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10/08/2022

A selva

 


Há muito que os homens saíram da selva. Não lhes servia tanta incerteza, tanto perigo de vida. Aos poucos, com avanços e recuos, organizaram-se para autodefesa, assistência mútua, caça. Criaram normas de funcionamento coletivo do grupo, muitas vezes tácitas, outras bem expressas. Para evitar aproveitamentos egoístas. Para que o grupo fosse o lar de cada um. E afastaram-se da selva e das suas práticas ferozes.

Sem que o percebessem, os animais observavam-nos, curiosos, e acabaram por conseguir copiar o Conselho da Tribo. Pelo menos em alguns dos seus aspetos formais. Chamaram-lhe o Conselho da Selva e funciona desde então. Reúne-se uma vez por ano, ou a qualquer momento, em sessão extraordinária, a pedido de algum grupo. Geralmente, é apresentado um problema, levantada uma questão, feita uma queixa ou uma reivindicação. Segue-se alguma troca de ideias, muita algazarra, mas por fim o Conselho costuma concluir com uma declaração por maioria absoluta.

Muitas e muitas reuniões do Conselho já aconteceram ao longo dos milénios. Da maioria não restou memória, mas de outras foram guardados registos, geralmente em cascas de árvores ou numa escrita indecifrável em campos pedregosos. Por exemplo, há uns sessenta anos, foi realizada uma reunião a pedido dos castores. Decorreu numa mata contígua a um rio nórdico. Dado o início, um castor barbado com ar envelhecido, tomou a palavra:

— Caros companheiros silvícolas, estamos fartos de cortar e transportar árvores de sol a sol, sem a ajuda de ninguém. Há milénios que o fazemos, sem lamúrias da nossa parte, nem razão de queixa, da vossa. As barragens vão-se construindo, com esforço nosso, que ninguém reconhece, mas com grande beneficio para todos. Continuaríamos a fazê-lo sem queixumes, se as condições não estivessem a mudar. Mas estão. Os nossos filhos precisam de acompanhamento, as nossas famílias precisam de atenção. Os tempos são de cuidados e apoio ao desenvolvimento dos jovens e de maior convívio familiar. Não podemos, não queremos, chegar a casa tão tarde e de ânimo derrubado por tanto trabalho. Daí, que chegámos a esta situação limite, em que temos de ser bem claros. Das duas, uma: ou alguns dos excelentíssimos grupos aqui presentes se comprometem a ajudar-nos a construir as barragens, ou não as tomem como certas; porque não cortaremos nem mais um galho depois do entardecer. Gostaria que refletissem bem se querem os rios represados, de modo a servirem todos, ou se querem deixar a água ir-se embora.

Gerou-se um burburinho, mas que era habitual em cada Conselho. Algumas poucas vozes manifestaram-se a favor dos castores, mas a grande maioria estava até escandalizada com a desfaçatez daquela reivindicação. Ao fim de pouco mais de meia hora, estava o consenso formado. Um gato gordo e lanudo foi o encarregado de resumir a superior posição conjunta do Conselho:

— Oiçam lá, amigos dentolas — declarou ele —, não venham para aqui com essa moda dos homens, das oito horas de trabalho, que aqui não há regras nem regulações; aqui é a selva!

A reunião foi dada por encerrada e não se falou mais nisso.

Há quarenta e tal anos, foi a vez da passarada granívora pedir a reunião do Conselho. Decorreu num campo de restolho ressequido de centeio. Um pardal empertigado, mas nervoso, explicou a reivindicação da classe:

— Como sabem, recentes acontecimentos da área humana e suas decorrências provocaram uma grave rutura na já enfraquecida produção agrícola. Semeou-se muito menos, pelo que houve poucas searas. Temos estado a viver à míngua. Esquadrinhamos campos e mais campos, mas, entre grãos soltos e respigos, não conseguimos enganar a fome. O que reivindicamos é uma mesada, um papo mínimo de grãos, para podermos viver com dignidade, sem andar a pedir nem a roubar.

