10/12/2017

Com a Melhor das Intenções


— Eh, pá, não tenho dúvidas; é um desses mails moralistas a puxar ao sentimento, mas mesmo tocante — dizia Barbosa ao seu colega de secção, no regresso do almoço, pelos corredores da Judiciária. — A história é, mais ou menos, assim: na Alemanha do século XV, havia uma família numerosa e pobre, cujo pai tinha de trabalhar dezoito horas diárias nas minas de carvão para alimentar tanta gente. Dois dos filhos queriam ser artistas, mas como? Combinaram que um trabalharia nas minas, para pagar os estudos de pintura do outro, e depois trocariam. Assim fizeram. No regresso da academia, o primeiro, já formado, quis honrar o combinado, mas o irmão disse que era demasiado tarde; que os quatro anos de trabalho nas minas lhe tinham destruído as mãos para a pintura. Então, o pintor desenhou as mãos calosas do irmão, como homenagem. Aí, o mail apresenta o desenho realista de umas mãos todas cheias de rugosidades.
Manda-me isso — concluiu Magalhães, interessado. — Sempre quero ver se é melhor que os poucos que leio. A maioria, nem abro, quando percebo que é pieguice.

Pouco depois, o inspetor Magalhães fechava a página do eBay, onde, de manhã, estivera a pesquisar leilões de azulejos portugueses, e leu o texto do extenso e-mail que emocionara Barbosa, e que vinha acompanhado de umas mãos-postas desenhadas por Durer. Terminava com uma máxima: «quando você se sentir demasiado orgulhoso do que faz e muito seguro de si mesmo, lembre-se de que, na vida, ninguém triunfa sozinho!»
Uou! É potente! Não sabia que o Durer era tão pobre.
Esta máxima final parece feita de propósito para nós, não achas?
Mas, sabes — prosseguiu Magalhães, cofiando a pera — há aqui qualquer coisa que não bate certo. A história puxa muito ao choradinho. Há muita miseriazinha, muita entreajuda cristã, uma grande lição de moral no fim... E as mãos não me parecem as manápulas robustas de dedos grossos de quem trabalhasse numa mina. Os dedos são tão compridos e esguios como os de um desocupado.
Tens razão! Vamos ver de onde é que isto vem.
Olha, “Durer mãos” no Google dá-me vinte mil resultados. É muito.
Com a primeira frase dá novecentos. Isto está bem espalhado!
O melhor é procurar na Wikipédia — racionalizava Magalhães.
Está aqui um site em que o pai de família trabalha dezoito horas, mas no ofício de ourives. E tem dezoito filhos. Caramba!
E tem razão. A Wiki diz que o pai de Durer teve dezoito filhos e era ourives.
Escuta este: «Após uma demorada e memorável refeição, recheada de música e alegria, Albrecht ergueu-se do seu lugar de honra» — tal, tal… — «“agora, Albert, meu bendito irmão, agora é a tua vez. Agora podes ir para Nuremberg realizar o teu sonho, e eu cuidarei de ti.”» — recitava Barbosa, rindo. — Escuta a descrição do irmão: «Lágrimas corriam pela sua face pálida, enquanto agitava para ambos os lados a sua cabeça curvada, e em soluços repetia várias vezes “Não ... não ... não ... não.”»
Que lamechas, esse imaginativo aspirante a escritor! — respondeu Magalhães, e prosseguiu no relato da sua pesquisa: — Parece que a família Durer vivia em Nuremberga, desafogadamente, e não numa aldeia próxima e miseravelmente. Ah, cá está! O jovem Albrecht foi colocado aos quinze anos como aprendiz na oficina do gravador Michael Wolgemut, dado o seu gosto pelo desenho. Pois! — reconfortava-se Magalhães — do que me lembro das aulas de História da Arte medieval e renascentista, as artes plásticas não se aprendiam nas universidades, mas sim em oficinas de mestres do oficio. Eram artes menores, manuais.
Agora já não é o irmão Albert, mas um companheiro… Franz Knigstein. — zombava Barbosa de um dos sites por onde estava a navegar. — «Um companheiro seu, também muito pobre, o ajudou. Os dois iam à igreja, participavam da Ceia do Senhor, e o companheiro de Durer cultivava uma equilibrada vida de oração.» Este site puxa para a Igreja. Pudera! Faculdade teológica… «Um dia, Albrecht encontrou Franz de joelhos, com as suas mãos postas em atitude de oração, ásperas, no entanto, oferecidas a Deus em amoroso sacrifício, orando para que ele, Albrecht, tivesse pleno êxito na carreira de pintor.» — Ah, ah, ah! — «Prontamente, Durer desenhou o momento e produziu um símbolo do significado da oração. Desde então, a oração intercessora, simbolizada por aquela atitude faz-nos lembrar que a oração e a amizade correm juntas. A pessoa a Quem oramos teve Suas mãos atravessadas pelos cravos em nosso favor.»
Para com isso, Barbosa!
«Mãos tortas e calejadas, de pele ressecada, mas apontando para o céu, em atitude de súplica.» — descobria Barbosa.
Para com essas baboseiras! Escuta, há aqui informação séria, apoiada em escritos dele. «Durer elaborava infindáveis estudos de mãos, cabeças, objetos domésticos, plantas e animais: “O mínimo detalhe deve ser realizado o mais habilmente possível”, dizia, “nem as menores rugas e pregas devem ser omitidas.”»
Só mais este — deliciava-se Barbosa. — «Eles trabalhavam juntos numa oficina de escultura em madeira; um deles fez as malas, se despediu e foi para Viena/Áustria; o outro começou a trabalhar numa ferraria. Não demorou muito, as mãos finas e sensíveis se tornaram grossas e cheias de calos.»
Gaita, que esse pessoal não se limita a copiar. Quantas versões já encontraste?
Sei lá! «E cuidou do amigo, que não precisou mais trabalhar na ferraria.
