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10/11/2021

O passeante invisível

 

Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém se deparou com ele ao dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Mas nunca ninguém duvidou que ele se passeava invisível por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras que eram, indubitavelmente, projeções da figura fantástica do passeante invisível. Outros garantiam ter ouvido sons abafados, momentâneos arrastamentos como de passos, que comprovavam que ele se passeava por ali.

A cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Físicas e organizativas. Os homens precisam de um lugar coletivo para viver. Estarem juntos dá conforto e segurança, mas demasiada proximidade torna-se inquietante. Estar a sós com outro homem numa rua deserta, noite alta, é tão ou mais assustador do que enfrentar os silêncios e os ruídos da noite na floresta, na serra, no campo. Os homens precisam de estruturas, muros que os separem dos outros homens.

O passeante invisível construíra a cidade, mantinha as estruturas fortes, escorraçava os inimigos, assegurava os fornecimentos. Ele é forte e destemido; passeia-se por toda a cidade, sobretudo no ermo da noite. Dizem. Porque veem sombras, ouvem certos sons reveladores, porque só pode andar por lá, invisível.

Olhem, lá vai a sombra dele, por entre os pilares daquelas arcadas — grita um.

Olhem, é ele, no reflexo do vidro daquela montra — clama outro.

Ninguém punha em dúvida estes avistamentos fantasmáticos. Toda a gente sabia que o passeante invisível andava por lá. Nalgum sítio havia de estar: nas arcadas, nos vãos das portas, nas gares rodoviárias ou marítimas. Os seus sinais vislumbravam-se sempre a desaparecer por detrás de alguma estrutura da cidade. Ele andava lá, mas invisível.

Conta-se que, em tempos que ninguém já recorda, um jovem, irreverente como todos os jovens, ao ouvir alguém asseverar, pela milésima vez, que acabara de avistar a silhueta do passeante invisível, não se conteve, como seria prudente:

O passeante invisível é uma invenção das vossas mentes sedentas de graça e do deslumbramento mitómano da primeira infância!

Um grande burburinho se gerou entre os que ouviram tal dislate. Quiseram bater-lhe, ou então que retirasse o que tinha dito, que pedisse desculpa.

Quem achas tu que construiu a nossa cidade, mantém as estruturas fortes, afasta os nossos inimigos e assegura os fornecimentos de que a cidade precisa? — confrontaram-no.

Fomos nós e os nossos avós que assim a moldaram; somos nós que a mantemos a funcionar com a eficácia possível. “Passeante invisível” é só uma expressão que reflete toda a nossa incapacidade de assumir que, em conjunto, conseguimos gerar obra com qualidades maravilhosas.

O jovem persistia no erro, mas, em breve, compreendeu que estava isolado e desacreditado. Pediu desculpa.

O alcaide, no entanto, não hesitou em tomar medidas que devolvessem à população toda a confiança eventualmente perdida e até a reforçassem. Emitiu um edital anunciando que, como, representante do passeante invisível, iria tornar possível e incontestável a identificação do protetor da cidade. Quem quisesse ver a roupa por ele usada, bastaria dirigir-se à alcaidaria, onde estaria exposta numa câmara junto à entrada.

Os muitos cidadãos que lá acorreram viram o que parecia andrajos de mendigo, dado o seu aspeto miserável, mas todos compreenderam que eram os mais adequados para alguém tão humilde que evitava mostrar-se. A confiança de todos fortaleceu-se. O passeante invisível continuava a proteger a cidade e agora podia ser visto. E mais frequentemente passaram a avistá-lo nas arcadas, nos vãos das portas, em outros abrigos precários. Se não era ele, parecia, pelos trajes.


Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados para a 29ª edição (setembro/outubro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 93 a 94).

https://drive.google.com/file/d/1ep-dEpKzatqGxEec-M-ag8pVvyNn2QIC/view

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Imagem:

Maria Helena Vieira da Silva (1908–1992), O passeante invisível, 1949–51.

Museum of Modern Art, San Francisco, EUA.

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10/08/2017

Um dia de sonho


O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços.
Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De surpresa, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça, era o prazer da perseguição.
E chegou a uma grande clareira onde espinoteava uma dúzia de cachorros. Santa mãe cadela!
Ladrou de alegria; os outros deram-lhe as boas vindas, em latidos cristalinos. Voltearam em perseguições que alternavam com fugas. Dentes de fora em exibição festiva, na farsa do combate. Este era o seu dia mais feliz.
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Ladrou alto e então acordou. Deu por si confinado à varanda do seu dono, como sempre, e lá em baixo exibia-se, arrogante, o sinistro Rottweiller do bairro.

Joaquim Bispo

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Imagem: Ross B. Young (1955–), Pointer & Quail.

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