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10/12/2015

Colo


Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros ―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava, além de aproveitar para espreitar umas montras e, sobretudo, ver gente. O regresso, a subir, tornava-se um pouco penoso, sobretudo se exagerava no peso.
Falava a todas as vizinhas, mas demasiada proximidade incomodava-a, de modo que não frequentava a casa de nenhuma, nem convidava ninguém para a sua. Encontrava umas com os netos, outras a passear os cães. Rejubilava sinceramente com os progressos das crianças, cada uma já com personalidade própria, desde pequenas. À baila vinham sempre as queixas das descuidadas noras ou dos cabeças-no-ar dos filhos, mas sempre lhe parecia que todos os trabalhos que os netos exigiam eram largamente compensados pela alegria de os mostrarem e se envaidecerem com o êxito dessa exibição. A ela restava esperar ― já que o filho casara havia meses ―, mas também desesperar, porque ele e a jovem mulher tinham ido viver para os Estados Unidos.
Duas ou três vizinhas ― todas viúvas, como ela, por sinal ― enganavam a solidão com a companhia de um cão, mesmo que também recebessem a visita esporádica dos netos.
A Dona Ludovina “herdara” o cão do marido. Ele é que gostava de animais e durante anos passeou um caniche preto. Um dia o dono não acordou e ela assumiu a responsabilidade do bicho, que, coitado, durante meses, em vez da azáfama habitual na espécie de cheirar e marcar território no passeio, manteve uma atenção angustiada a todos os homens com que se cruzava, na expectativa de reencontrar o dono. A exigência de tratar do animal e de o levar à rua três vezes por dia ajudaram-na, possivelmente, a seguir em frente na nova condição de viúva.
Outra passeadora de cão ― a Dona Clara ―, viúva há mais de vinte anos, executava apenas a rígida rotina de casa–trabalho–casa, cinco dias por semana, desde que o filho casou e saiu de casa. Mulher austera, amiga do rigor e da franqueza, tornou-se ainda mais antipática quando se reformou. Era uma administradora do prédio eficiente, que não descuidava reparações e limpeza, mas condómino que se atrasasse no pagamento da respetiva comparticipação podia estar certo de ouvir um remoque. O filho, percebendo talvez o problema, ofereceu-lhe um pequeno cão de pelo curto, tipo podengo. Foi remédio santo. A exigência de levar o bicho à rua, o incontornável contacto com outros passeadores de cães e, certamente, o adoçamento que um animal de companhia traz a um ser humano transformaram-na, visivelmente. O “bicho de mato” que tinha sido transmutou-se numa pessoa que se permitia ficar no passeio a conversar com outras, a rir até, revelando uma simpatia simples, desconhecida nela, até então.
Foi Dona Clara que primeiro lhe sugeriu um cão para companhia. Deolinda, porém, não se via a ficar dependente de um animal, a ter de o levar à rua, quando lhe apetecia ficar simplesmente a ler ou a ver televisão. E depois o cheiro! Ela até gostava de animais, pois fora criada na província, com pai caçador, mas em sua casa sempre os cães tinham sido confinados ao amplo quintal. Todas as casas que conhecia com cães tinham um indisfarçável cheiro a covil.
Durante algum tempo, depois de se reformar, Deolinda ainda manteve contacto com as antigas colegas. Uma vez por mês, em média, saía com uma das outras reformadas e, de longe em longe, acedia ao convite de um almoço conjunto. Infelizmente, duas delas morreram e o grupo acabou por espaçar cada vez mais os encontros.
Chegou a inscrever-se na universidade sénior, para manter algum fluxo de aquisição de saber, mas desiludiu-se. O mulherio parece que só lá ia pela conversa e mantinha um zunzum no ar durante as aulas, quando não chegava a atender telemóveis. Assim, não! Preferia ficar em casa a ler.
Lia muito, tanto que as estantes de casa estavam a abarrotar, mesmo depois de levar caixas com livros para a terra. Começou a frequentar a biblioteca municipal, que era uma alternativa quase perfeita. Tinha um acervo extenso e variado, tanto de diversos livros recentes, como dos clássicos, que muitas livrarias se abstêm de ter.
Nas últimas férias ― se se pode falar de férias em relação a uma reformada ―, além de uma semana na terra, tentou umas surtidas às praias de Lisboa, mas a confusão que tais multidões causavam, incomodavam-na, sem falar das angustiantes filas do trânsito no regresso. Nos anos anteriores ainda passara uns dias numa praia sossegada, com o filho, mas agora...
Fazia-lhe falta a proximidade do filho. Estava muito constrangida pela perspetiva de passar o Natal sozinha. Era o primeiro Natal sem ninguém. O marido morrera havia oito anos e agora também o filho se afastara. As férias, enfim, mas o Natal! Onde o passar? Como? Com quem?
Em cima da data, resolveu passá-lo na terra ― uma aldeia do interior beirão. Em vez de levar o carro, preferiu meter-se num autocarro Expresso e ir tranquilamente sentada a ver a paisagem e a recordar os tempos de faculdade, quando ia à terra todos os quinze dias. Sentia-se um pouco triste e resolvera aceitar esse estado de espírito, interiorizando-o e cultivando-o com recordações dos tempos felizes. Por isso decidira passar o Natal na terra.