Esta é uma história de quatro mãos, de dois amigos que oravam um pelo outro, e de um artista reconhecido graças a uma forte amizade. “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente. Ame os outros como você ama a você mesmo.”» — Colégio evangélico.
Há gente que não se importa de inventar e deturpar tudo para puxar a brasa à sua sardinha. Sacanas de falsários! Neste caso, fanáticos com as melhores intenções catequéticas.
«1490». «Os dois amigos viviam na mesma pensão». «Não, eu sou mais velho e já tenho emprego no restaurante.», dizia o amigo. Já viste estes, Magalhães?: restaurante! — ria-se Barbosa, virando o nariz avantajado para o colega da secção de Furto de obras de Arte, da Judiciária.
Diz aqui que as mãos foram desenhadas em 1508, como desenho preparatório da figura de um apóstolo para um altar.
«Suas mãos rígidas, endurecidas, articulações grossas e dedos torcidos pela labuta diária durante tanto tempo, impediam o suave manejo dos pincéis.» — continuava Barbosa, imparável. — Mas olha, este site tem comentários. Ouve o que diz quem comenta estas balelas: «A beleza das mãos calejadas de Durer toca-me profundamente a alma. São mãos que trabalharam por amor e com abnegação por toda uma vida. São mãos que carregaram peso, tocaram muitas vezes a água...» Água?; onde é que esta viu a água!? Outra: «Essas são, sem dúvida, “mãos de sol”, mãos iluminadas de uma pessoa idem, que teve a humildade de se sacrificar em prol do irmão.»
Será que ninguém repara que não são mãos de trabalho? — irritava-se Magalhães, fazendo tremer as bochechas arredondadas. — São escuras porque têm as sombras todas marcadas e são rugosas como as mãos de qualquer pessoa, se forem desenhadas meticulosamente.
Só encontrei um a falar em «dedos emagrecidos». Ah! Finalmente o comentário de alguém que agarra a tarefa de desmistificar a trapaça: «Gostaria de informar que li diversas biografias do pintor renascentista alemão Albrecht Durer, escritas por estudiosos como Moriz Thausing, Erwin Panofsky, Ernst Rebel, Matthias Mende, entre outros, e em nenhum deles encontrei qualquer menção aos fatos citados.» Temos uma justiceira, Magalhães — alegrou-se Barbosa, batendo palmas. — É uma tal Constanze de Curitiba. Grande mulher! Ou será homem? «O pai de Albrecht Durer, assim como seu avô, era ourives de profissão, uma das profissões mais reconhecidas na Idade Média. Húngaro de nascimento, mudou-se para a cidade de Nuremberg, onde mais tarde casaria com Barbara, com quem teve 18 filhos. Desses, apenas 3 sobreviveram, o próprio Albrecht Durer (1471-1528), Endres (1484-1555) e Hans (1490- ?), este também artista. Quando Albrecht Durer tinha 4 anos de idade, seu pai, já um renomado ourives, comprou sua casa própria em Nuremberg, onde o artista cresceu e viveu durante 30 anos. Como fonte destas informações os autores citam uma “Crônica Familiar”, espécie de diário que Albrecht Durer manteve durante sua vida. O quadro citado, “Mãos que Oram” — “Betende Hände” — foi desenhado a pincel em 1508, sobre papel azul, e trata de um esboço/estudo de mãos para uma figura de apóstolo para o painel central de um altar encomendado por Jakob Heller para a igreja dominicana em Frankfurt. O painel foi destruído num incêndio por volta de 1729, mas cerca de 20 esboços preliminares ficaram preservados, dentre eles, este citado tornou-se um dos quadros mais famosos de Albrecht Durer. Trata-se, certamente, de uma brincadeira que circula livremente pela Internet, sem o cuidado de verificar sua autenticidade.»
É isso mesmo! — entusiasmou-se Magalhães. — Pesquisei «altar Heller», e olha o que descobri. Chega aqui!
Barbosa aproximou-se da mesa de trabalho do amigo e ambos observaram, reconfortados, a imagem de um grande retábulo em cujo painel central estava pintado um conjunto de apóstolos assistindo à ascensão da Virgem, um dos quais tinha as mãos postas tal qual as do esboço que os tinha intrigado na última hora e meia.
Datado de 1508. Nesta altura tinha Durer… 37 anos — calculava Magalhães.
Mas, o altar não tinha ardido?
Diz aqui que é uma cópia feita por um outro pintor, em 1614.
Sabes o que eu senti? Um grande repúdio pela tacanhez desta gente para quem umas mãos, só por estarem pintadas em escuro, têm de estar encardidas de carvão, e por estarem minuciosamente desenhadas, com todos os volumes, todas as rugas, têm de estar calejadas e deformadas. E uma grande indignação por utilizarem a mentira e a falsificação para atingirem o coração crédulo das pessoas. Por outro lado, fiquei muito agradado que tivesse havido alguém a dar-se ao trabalho de esclarecer estes ataques à verdade histórica. Se calhar, devia haver uma entidade, uma organização não-governamental, engajada com a divulgação do conhecimento, que tomasse por missão desmascarar esta gente que espalha a aldrabice pela Internet, como quem espalha o vírus duma doença epidémica.
Vamos à biblioteca, que quero tirar isto bem a limpo.
Pouco depois, confirmavam quase tudo o que «a justiceira» dissera. E ficaram a saber, também, que o desenho das mãos postas está no museu Galeria Albertina, em Viena.
Mais um caso resolvido — gracejou Magalhães. — Vamos lanchar?
Antes que o parceiro pudesse responder, tocou o telefone. Era o inspetor-chefe a distribuir serviço: «Roubaram mais um painel de azulejos do século XVII, num palacete do Lumiar. Passem aqui a buscar a documentação».

