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10/01/2017

Ano Novo — Vida Nova!


É a noite de 21 de dezembro — a mais longa do ano que vai terminar em breve. No silêncio do seu quarto de solteiro, Luís fuma, embrenhado numa meditação encorajadora. Pressente-se o ânimo cósmico da mudança de ciclo, como promessa de renovação. Observando, absorto, o fio de fumo do cigarro, Luís toma a decisão. Inabalável:

«No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou farto de que me chamem a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminado, excluído, insultado. E os que já fumaram são os mais fundamentalistas. Não sei que raio de mecanismo psicológico é que os afeta. Será porque antes se consideravam perseguidos como eu me sinto agora? Será que eu também vou passar a maçar os outros por estarem a fumar num lugar onde, eventualmente, não se deve fumar?»

«Há pessoas que são torcidas e maldosas. Lembras-te, Luís, quando estavas a jantar sozinho no balcão corrido daquele snack-bar? E aquela velha que entrou — tica, tica, tica, tica — naquele passinho miúdo? Tinha as mesas quase todas vazias. E ao balcão só estavas tu e mais um casal. Pois a malvada velha atravessou o estabelecimento todo e veio sentar-se ao teu lado. E apenas se sentou, virou-se para ti, lembras-te?, e vai de dizer que ali não se podia fumar, e que não tinha que estar a levar com o fumo do teu cigarro, e frito e cozido. Não há paciência!»

«Este ano tem de ser Luís! Custe o que custar. Eu sei que é difícil, sei-o bem. Há três anos que andas nisto: a tentar fumar pouco e não consegues. Fizeste enormes progressos, reconheço, mas falta o rabo, que é o mais difícil de esfolar. Começaste por vinte minutos. É pouquíssimo. Mas, antes de tentares fumar pouco, havia situações em que apagavas um e acendias outro. E, se estavas muito concentrado ao computador, chegavas a acender um, com outro ainda a arder no cinzeiro. Durante uns segundos meditavas nisso. Mas adiavas uma decisão que iria mexer contigo.»

«Há uns cinco anos, chegaste a estar três meses sem fumar. Lembras-te como de repente voltaste a sentir os sabores da comida e da bebida — intensos — e os cheiros, tantos e tão ricos, e de que já te tinhas esquecido? E te apercebeste de como cheiravam as tuas roupas? Já para não falar da centena de euros que de repente te sobravam e que orgulhosamente gastaste em mimos para ti, que bem merecias! Mas, depois, as contrariedades da vida… És muito sensível à tristeza e à frustração. É nessa altura que precisas de um cigarro. Precisar mesmo. Há pessoas já conversaste com muita gente sobre este assunto cujos momentos fatais são aqueles em que se sentem bem, aconchegados no calor do grupo de amigos. Beberam um café, a conversa está boa… Para culminar... um cigarro. E então se meter álcool… Quem pode aguentar um cocktail num ambiente descontraído, rindo com os amigos, sem puxar por um cigarro?»

«Começaste por vinte minutos. Punhas o telemóvel para tocar de vinte em vinte minutos. Era fácil. A cada semana aumentavas cinco minutos. Em dois meses chegaste a intervalos de uma hora. Aí, já custava. Mas foste forte e disciplinado. Às vezes, parecia que nunca mais passava o tempo. Sacavas amiúde do telemóvel para consultar as horas. Finalmente, chegava o momento de fumar. E relaxar. E andaste com este ritmo uns dois anos. Já só fumavas menos de um maço por dia. Já era melhor. Mas ainda tinhas expetoração negra de manhã. E catarro. E as pontas dos dedos amarelas. E ainda sentias que te cansavas mais do que o devido, se tinhas que subir umas escadas mais depressa. Começaste a sentir menos respeito por ti próprio. Que raio, não teres força de vontade para fumar ainda menos! Então, deste a arrancada final pensavas tu. Voltaste a aumentar o intervalo. Em cada semana acrescentavas um quarto de hora. Em pouco tempo chegaste às três horas de intervalo. Voltaste a sentir-te orgulhoso e auto-confiante. Já só fumavas uns seis cigarros por dia. O pior era o fim do dia. Era difícil ires deitar-te sem fumar um último cigarro. E não ias esperar que chegasse a hora. Quebravas ali, excecionalmente, o esquema. Fumavas e relaxavas, e ficavas um pouco a saborear o momento. E, de repente, tinha passado mais uma hora… e não era fácil adormecer sem fumar um último cigarro… E neste ciclo vicioso fumavas três ou quatro.»

«Mas agora cansaste-te. Agora não vais vacilar. Arquitetaste o teu plano, meticulosamente, sem dizer nada a ninguém. Estás decidido. A 31 de dezembro fumas o último cigarro. E nunca mais lhe vais pegar. Sabes bem que nunca estarás curado. Serás sempre um convalescente, um viciado em fase de não-consumo. E ressaca. Sabes que, se deres uma “passa”, podes voltar a fumar tanto ou mais do que fumavas antes. Sabes que o teu corpo, as tuas células em carência, vão inventar todo o tipo de argumentação para te levarem de novo ao consumo. Não vais aceitar nenhuma justificação. Não serias tu a falar, mas a carência. Agora, estás bem alerta. Pensaste em tudo já há muito tempo. Tomaste a decisão. Inabalável.»

Luís está decidido, mas... será que consegue superar a última prova, a do amor?
Ele ainda não sabe, mas, na noite de Natal, o pai vai-lhe oferecer uma cigarreira em aço gravado, distinta; a mãe, uma boquilha equipada com um filtro especial para reduzir a nicotina; a irmã, um cinzeiro em porcelana; e a namorada vai-lhe fazer a surpresa daquele isqueiro Ronson eletrónico em plaquê que uma vez tinha cobiçado!
Joaquim Bispo

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Imagem: Otto Dix, Autorretrato, fumando, 1912.

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(Este conto foi publicado no número 12 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2009.)
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