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10/08/2025

O Livro de Labrão

 


Por aqueles tempos, Labrão subiu ao Monte Scopus e postou-se no monumental miradouro de onde se avistava uma grande fatia da cidade velha de Jerusalém. Daquela posição dominante, gostava de contemplar a que tinha sido a grande capital dos Hebreus e que um dia voltaria a ser. Ali se erguera o templo de Salomão, destruído pelos Babilónios, primeiro, e pelos Romanos, depois.

Quando se voltou, viu três homens parados, a fitá-lo, magníficos no seu esplendor, e logo reconheceu que o Senhor estava entre eles. Quis prostrar-se de rosto no chão, mas eles não o permitiram.

Deixa-te disso. Estou farto de mesuras hipócritas.

Vinde a minha casa, para que Vos prepare uma refeição. Comprarei o carneiro mais gordo do talho kosher.

Agora não tenho tempo. Enquanto te banqueteias com as sementes de todas as ervas, os frutos de todas as árvores, todos os peixes do mar, todas as aves dos céus e todos os animais que se movem na terra, que Eu te dei, há milhares de irmãos teus que tu matas à fome.

Labrão engoliu em seco. Agora também o Senhor vinha com o discurso de ódio dos inimigos de Israel.

Todos os meus irmãos têm o que comer e Vos estão agradecidos. Os meus inimigos que se danem!

E o que te leva a pensar que os teus inimigos não são teus irmãos e não têm direito ao banquete que Eu prometi a todos os Homens?

Vós sempre dissestes que nós éramos o povo escolhido.

Arrependo-me amargamente dessa declaração. Fiados nela, criastes um sentimento etnocêntrico de exclusão de todos os outros povos. Uma xenofobia repelente. Que vos levou a uma incapacidade de manter boas relações com os vossos vizinhos, ao longo dos tempos. Enganei-me terrivelmente. Vou escolher outro povo.

Não pareciam palavras do Senhor. Labrão tentou recordá-lo das antigas promessas.

Vós prometestes-nos a terra de Canaã, mas quando voltámos da grande diáspora, encontrámo-la ocupada por homens de um povo que não Vos adora. Por isso os expulsámos das suas casas, que nos pertenciam por dádiva Vossa. E os vamos matando de todas as maneiras e empurrando para o deserto, para que pereçam.

O clamor de sofrimento que Me chega das terras da Palestina e de todas as terras em volta não é mais tolerável. Afinal, transformastes-vos nos mais hediondos seres da Criação. E por isso vou ter de destruir-vos. Vou destruir Israel. O genocídio só a Mim pertence.

Labrão ficou uns momentos calado, os olhos muito abertos. Dominando o pânico, tentou apelar à compaixão do Senhor.

Mas nós somos justos, Senhor, seguimos a Vossa palavra e os Vossos ditames; nem todos são como dizeis. Se houver um milhão de justos em Israel, destruireis o justo com o culpado?

Se encontrar em Israel um milhão de justos, perdoarei a nação por causa deles.

Pode ser que não haja em Israel mais de cem mil justos. Ainda assim destruireis a nação e matareis cem mil justos?

Não; se encontrar cem mil justos em Israel, não o destruirei.

Talvez muitos justos estejam temporariamente tomados pelo espírito do mal e não encontreis em Israel mais de dez mil justos — regateava Labrão, até ao limite. — Destruireis Israel por noventa mil justos temporariamente confusos?

Não. Pouparei Israel se encontrar dez mil justos no país.

Os três homens afastaram-se e entre eles ia o Senhor. Labrão voltou para casa, com o coração apertado. Não tinha a certeza que o Senhor encontrasse dez mil justos em Israel, segundo este entendimento inesperado Dele.

Na manhã seguinte, Labrão voltou ao miradouro do monte Scopus. Ia tão ou mais angustiado que no dia anterior, porque, bem cedo, sentira convulsões da terra e ruídos tão profundamente graves, como nunca tinha ouvido. Olhou. Do ocidente, lá onde ficava Telavive, levantavam-se grandes rolos de fumo negro irisado. Mas também a noroeste e a sudoeste. Rasgou as vestes e prostrou-se por terra. Agora que Israel estava tão próximo de dominar todos os territórios de Canaã, acontecia uma catástrofe destas. Maldição!

Soube depois que ao alvorecer tinha chovido enxofre e fogo sobre as principais cidades de Israel, onde se localizavam as estruturas militares e administrativas do país, que ficaram reduzidas a cinzas brilhantes e fumegantes, sem que se conseguisse determinar a origem do bombardeamento.

Os sobreviventes dos colonatos e das pequenas localidades que não tinham sido atingidas, pareciam ter caído num estupor paralisante e mostravam-se incapazes de resistir à terrível reação dos palestinianos, que, armados de paus e pedras, se vingavam de dezenas de anos de espoliações, humilhações, agressões e mortes, chacinando quantos judeus encontravam. Toda a Cisjordânia foi limpa de colonatos, ainda nesse dia. Os Estados Unidos apressaram-se a enviar tropas paraquedistas, tentando estancar a matança e manter a presença americana na sua bem-amada colónia.

A seguir, apoiados em declarações antigas do Paquistão, atribuíram o ataque a esse país islâmico, possuidor de armas nucleares, e, verberando o seu “espírito antissemita”, bombardearam-no intensa e extensivamente, fazendo-o recuar, tecnologicamente à Idade da Pedra.

A comunidade internacional declarou, pouco depois, a criação de dois estados desmilitarizados no espaço global da Palestina e de Israel, pelas fronteiras definidas pela ONU em 1948, mas, desta vez, asseguradas por forças de manutenção da paz, e empenhou-se a reconstruir Gaza, terraplanada por Israel, e Israel, pulverizado sabe-se lá por quem.