Joaquim Bispo

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Imagem: Albrecht Dürer, Mãos em Oração [também conhecido como Estudo das Mãos de um Apóstolo], Desenho [realce de branco e tinta negra sobre papel azul], 29.1 x 19.7 cm, c. 1508.
Galeria Albertina, Viena.

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10/11/2017

Dia do Juízo Final


(Manuscrito encontrado na gaveta de um aspirante a humorista)

Olá, caras amigas, amigos! Acabei de chegar do Juízo Final, e ainda estou meio deslumbrado. Por isso, desculpem alguma inconveniência que eu diga. A propósito, não vos vi lá! Deixem-me adivinhar: nem foram convidados… Não fiquem aborrecidos — continuem a enviar currículos. Mas devem querer saber como decorreu esta edição outono-inverno do Juízo Final. Eu conto:

O Juízo Final estava marcado para 12/12/12, não só para dar tempo de se acabar o Mundo a 21, conforme profetizado, mas também porque Deus gosta destas datas com números repetidos, para não se esquecer. Mesmo assim, deixou passar o especialíssimo dia 11/11/1111. Parece que nessa altura andava distraído a desenvolver a peste negra, que foi um sucesso algum tempo depois. Já em 8/8/1888, a razão do esquecimento foi a azáfama de tentar convencer toda a gente de que Ele é que tinha criado a Evolução.

Desta vez, cumpriu-se a escritura. O cenário, faustosamente iluminado, deslumbrava: em círculos envolvendo a cadeira d’Ele, legiões de anjos, querubins, serafins e arcanjos perfilavam-se em “ombro arma”. Mais abaixo, santos de todas as maleitas e clérigos de todas as patentes esperavam pacientemente a prometida honraria de entrada no Céu, ao som de fanfarras. Por fim, multidões incontáveis entretinham-se a cochichar ou esticavam o pescoço, ao reconhecer esta ou aquela celebridade que só conheciam do catecismo. A entrada de Maria Madalena provocou mesmo uma enorme ovação e alguns assobios de apreço. A chegada conjunta da irmã Lúcia e da madre Teresa de Calcutá suscitou o primeiro “Misericórdia!” da noite.

Os pagãos estavam visivelmente fora do seu meio e olhavam repetidamente para o relógio, temendo perder o último transporte para casa.

Finalmente, aí pelas dez e meia, ouviram-se trombetas estridentes e a voz cavernosa do Diabo anunciou: «Sua Omnipotência: Deus!» Este entrou arrastando os pés sob uma túnica fora de estação, seguido pelo Filho com ar cabisbaixo, e sentou-se de cenho carregado. O Diabo fez-se ouvir pela segunda vez: «Está aberta a sessão.»

Como era evidente, julgar todos os presentes, um a um, seria tarefa para milénios; isto falando em julgamento justo, com concessão de todos os direitos de defesa aos réus. Para evitar o arrastamento do julgamento e previsíveis recursos para o Supremo, Deus anunciou que a sessão seria única e inapelável. Conforme decretado, assim aconteceu: não houve defesa, ninguém pôde justificar-se e as sentenças foram coletivas.

Com ar zangado, Deus começou: «Aí em baixo, toda essa caterva de beatos, místicos, ascetas, e todos esses padres, freiras e mulás vestidos de preto, ou de branco, e todos esses bispos e cardeais de vermelho, vão para a reciclagem — fundir e voltar a moldar. Motivos? Não Me ouvistes dizer “Crescei, multiplicai-vos e povoai a Terra”? E o que fizestes vós?: abstinência, temperança, mortificação da carne, e outras parvoíces. Diabo, toma nota: reciclagem!»
De todos os pontos desse enorme grupo, ergueram-se pedidos de clemência e protestos de inocência: «Desse crime não posso ser acusado. Estão aí os meus filhos para o provar.» Ou: «Eu era o melhor cliente do bordel da cidade». Ou ainda: «Eu não tenho culpa de que as crianças não engravidem!».