Como sempre, muito burburinho, alguma discussão e a sábia decisão do Conselho.

— Ó companheiros dos bicos curtigrossos — explicou o falcão encarregado de divulgar a determinação —, vocês até podem ter muita razão, mas não se percebe quem iria buscar tanto grão, nem aonde, ou onde se iria armazenar, e quem iria administrá-lo… Um tal pacto social obrigaria à criação de uma organização enorme, que iria agravar o problema. Além disso, vêm aqui fazer reivindicações, mas nenhum ser que viva na selva pode reivindicar quaisquer direitos. Isso de salários mínimos são modas dos homens. Aqui, cada um que trate de si; é a selva. Quem não aguenta arreia… Porque não se tornam carnívoros?

A reunião terminou com muitos piados tristes e outros irados, mas a vida na selva prosseguiu como antes.

Outras vezes se reuniu entretanto o Conselho da Selva, mas o plenário de há uns cinco anos foi especialmente participado e demorado. Fora solicitado por um amplo conjunto de animais, com as seguintes queixas:

— Tem havido muitos incêndios, há zonas em que o pasto, com a seca, desapareceu, mas há outras que se mantêm férteis — expôs um coelho. Seria sensato que se reservasse uma parte do pasto das zonas fartas, para apoiar as que o não têm.

Antes que houvesse oportunidade de se iniciar a vozearia, o presidente da mesa — um javali —, mandou avançar o segundo orador.

— Há muitos rios poluídos — alegou um sável —, os nossos irmãos têm de se deslocar para águas não poluídas, mas onde a comida não dá para todos — os que estão e os que chegam. Seria inteligente criar uma bolsa de comida para distribuir pelos carenciados.

Novo gesto rápido do javali, novo orador.

— A população cresceu, mas cada vez são menos as zonas livres de pesticidas, que envenenam larvas, insetos e minhocas — explicou um melro. — Os recursos, como estão distribuídos, não dão para todos. Deveríamos encontrar uma solução que permitisse que todos pudéssemos viver. Não faz sentido, nos tempos tão civilizados em que estamos, que uns vivam bem, sem dificuldades, sem preocupações de aonde ir buscar a comida, e que outros sobrevivam cada dia na angústia da fome.

— Sabem o que ouço dizer aos homens? — interveio um cão. — Como é público, eles inventaram máquinas para tudo, de modo que muitos serviços são feitos por elas, e os trabalhos que exigem mão humana já não chegam para todos. Não se trata de não quererem trabalhar; é que ora uns, ora outros, muitos são obrigados a ficar sem trabalho. E os subsídios de desemprego, que deviam tapar os buracos no sistema, afunilam e deixam muitos homens de fora. Em risco de fome. Como nós. Ouço-os discutir e dizer que as sociedades humanas e organizadas não deviam ser tão ferozes com os seus desempregados; que têm a obrigação humanitária e racional de criar condições de vida para todos; que deviam inventar um sistema em que cada ser humano tivesse acesso a uma distribuição mínima, só por estar vivo. Para se manter vivo. Quer tivesse trabalho ou não. Posso garantir-vos que eles estão a pensar seriamente nisso. Mas, é claro, eles são inteligentes.

Gerou-se uma algazarra diluvial. O caso não era para menos e suscitava o desagrado, quando não a revolta, de grande parte do auditório. Foi precisa a intervenção áspera do presidente, para trazer alguma contenção à reunião.

— Tanto quanto sei — continuou o cão —, essa distribuição mínima, a que chamam Rendimento Básico Incondicional, será uma prestação atribuída a cada pessoa, independentemente da sua situação financeira, familiar ou profissional, e suficiente para permitir uma vida simples, mas com dignidade. Para evitar a penúria extrema, raiz de todas as indignidades. Os homens querem mesmo aplicar essa solução, que só não avançou ainda porque estão a tentar encontrar um equilíbrio entre um contributo doador, que não seja desmotivador, e um envolvimento recebedor suficiente, mas que não gere ganância.