A casa que ali mantinha, e aonde ia umas três ou quatro vezes por ano, pareceu-lhe mais silenciosa que habitualmente. Arejou-a, varreu-a e deu-lhe uma arrumadela. Cada móvel, cada divisão, traziam-lhe à memória um episódio conjugal, uma piada do filho. Fez um chá, comeu umas tostas com compota e deitou-se. A cama parecia molhada, de tão fria. Embrulhou os pés num xaile velho e demorou ainda um bom bocado a adormecer.
O dia seguinte, véspera de Natal, amanheceu escuro e frio. Deolinda foi à mercearia comprar leite, pão e umas coisas para o jantar. O almoço foi frugal e saiu a seguir, para tomar um descafeinado. Não encontrou ninguém conhecido, só gente nova. Em tempos, não dava um passo sem encontrar alguém de família.
Voltou para casa, sem saber como ocupar o tempo. Se calhar, não tinha sido boa ideia vir este ano à terra! Deambulou pelas divisões silenciosas, a olhar as fotografias cinzentas: aqui, jovem, com o marido, no casamento de um primo; ali sorridente com “os seus homens”, numa visita a Cáceres; mais além, o pai aprumado numa farda do tempo da tropa.
Lá fora, começara a cair uma chuvinha miúda. Deolinda ficou um bocado a olhar a rua vazia e a ver as gotículas de chuva a formarem pequenos veios na vidraça. Assim eram os seus dias a escorrerem, não sabia para onde.
Cozeu umas batatas com grelos e uma posta de corvina. Há dez, quinze anos, teria feito também uma boa sopa de feijão com hortaliça, uma perna de borrego e umas rabanadas. Agora, tudo lhe fazia mal. Comeu o peixe com pouca vontade. Não lhe sabia a nada. Deixou metade da posta.
Acendeu o lume na lareira da cozinha e sentou-se a olhar as línguas das chamas que consumiam mansamente os cavacos com que as ia alimentando. Assim a sua vida se ia consumindo, placidamente, sem dramas, sem objetivo. Aguentou-se por ali a cabecear, a fazer horas para a missa do galo.
Junto ao adro, o cheiro a madeira queimada, tão familiar, fê-la lembrar-se dos antigos natais, quando ir conviver e aquecer-se junto à fogueira de Natal era uma festa. Passou pelo bando de rapazes que, indiferentes à chuva miudinha e gelada, mantinham uma algazarra regada a vinho, junto aos madeiros em chamas, entrou na igreja, logo reconhecida, e sentou-se junto à coxia.
Lá estavam, parados no tempo, os santos da sua meninice ― Santo António, a Senhora das Dores, São Sebastião, o Coração de Jesus. Durante toda a missa foi recordando alguns episódios ligados a esta igreja da sua terra ― o crisma, o casamento da tia Matilde, o batizado do primeiro sobrinho, um dos primeiros afogueamentos, quando reparou que um rapaz mais velho olhava para ela de uma forma especial.
Quando o celebrante levantou a hóstia, Deolinda sentiu-se muito desamparada. Intimamente, implorou:
«Sejas Tu quem fores, ajuda-me; ajuda-me, por favor!»
A missa acabou. Deolinda ficou ainda um pouco, ajoelhada, em recolhimento. Aproveitando a porta aberta pelas pessoas que iam saindo, entrou na igreja um gatinho ainda pequeno, molhado e enregelado, a abrigar-se do tempo hostil. Era malhado de preto e branco, parecia confuso e miava debilmente, entre o receio e o queixume. Foi caminhando pela coxia central, enquanto o seu miado se tornava mais suplicante, sobressaindo por cima da vozearia lá de fora. Deolinda ouviu-o, mas, muito imersa no seu espírito, demorou a surpreender-se. Quando olhou, o gatinho parara a olhar para ela e a miar. Deolinda ficou paralisada a olhar para aqueles olhos azulados e vítreos, como se lhe custasse a perceber o que via. Depois, pegando no gatinho, aconchegou-o contra o peito, por dentro do sobretudo, e desatou a soluçar convulsivamente. As lágrimas rebentaram incontroladamente, como se estivessem há muito represadas.
Pouco depois, o gatinho, confortado pelo calor do corpo de Deolinda, começou a ronronar. Deolinda olhou em volta. Cristo crucificado estava desfalecido no seu martírio, a Senhora das Dores e São Sebastião olhavam os céus. Deu com os olhos nos olhos do Menino Jesus, que estava ao colo de Santo António e sorria. Pareceu-lhe que afastou o olhar, quando ela o fixou, e que a olhava, se ela desviava o olhar.
Entretanto, alguém tocou no braço de Deolinda:
Então, vizinha, deixe lá as tristezas, que hoje já é dia de Natal. Venha comigo, que eu também vou para os seus lados.
Lá foi Deolinda, sem ouvir a conversa da vizinha, com o gatinho junto ao peito, tão apaziguada como nos dias felizes, tão realizada como quando regressara a casa com o seu filho acabado de nascer, ao colo.

Joaquim Bispo

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(Este conto obteve um 7º lugar no Concurso de Contos e Crónicas da Universidade Metodista de Piracicaba, em 2011, e foi publicado, em versão mais pequena, no número 24 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2010, com o título “O Natal de Josefa”.)

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