A seguir, disse Deus: «Todos os médicos aqui presentes, veterinários, caçadores, desinfestantes, pasteurizadores, farmacêuticos e todos os utilizadores de químicos mortais, em geral: reciclagem! Não andei seis dias a puxar pela cabeça, para criar milhares de espécies diferentes, e depois virem uns racistas e matarem metade da Criação. Diabo, toma nota: reciclagem!»

Depois: «Budistas, maometanos, cristãos, jeovistas, animistas, jupiterianos, mitómanos em geral e outros crentes em milagres — reciclagem! Não conheço gente mais ignorante do funcionamento da Natureza.»
«Diabo, como são quase os mesmos, junta-lhes os que estão sempre a cantar louvores e a azucrinar-Me os ouvidos com rezas, e os pedintes de favores em geral. Põe-nos dez mil anos a atender pedidos num call center; a ver se começam a ter uma ideia de Inferno!»

«Mais: automobilistas, gestores de indústrias, criadores de vacas e outros produtores de gases geradores de efeito de estufa: reciclagem! Diabo, altera-lhes o design oficial para líquenes. Detesto que decidam os dilúvios por Mim!»

A sessão ainda se estendeu por mais um par de horas, até que Deus, visivelmente cansado, adormeceu. O Diabo deu, então, uma sonora marretada na moleirinha de um querubim, anunciando: «A audiência deste tribunal fica suspensa. Recomeça assim que algum amigo meu tencione carregar no botão do Apocalipse. À mesma hora.»

Um indescritível clamor de protesto pelo tempo perdido não se fez esperar e milhões de vozes alteradas exigiram que os Juízos Finais sejam privatizados. Seguiu-se um engarrafamento infernal que durou quase cinco anos. Foi por isso que só cheguei agora.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giorgio Vasari e Federico Zuccari, Juízo Final, afresco, Interior da cúpula de Santa Maria dei Fiore, Florença, séc. XVI.

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10/10/2017

A Carta Anónima


Pouco antes do Natal, ao levantar-se, Otávio deparou com a seguinte mensagem, colada na porta, escrita com palavras recortadas de jornais e coladas num pedaço de papel: «/ milhões / anjinhos / visitaram / chefe / guitarra / servida / niquinhos /».

Incompreensível como parecia, não lhe ligou grande importância. De qualquer modo, telefonou à mulher. Não tinha visto nada, quando saíra. Teria sido, com certeza, composta por algum grupo de miúdos desocupados tentando divertir-se à custa dum vizinho. Espreitou pela janela do quarto a ver se descortinava os malandrinhos alapados por detrás de algum arbusto. Ninguém. Atravessou o corredor e espreitou pela janela da sala. A rua estava deserta, ou antes, com os esporádicos passantes habituais. Nem sombra dos catraios.

Sentou-se no sofá e atentou melhor naquele conjunto de palavras alinhadas no papel. Seria algo para levar a sério? Hum! Parecia tão desconexo, sobretudo a parte final.
De repente, um sobressalto. Pareceu-lhe detetar uma ameaça; velada, mas grave. “Anjinhos” remetia abertamente para a outra vida, ou antes, a morte. E a sua guitarra escavacada e servida em niquinhos pareceu-lhe uma ameaça típica da Máfia.
Sentiu-se empalidecer.

O tempo do verbo na primeira frase — “visitaram” — fez-lhe temer por uma intrusão já realizada. Levantou-se de um salto e vistoriou a casa. Tudo em ordem. Aparentemente. Espreitou para o quintal. Rex, o cachorro, também estava vivo e de boa saúde. Estava entretido a remexer a terra. Nada parecia indicar que alguém tivesse entrado enquanto dormia. Aliás, Rex teria dado sinal.

Parou a admirar o seu dinamismo. Havia alguma coisa de estranho na maneira como se movimentava. Talvez a sua atitude furtiva. Observou-o melhor.
Foi então que percebeu que a azáfama em que estava empenhado tinha por objetivo enterrar vários pedaços de jornal, uma tesoura e um tubo de cola!

Joaquim Bispo

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Imagem: Cruzeiro Seixas (1920– ), Galopando no sonho, escultura em bronze.

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10/09/2017

O papa-jornais


Na minha rua existe uma personagem singular — um devorador de jornais. Traga todos os que encontra, quer os que são abandonados nas mesas dos cafés, quer os que o vento empurra rua afora. Uma vez por outra, já o vi até debruçado pela abertura do Papelão.

Como seria de esperar, está sempre bem informado, quer das notícias do dia, quer das anteriores, que já todos esqueceram. As conversas que mantém à tarde parecem o noticiário da rádio local, no dia da folga do jornalista. As da manhã, também. Por uma razão ou por outra, é objeto de veladas animosidades, fundadas na bizarria que o caracteriza.