Mas o espaço do antigo estado de Israel não era apelativo para os judeus do mundo inteiro, como fora antes. E os vários milhões de palestinianos, que tinham passado dezenas de anos em campos de refugiados nos países adjacentes, voltavam à Palestina à procura da casa dos seus antepassados e eram agora uma mole ameaçadora para qualquer veleidade judaica de reocupação.

Em sonhos, o Senhor apareceu de novo a Labrão. Este prostrou-se de imediato, de rosto no chão e implorou:

Senhor Deus, Criador do Universo, tende compaixão do vosso servo que muito Vos ama.

Não sejas palerma. Tens de saber distinguir uma mentira caridosa, de uma declaração de probabilidade razoável. Abraão e os teus outros antepassados aceitavam essa minha declaração, mas eram pastores e criadores de gado. Agora tu… Tu que já tens consciência do tamanho do Universo, diz-me: achas possível que um hipotético “Senhor Deus do Universo” prestasse atenção a um grupúsculo étnico, de uma espécie irrelevante, e o convencesse que é o suprassumo dos viventes?

Mas, Senhor, se não sois quem nos dissestes, quem sois Vós?

Aos teus antepassados rústicos disse que fora Eu o Criador do Universo — era o que estavam preparados para ouvir; a ti digo que sou um visitante vindo do futuro. É a explicação para que estás preparado.

Labrão abriu muito os olhos.

Nunca tinha pensado nessa hipótese…

A minha natureza é complexa. Talvez outros homens venham a estar preparados para outra explicação…

Labrão acordou, alagado em suor. O quarto estava vazio, mas sentiu um cheiro a metal aquecido. Talvez fosse apenas mais um miasma da nuvem nauseabunda que cobria os céus de Israel. Levantou-se, fez as abluções rituais e depois prostrou-se em oração, tentando reprimir uma animosidade por este Deus que não reconhecia. Em vão.

«Visitante do futuro? Aldrabão! Um dia, o verdadeiro Deus voltará. Que pena os serviços de espionagem não terem detetado a entrada no país deste terrorista. Deviam tê-lo bombardeado antes que atacasse Israel!»

Joaquim Bispo

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Imagem: O Senhor aparece a Abraão perto de Sodoma (ícone). Título, autor, data e localização da obra não encontrados.

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10/04/2017

Domingo de Ramos



O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram recebidos com aplausos e cânticos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O episódio matinal foi ignorado por quase todos os correspondentes estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que, por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, atualmente ocupada por Israel. Tornou-se um revoltado, quando viu a terra, que ele amava desde pequeno, ser colonizada, ocupada e apropriada aos poucos, por gentes, vindas de várias partes do Mundo. Viu que essas gentes eram incapazes de uma identidade médio-oriental, pois procuravam-na no território mas rejeitavam-na na cultura. Viu a segregação feroz do seu povo e a separação efetiva de territórios irmãos, devido à construção de uma muralha de betão de oito metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, tão cruel que chega a isolar populações, como as 450.000 pessoas de Jerusalém oriental.
Em vista do meu espanto, disse-me que, sem o quererem assumir, os dirigentes israelitas estão determinados a reconstituir a grande terra de Canaã das escrituras tradicionais, e a usar a força que for precisa contra os opositores à anexação do território palestiniano — destruindo cidades, utilizando armas proibidas contra populações civis, exterminando indiscriminadamente, sem olhar a idades. Tudo isto perante os olhos do Mundo e apesar do clamor internacional, incapaz de contrariar a posse das únicas armas nucleares da zona e o apoio incondicional do novo império mundial, que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao cobiçado oceano subterrâneo de petróleo.
Revoltado, como tantos outros palestinianos que esbracejam para ver o seu povo liberto do domínio estrangeiro, o jovem nazareno, porém, não se lançou nos braços da OLP ou do Hamas. De carácter meditativo, formou um grupo de ativistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de ações não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o território como dois estados irmãos. Diz ele que não faz sentido que Israel queira reconstituir um Estado confessional com o mesmo território que dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel, organizassem um Estado militarizado e passassem a expulsar os habitantes atuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se necessário.
Avesso à violência, também condena os atos de intolerância dos palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero. Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
Um homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a vinha. Assim se fez, mas quando o dono enviou emissários a recolher a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo fizeram ao filho do dono, cuidando apoderar-se definitivamente da herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando evidenciar a razão dos desapossados.
Mostra ser muito sagaz, embora idealista. Nicodemo, um membro do Knesset que acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada messiânica em Jerusalém foi decalcada do Antigo Testamento, como estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores, que esperam ainda o Messias. Entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem montado numa burra, e sobre o burrico da burra.»
Aparentemente, esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos judeus absortos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava, começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões, provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência. O burburinho foi imediatamente detetado por uma patrulha militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar.
O homem não só não parou como estendeu o braço para os soldados com dois dedos da mão levantados, talvez a formar o V de vitória. Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada. Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
O vídeo passou uma dúzia de vezes nas televisões, acompanhado da nota de que o desordeiro morrera pouco depois no hospital e de que os companheiros tinham sido presos e estavam acusados de alteração da ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para terrorismo.
Neste dia em que vos falo, o episódio está esquecido. Um enorme equívoco continua a matar silenciosamente naquela área. O nazareno pacifista foi só mais uma vítima anónima deste equívoco.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giotto, Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém [Domingo de Ramos], afresco, Capela Scrovegni, Pádua, Itália, 1305.

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(Esta crónica narrativa, com o título “Um muro de intransigência” foi publicada no número 23 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2009.)

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