O
que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus
pés era apenas «(…) mingo,
5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)»,
mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a
proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em
tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos,
apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam
inaugurações.
Ribeira
de Velas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do
avesso havia dois meses. Máquinas
e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento,
repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a
todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido
anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D.
Moniz — de que falava o folheto — na praça com o nome do
monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado
no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Velas, o que constitui um
motivo de orgulho para a cidade.
Alertado
pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que
ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia
de inauguração, estava presente uma representação da Câmara
Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a
vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano
e ao que ele representou para Ribeira de Velas. A seguir, falou a
presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça
ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns
dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente,
alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem
alta: «Senhora
presidente, o povo não está contente; el-rei
D. Moniz não tem cara nem nariz»,
o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso,
estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava
uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada
e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas
uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A
situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do
autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se,
talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um
esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas
considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz,
e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o
manto majestático;
a cruz da ordem de Cristo, por ele
fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto
pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e
trinta poemas; além de
uma
mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na
instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no
refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A
cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos
jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista.
Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
— Mestre
Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
— Tem
um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora — explicou o
escultor. — Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito
da estilização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os
outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra,
não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a
essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu
significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou
temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que
representam. Não sei se me fiz entender.
— A
opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de
não existirem imagens do rei? — insistiu o repórter.
— Não
— continuou o artista —, há imagens que, sem serem da época,
são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há
o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e
os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos.
Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a
estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor
que fez parte do júri de seleção dos vários projetos
apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha
do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que
retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão
de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador
da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a
representação realista dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que
admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de
representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a
cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação
naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo
quando pensamos que está morta, extinta
e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados,
como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí,
não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A
imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na
Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível,
a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de
cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A
sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação
realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida
pelas pessoas — como parece que as vossas reticências ilustram —
cavou fundo no grupo de decisão.
— Mas,
afinal, ganhou? — interveio o repórter.
— Não
ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante,
em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o
celebrado David
de Miguel
Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos —
uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para
liquidar Golias — e que vivemos rodeados de significantes, desde a
linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é
muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de
pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino
ingénuo e sonhador — que é o que na verdade foi — do que o
combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés
podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em
repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta
vez os mouros de Marrocos. Não podia ser
mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
— Então,
quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o
caracteriza
está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
— Exatamente!
Estes são os caracteres
com que se pronuncia D. Moniz.
Não
sei se o repórter ficou convencido, mas isso também não se lhe
exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e
se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao
grosso da população que não tinha estado presente.
Na
verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas
surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho
que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma
opinião sobre o assunto.
— Mas
você diz que aquilo está bem feito? — protestava agastado o Sr.
Albano.
— Um
espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está
porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem
nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores.
Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de
Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus,
os das flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix,
que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por
“pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi
a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um
grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr.
Albano?
Joaquim
Bispo
*
(Esta
ficção baseada em esculturas reais foi publicada no número 38 da
revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2013.)
*
Escultura:
Luís LaRoche, Rei D. Dinis, 2009 (?).
*
* *