A mulher que salga sempre a comida inveja-lhe a memória. O rapaz que sonha com pescarias no tanque do fontanário diz que ele assusta os peixes com o ruído que faz a mastigar. As primas que plantam jacintos nos charcos da calçada criticam-lhe a voracidade. O oriental, de cujo livro de folhas perenes se escapam, por vezes, pétalas coloridas, olha-o com desconfiança.

Todas estas queixas recorrentes desapareceram há dias, repentinamente, como que por influência dos astros. Quando saí de casa para comprar as pevides de melão matinais, as conversas esvoaçavam à volta do papa-jornais. Todos gorjeavam a utilidade da sua preferência gastronómica para o asseio do bairro, e sugeriam que esta figura grada da terra devia dar nome a um dos camiões do lixo. E lamentavam-no com lágrimas sem sal e meias-de-leite. O que o vitimou — aventavam —, teria sido a sua sofreguidão por notícias e uma indigestão há muito esperada. Ou a deglutição imprudente de um tablet ou outra similar engenhoca eletrónica. Por mim, suspeito mais da toxicidade das notícias falsas. E das deturpadas.

Joaquim Bispo

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Imagem: Hugó Scheiber, Lendo Notícias no Banco, [antes de 1950].

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10/08/2017

Um dia de sonho


O cão avançava pela rua inebriado pelos inúmeros cheiros que farejava: cadelas, cães, comida. A caminho do parque, o seu dono soltara-o da trela e dera-lhe liberdade total. E o cão corria antecipando os prazeres dos grandes espaços.
Era bom correr. Os membros gostavam da corrida. Corria em grandes saltos a caminho dos baldios para lá do bosque. E, aí, o labirinto dos matos, os gafanhotos, os ratos, os lagartos. Corria por entre os fenos, por trilhos onde só ele cabia. De surpresa, levantavam-se perdizes e fugiam coelhos e lebres. E o cão perseguia-os, delirante. Não era o instinto da caça, era o prazer da perseguição.
E chegou a uma grande clareira onde espinoteava uma dúzia de cachorros. Santa mãe cadela!
Ladrou de alegria; os outros deram-lhe as boas vindas, em latidos cristalinos. Voltearam em perseguições que alternavam com fugas. Dentes de fora em exibição festiva, na farsa do combate. Este era o seu dia mais feliz.
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Ladrou alto e então acordou. Deu por si confinado à varanda do seu dono, como sempre, e lá em baixo exibia-se, arrogante, o sinistro Rottweiller do bairro.

Joaquim Bispo

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Imagem: Ross B. Young (1955–), Pointer & Quail.

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10/07/2017

O deserto de Atacama na minha cozinha



Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos — método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu completamente.

Uns quinze dias depois, encontrei o meu pacote de flocos de cereais com chocolate cheiinho de formigas, aonde chegavam por um carreiro de grosso caudal. Silenciosamente, sem pressa, deambulavam sobre os flocos e banqueteavam-se, suponho; não apurei se transportavam minúsculos pedaços da iguaria para a sua base, que imaginei na parede, por detrás dos azulejos.

Não tenho nojo das formigas nem das abelhas, como tenho das baratas ou das moscas. Não me passou pela cabeça deitar fora os flocos. Mas, como limpá-los? Passá-los por água estava fora de questão. Peneirá-los? As danadas não largariam tão facilmente o seu pedaço. Pô-los no micro-ondas também não era opção, porque além do desagrado de matar as bichas, ainda ficaria com uns flocos com um sabor um pouco picante, acredito. O ideal seria fazer com que abandonassem o pacote e não retornassem. Mas como?

Lembrei-me, então — baseado nos métodos de baixa intensidade dos camponeses para resguardar os seus produtos dos roedores, e mais como brincadeira de miúdo a descobrir as maravilhas do mundo animal, do que como experiência promissora de êxito —, de pendurar o pacote por uma longa e fina linha de costura, ao teto, sobre a mesa da cozinha. A ideia, sem grande esperança de sucesso, era que a necessidade de manter contacto com a base as obrigasse a procurar a saída e que, abandonando o local dos flocos, tivessem dificuldade em reencontrá-lo. Como efeito inesperado, o pacote começou a rodopiar, em resultado da destorção da linha, provocada pelo peso.

Não estou certo que esta rotação as incomodasse, mas, pouco depois, já algumas tinham encontrado a linha, que iam explorando, avançando um bocado, voltando atrás para transmitir informações, regressando à descoberta. Quando me fui deitar — umas três horas depois —, a linha estava carregadinha delas e várias já exploravam a vastidão desértica do teto liso. Na manhã seguinte, o pacote estava livre de formigas. O pacote e a casa. Nem uma. Desapareceram todas. E passaram-se meses sem voltar a vê-las.

