reais foi publicada no número 38 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2013.)

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Escultura: Luís LaRoche, Rei D. Dinis, 2009 (?).

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10/04/2018

O suplício de Pigmalião



Com um pedaço de barro se fez o Homem — diz o texto antigo.
Com uma porção de pasta de moldar encho as mãos. Amasso-a entre dedos e palma, longamente. Aquece, amolece, como massa de pão. A tepidez potencia a impressão de textura de pele. Sinto que não há nada mais sensual.
A pasta revela-se infinitamente moldável, maleável, modelável. Obedece docilmente aos movimentos não pensados das minhas mãos.
Sem que as procure, surgem-me formas anatómicas. Como não, se vivemos rodeados delas, nos seres, nas pessoas? Crio espessuras, rotundidades; ensaio estiramentos.
Surgem cabeça, tronco, ancas, primeiro como meros esboços de volumes, depois em refinamentos de formas femininas. Crescem membros delicados. A textura do material, acetinada, torna-se cúmplice. Irrompem seios, face, cabeleira, dedos.
Completa, perfeita, a figura feminina reclina-se na minha mão, mansamente. A ilusão de vida é total. Uma emoção perturbadora apodera-se de mim.
Alucinado, invoco os olímpicos, mas esses deuses que se apiedaram de Pigmalião, quando o escultor se apaixonou pela sua obra, mantêm-se incomunicáveis.

Um suplício é acrescentado à lista mitológica e uma sombra de tristeza primordial instala-se, profunda, nos meus olhos.

Joaquim Bispo

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Uma versão deste miniconto integra a antologia do I Concurso de Minicontos Autores S/A — Autores S/A e Editora Penalux, Brasil, 2013.
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Imagem: Jean-Léon Gérôme, Pigmalião e Galateia, 1890.
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