— Isso não faz nenhum sentido, na selva! — adiantou-se um lobo. — Nós nascemos na selva e nela queremos continuar a viver. É na selva que desenvolvemos o nosso estado natural. Alimentamo-nos, procriamos, sobrevivemos. Conhecemos os nossos amigos, conhecemos os nossos inimigos, sabemos aonde procurar comida, sabemos onde nos esconder. Nós devemos manter impoluta a nossa natureza. Leis, direitos, proteções especiais só viriam desvirtuar-nos. A nossa lei é a da sobrevivência, que não é uma lei; é um estado. Os mais fortes comem os mais fracos, os mais espertalhões sobrevivem melhor do que os menos astutos. Com genuinidade, com luta pela vida, com ferocidade e esperteza. E é assim que deve ser.

Esta intervenção provocou um ribombar de aplausos e clamores de entusiasmo, perante os olhares desanimados dos queixosos, e praticamente determinou o parecer final do Conselho.

— Meus amigos — leu o bufo real, muito compenetrado —, todos sabemos que a vida é difícil para quem vive na selva e que por isso muitos gostariam de experimentar soluções abstrusas, que lhes parecem boas, mas sabemos que é o idealismo a falar. Sempre assim vivemos, sempre preferimos a selva às malucas derivas dos homens. Não há nenhum homem que goste de viver na selva mais do que nós. A selva é um ambiente natural. Não tem leis. A preocupação que temos com os outros é se pertencem à nossa cadeia alimentar. E se os comemos é sem rebates de consciência, sem hesitações, sem rancor. E ninguém fica incomodado com isso. Cada um faz o que quer, se puder. Cada um tenta sobreviver como pode. É o nosso amado modo de vida. Sabemos que pode parecer cruel, mas tem a beleza inigualável da autorregulação. Nem todos vivem bem, nem todos sobrevivem, mas é assim; é a selva.

Desde então, não tem havido reuniões extraordinárias do Conselho.


Joaquim Bispo

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Imagem:

Alberto Giacometti, O cão, 1951.

Museu de Arte de Seattle, USA.

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10/07/2016

toda. A semana



(Continuação:) (...)tava no lugar do condutor.

Na segunda-feira, estava um carro estacionado mesmo em cima da passadeira de peões que dá acesso à minha casa. Incomodado, afixei-lhe, a meio do para-brisas, um pequeno autocolante amarelo, que trago sempre comigo, que dizia: Estacione bem — Respeite os outros.

Na terça-feira, deparei com o mesmo carro estacionado na passadeira. Indignado, apliquei-lhe, desta vez, um outro pequeno autocolante vermelho, que dizia: Mal estacionado — Sujeito a reboque.

Na quarta-feira, o carro estava outra vez na passadeira. Irritado por a minha ação pedagógica não resultar, levantei-lhe os limpa para-brisas.

Na quinta-feira, lá estava o carro na passadeira. Exasperado com tanta falta de respeito pelos outros, coloquei-lhe um palito na válvula do pneu dianteiro direito. O ar ficou a vazar.

Na sexta-feira, o carro estava, uma vez mais, na passadeira. Furibundo, puxei da chave de casa e apliquei um risco profundo a todo o comprimento do carro.

No sábado, o carro já não estava na passadeira, finalmente. «Há pessoas que só entendem a linguagem da violência» — pensei.

No domingo, verifiquei, com horror, que o para-brisas do meu carro, bem estacionado, estava estilhaçado. Uma perna de um tanque de lavar roupa, em cimento, esprei(...)

(Continua na primeira linha.)
Joaquim Bispo

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Imagem: M. C. Escher, Espirais, 1953.

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(Este miniconto bebeu inspiração na estrutura rítmica de um pretenso “poema do budismo tibetano” e persegue uma estrutura circular. Foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

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