Ao imaginar a pequena odisseia das formigas, obrigadas a trepar uma a uma, às escuras, por uma linha rodopiante interminável, para escapar ao isolamento forçado, surgiu-me naturalmente a comparação com a saída dos mineiros chilenos das profundezas da mina de cobre no deserto de Atacama, por um furo vertical de 700 metros, que então era notícia. As situações tinham muitos pontos de contacto. Pus-me mesmo a calcular até aonde chegava a similaridade. Na verdade, tendo a linha pouco mais de metro e vinte, e as formigas três milímetros, a relação tamanho do corpo / distância ao teto era semelhante à do resgate dos mineiros chilenos: 1/400. Bem, se calhar, arredondei um pouco as contas…

Por outro lado… Certamente que foi muito mais fácil e rápido para as formigas treparem, às escuras, por uma linha rodopiante até escaparem do pacote de flocos, do que os 33 mineiros chegarem à superfície 69 dias depois, encerrados um a um numa cápsula puxada do exterior. Mas, quando a subida acabou, as minorcas não tinham a comunicação social, nem o presidente das formigas à espera. Tiveram ainda de atravessar o “deserto de Atacama” do meu teto e descer pelas paredes até à saída deste mundo inóspito onde os deliciosos flocos de chocolate, de repente e imprevisivelmente, ficaram tão remotamente isolados como o fundo de uma mina de cobre no Chile.

Bem, calculo; eu não estava lá para ver…

Joaquim Bispo

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10/06/2017

O Ar do Tempo



Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.”
Marinetti, Manifesto Futurista, 1909.

Arrastando a brevidade da nossa existência na lama do nosso pequeno mundo, esfrangalhamo-nos de impotência, de cada vez que a tragédia nos atinge. Como seria perfeito podermos voltar atrás e alterar o que correu mal: aquela brincadeira de adolescente que teve consequências funestas, aquela nossa palavra impensada que comprometeu a nossa vida profissional, o episódio que desencadeou uma guerra.
Um dos episódios singulares de consequências mais devastadoras da nossa História recente é o do atentado bem-sucedido contra o herdeiro do Império austro-húngaro, o arquiduque Francisco Fernando. Foi perpetrado na cidade de Sarajevo por um estudante de vinte anos, membro de um grupo nacionalista de inspiração sérvia, em 1914. Quase todos os historiadores estão de acordo que esse episódio desencadeou a Primeira Guerra Mundial, que levou à Segunda, que levou à Guerra-fria, que levou à hiperpotência única e a outros males correlatos.
Candidamente, podemos pensar que, se pudéssemos evitar esse atentado, o rumo do mundo teria sido muito diferente; não teríamos passado por aquelas guerras terríveis, e hoje teríamos paz. Evitá-lo seria o ideal, mas, para muita gente, entender o que correu mal já seria um avanço extraordinário, já forneceria um avo de esperança de evitar, no futuro, a sequência fatal de acontecimentos que leva ao horror.
Alguns filósofos admitem que, devido à extensão infinita do nosso universo, toda a nossa história está, também, a decorrer num número inimaginável de outros mundos, em incontáveis variantes que resultam de outras tantas pequenas variações de rumo. Assim sendo, a nossa mesma história poderia ser encontrada e observada numa das inúmeras fases já passadas ou futuras, como em cada versão do que podia ter sido.
A ideia é aliciante. Desgraçadamente, mesmo que seja verdadeira, falta aquele pormenor: conseguir viajar no tempo. Infelizmente, o tempo parece caminhar numa só direção. Todas as tentativas de viajar nele, se é que existiram, falharam.
A nossa única consolação é a ficção. Nela, temos exercido a liberdade de viajar no tempo, nos dois sentidos conhecidos, à velocidade que o autor decidiu. Caro leitor, aceite embarcar neste meio de transporte espaciotemporal e observe um pouco do ambiente que lançou a Europa e o Mundo na Primeira Guerra Mundial. Partamos!

Ao abrigo de um programa secreto, foi, há seis anos, enviado um explorador a um planeta dum aglomerado globular a 160 milhões de anos-luz de distância, onde se detetou que o atentado de Sarajevo não resultou. Pretendia-se perceber qual foi o pormenor que alterou o rumo da História e por quê, a fim de tentar evitar tragédias semelhantes, no futuro. Como esse explorador faz o favor de ser meu amigo, um dia contou-me o seguinte:
A minha missão era apenas seguir o estudante radical Gavrilo Princip e, como sombra, observar o que fazia, já que na Terra tinha sido ele a abater o arquiduque e a mulher. Nos dias anteriores ao atentado, reuniu-se várias vezes com os seus correligionários da “Mão Negra”, combinando posições ao longo do trajeto do alvo pelas ruas de Sarajevo e as armas que cada um iria utilizar. O grupo parecia animado por um ódio violento contra a recente anexação austro-húngara da sua Bósnia-Herzegovina, e falava frequentemente da congregação futura de todos os povos eslavos, desde os sérvios aos eslovacos, sob uma bandeira comum — o chamado pan-eslavismo. Até aqui, tudo como na Terra. O que me surpreendeu foi a realização de uma exposição de artistas futuristas na cidade, a ser visitada pelo arquiduque. O grupo infiltrara lá um elemento, como vigilante, o qual deveria detonar uma bomba escondida no interior da escultura mais representativa, quando Francisco Fernando estivesse a admirá-la.
Na antevéspera, Gavrilo acompanhou o amigo vigilante à exposição. A ideia era ajudar a distrair alguém presente, enquanto a bomba era instalada por outros dois elementos. Por coincidência, deambulava pelas salas um dos artistas — o depois famoso Umberto Boccioni. Gavrilo e o companheiro mostraram-se interessados nas obras expostas, e o artista gostou do ar radical e da postura revolucionária deles. Para ilustrar a atmosfera que se vivia na Europa, mesmo dentro dos movimentos artísticos, relato alguns dos diálogos mantidos pelo pequeno grupo:
Gosto destes teus “Estados de alma” e do “Tumulto na galeria” — começou Jovanovic, referindo-se a duas pinturas de Boccioni e afastando o artista da zona das esculturas. — São violentos.
"Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima" — teorizava Boccioni, citando o Manifesto Futurista, de Marinetti. — Já não há beleza senão na luta.
Rapidamente, a conversa derivou para temas de patriotismo, anarquia e insurreição, afinal, caros a ambos os grupos: artistas futuristas e radicais do “Mão Negra”.
Também penso isso — acompanhava Gavrilo. — O mundo está submetido a impérios que oprimem os povos: o austro-húngaro, o alemão, o inglês, o russo e o otomano, para só falar dos maiores.
"Nós, os futuristas, cantaremos as grandes multidões agitadas pela sublevação" — enlevava-se Boccioni.
Só a Sérvia nos pode salvar da pata dos impérios — declarava Jovanovic. — Com os nossos irmãos de outras regiões eslavas, formaremos uma grande nação que renovará o decadente Ocidente, conforme bem disse o grande Bakunine.
"A guerra é a única higiene do mundo" — prosseguia Boccioni, alimentado pelo radicalismo dos visitantes e pelo espírito do Manifesto Futurista de 1909. — O patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas são belas ideias pelas quais vale a pena morrer.
Nessa altura — confessou o meu amigo — eu já duvidava que, com tal incitamento, Gavrilo deixasse de executar o gesto assassino pelo qual ficou conhecido na Terra.
Que pensas do arquiduque que depois de amanhã visitará a tua exposição? — perguntou ele ao artista.
Acho-o capaz de iniciar uma bela guerra, aquela que a Europa precisa para varrer todo este bolor acumulado — respondeu o pintor escultor. — Sabes o que ouvi dizer? Que, ao longo da vida, já matou cinco mil veados em jornadas de caça, o feroz. Gosto desse laivo agressivo dele.
Pouco depois, Gavrilo despediu-se; a bomba já fora instalada na mais emblemática escultura da exposição — um gesso com o título “Formas Únicas de Continuidade no Espaço”, que agora está em S. Paulo e cuja imagem circula nas moedas de vinte cêntimos de Itália.

No dia da visita do arquiduque, 28 de Junho, a comitiva deslocava-se em sete carros. O arquiduque e a esposa iam no terceiro. O primeiro membro do grupo, Mehmedbasic, não disparou por não ter bom ângulo. O segundo lançou uma bomba que falhou o alvo, mas feriu várias pessoas do carro seguinte. Tomou rapidamente uma pílula de cianeto e lançou-se ao rio que atravessa Sarajevo, mas a pílula não fez efeito; foi retirado do rio e quase linchado, mas a polícia levou-o. Como cá.
Eu não estava a ver o que é que iria ser diferente. Os restantes membros, incluindo o que eu vigiava, fugiram. Como na Terra, o arquiduque irritou-se fortemente pela receção tão hostil e mais tarde foi visitar os feridos ao hospital. Como sabes, foi nesse percurso que, inesperadamente, o seu carro surgiu na rua onde Gavrilo Princip deambulava furtivamente e este aproveitou para disparar. Um acaso infeliz, que lançou a Terra numa espiral de guerras. Ali, Gavrilo procedeu de forma diferente. Postou-se perto da sala de exposições, esperando, talvez, que o arquiduque mantivesse a visita programada. Não manteve. Acabou por voltar para Viena sem um arranhão.
Fiquei feliz pelo resultado, sem contudo ter uma opinião clara sobre a causa da variação. Para uma melhor perceção da diferença resultante, fiquei lá mais um mês. Por essa altura, como na Terra, o imperador Francisco José acusou a Sérvia de fomentar a sublevação em algumas regiões ocupadas pelo Império, fazendo várias exigências de controlo. Como aqui, a Sérvia aceitou a maioria delas, exceto as inspeções dentro do seu território, por considerá-las uma violação da sua soberania. Então, o Império austro-húngaro atacou a Sérvia, a Rússia foi defendê-la, a Alemanha juntou-se ao Império, e, como aqui, o resto que tu sabes.
Compreendi que o atentado na Terra foi bem-sucedido devido a uma circunstância meramente casual, e que não terá sido tão decisivo para o início da guerra, como se pensa. A atmosfera de confrontação que se vivia no continente, que até os movimentos artísticos refletiam, era determinada por uma atitude belicosa das potências envolvidas, cuja arrogância as incapacitava de dialogar com as minorias subjugadas. Percebi que foram e são essas potências as grandes responsáveis pelas guerras. Qualquer pretexto lhes serve para prosseguir políticas de domínio global, seja um atentado ou outra desculpa qualquer.
Para o ano, vou integrar outra missão de observação crono-simétrica: tenho a incumbência de averiguar que pretextos foram usados para começar a guerra contra o Iraque, em três pontos diferentes do Universo.

Joaquim Bispo

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Imagem: Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo [cópia em bronze e original de 1913, em gesso].
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(Este conto foi publicado no número 29 da revista literária virtual Samizdat, de junho de 2010.)
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10/05/2017

A Vingança de Zeus


Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.

Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.
Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, ficará por ali, não se prolongará para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adoção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última alternativa, ao menos, a parte genética da esposa está presente.
Foi isso que os membros do casal alemão decidiram ele de ascendência grega, 29 anos, e ela de idade semelhante , mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.
Será que, a partir daí, o casal entregou o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.
Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de todos os homens, pelo menos dos imaturos. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspetiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao inseminador que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas noturnas do marido.
Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a vizinha, sua mulher, confortava-se com a entrada da receita extra; o grego esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais, e com dupla garantia para a cria. Pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.
Foi neste ínterim que Zeus quem mais? interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado roído de inveja da sorte olímpica do vizinho porque ele, apesar de ser o todo-poderoso deus dos deuses, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou à deusa que deseja.
Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal infértil começou a duvidar da eficácia dele para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora também o vizinho era infértil só que, desta vez, com consequências ainda mais devastadoras.
O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os seus filhos não eram seus e supremo golpe não poderia vir a tê-los.
Podemos conjeturar que ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tenha tentado desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro ou de técnico de televisão por cabo, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.
Do casal greco-alemão de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, propriamente dita, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.
O vizinho, que também pode vir a precisar, não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra salvo seja conforme combinado, mas que nunca garantiu a consecução do projeto.
O caso estava para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild — porque pela boca de Zeus jamais o saberíamos…

Joaquim Bispo

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Imagem: Nikias Skapinakis, Leda e o Cisne (?), Coleção Berardo (?).

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(Esta crónica foi publicada no número 27 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2010.)

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10/04/2017

Domingo de Ramos



O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram recebidos com aplausos e cânticos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O episódio matinal foi ignorado por quase todos os correspondentes estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que, por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, atualmente ocupada por Israel. Tornou-se um revoltado, quando viu a terra, que ele amava desde pequeno, ser colonizada, ocupada e apropriada aos poucos, por gentes, vindas de várias partes do Mundo. Viu que essas gentes eram incapazes de uma identidade médio-oriental, pois procuravam-na no território mas rejeitavam-na na cultura. Viu a segregação feroz do seu povo e a separação efetiva de territórios irmãos, devido à construção de uma muralha de betão de oito metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, tão cruel que chega a isolar populações, como as 450.000 pessoas de Jerusalém oriental.
Em vista do meu espanto, disse-me que, sem o quererem assumir, os dirigentes israelitas estão determinados a reconstituir a grande terra de Canaã das escrituras tradicionais, e a usar a força que for precisa contra os opositores à anexação do território palestiniano — destruindo cidades, utilizando armas proibidas contra populações civis, exterminando indiscriminadamente, sem olhar a idades. Tudo isto perante os olhos do Mundo e apesar do clamor internacional, incapaz de contrariar a posse das únicas armas nucleares da zona e o apoio incondicional do novo império mundial, que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao cobiçado oceano subterrâneo de petróleo.
Revoltado, como tantos outros palestinianos que esbracejam para ver o seu povo liberto do domínio estrangeiro, o jovem nazareno, porém, não se lançou nos braços da OLP ou do Hamas. De carácter meditativo, formou um grupo de ativistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de ações não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o território como dois estados irmãos. Diz ele que não faz sentido que Israel queira reconstituir um Estado confessional com o mesmo território que dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel, organizassem um Estado militarizado e passassem a expulsar os habitantes atuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se necessário.
Avesso à violência, também condena os atos de intolerância dos palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero. Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
Um homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a vinha. Assim se fez, mas quando o dono enviou emissários a recolher a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo fizeram ao filho do dono, cuidando apoderar-se definitivamente da herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando evidenciar a razão dos desapossados.
Mostra ser muito sagaz, embora idealista. Nicodemo, um membro do Knesset que acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada messiânica em Jerusalém foi decalcada do Antigo Testamento, como estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores, que esperam ainda o Messias. Entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem montado numa burra, e sobre o burrico da burra.»
Aparentemente, esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos judeus absortos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava, começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões, provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência. O burburinho foi imediatamente detetado por uma patrulha militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar.
O homem não só não parou como estendeu o braço para os soldados com dois dedos da mão levantados, talvez a formar o V de vitória. Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada. Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
O vídeo passou uma dúzia de vezes nas televisões, acompanhado da nota de que o desordeiro morrera pouco depois no hospital e de que os companheiros tinham sido presos e estavam acusados de alteração da ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para terrorismo.
Neste dia em que vos falo, o episódio está esquecido. Um enorme equívoco continua a matar silenciosamente naquela área. O nazareno pacifista foi só mais uma vítima anónima deste equívoco.

Joaquim Bispo

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Imagem: Giotto, Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém [Domingo de Ramos], afresco, Capela Scrovegni, Pádua, Itália, 1305.

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(Esta crónica narrativa, com o título “Um muro de intransigência” foi publicada no número 23 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2009.)

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