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10/02/2017

Silêncio


Todos chamavam Plantão ao louco da pequena vila do Sabugal. Calcorreava a povoação, descalço mas com garbo, como se medisse cada passada com exatidão. A última pessoa que lhe ouvira a voz, num dia mau de uns anos antes, desenganara-o:
— N'o há cá pão pa malucos!
Conhecido de todos, entrava nos cafés, avaliava os circunstantes e dirigia-se a um deles. Ficava a olhá-lo, sem dizer palavra, sem estender a mão, direito e parado. O visado, geralmente, puxava de uma moeda e dava-lha. Plantão recebia a moeda e retirava-se, com um ligeiro aceno de cabeça. E recomeçava a ronda. Dizia-se, sem ninguém conseguir confirmar, que tinha sido seminarista e tinha ficado enlouquecido entre os ditames da religião católica e os textos dos filósofos niilistas. Dizia-se.
Era uma figura que, pela sua presença constante, já não se estranhava e até se respeitava, na sua loucura serena. Mas, certa vez, aí por fim de janeiro, um rapazote de nome Inácio, querendo divertir-se à custa dele, trouxe um velho violino sem cordas que encontrara no sótão e deu-o a Plantão. Este ficou demoradamente a olhar para o instrumento, talvez relembrando antigas aulas de música, e passou a transportá-lo debaixo do braço. De vez em quando, sentava-se na berma do jardim, colocava o violino na posição de tocar e começava a menear a cabeça como se imaginasse as notas. E ficava lá horas esquecidas.
Foi desde essa altura, também, que o rapaz que lhe dera o violino, o Inácio, começou a desatinar, a dizer que ouvia música na sua cabeça e que era o Plantão que a provocava. Todos se riram dessas declarações e gracejaram, dizendo que estava a ficar mais louco do que o pobre Plantão.
No sábado de Entrudo, Plantão transformou-se. Talvez influenciado pelos vários mascarados que, sozinhos ou em grupo, percorriam as ruas da vila, dizendo pilhérias e fazendo momices, Plantão passou toda a tarde na rua principal, para trás e para a frente, a fingir que tocava, sem arco, o seu violino sem cordas. Toda a gente se surpreendeu com a transformação exuberante de Plantão, mas acharam-lhe piada. Os mais novos, vendo nele um alvo fácil, começaram a bombardeá-lo de longe com bolas de farinha e a esguichá-lo com pistolas de água, que ele parecia ignorar, mas foram rapidamente censurados pelos mais velhos. Pelo fim da tarde, surgiu Inácio, de rosto enlouquecido, a berrar para o Plantão parar, e a tentar arrancar-lhe o violino, intento de que ele se esquivava. A cena, de tão concertadamente burlesca, levava os transeuntes às lágrimas.
A pantomima repetiu-se na tarde soalheira de domingo, entrecortada, uma ou outra vez, pelas contradanças bem ensaiadas, que se exibiam nos largos e nos cruzamentos das ruas, nesse longínquo início dos anos 60. As pessoas, agora, em vez de rirem, paravam a apreciar o rigor gestual e o espetáculo fisionómico do violinista fictício. Inácio, não faltou, mas começava a deixar de ter piada, tão deprimente era a sua cara, chorando e implorando para que Plantão parasse de tocar.
Segunda-feira fez-se intervalo nas brincadeiras, exceto Plantão que passou a tarde “a ensaiar” na berma do jardim. Inácio não apareceu. Foi visto a vaguear, de olhar alucinado e mãos nos ouvidos, pelo caminho enlameado de uma ermida dos arredores.
Terça-feira, Plantão foi a grande atração do Entrudo da vila. Parado e aprumado no centro do largo principal, revestido de uma dignidade que metia respeito, deu o concerto da sua vida. Exibia tais meneios de corpo, tal virtuosismo de gestos e expressões, que só faltava mesmo ouvir-se a música. No entanto, um ex-sargento que tocara na banda da Armada, disse que reconhecia uma das músicas que Plantão parecia tocar. Foi a apoteose. Toda a tarde Plantão tocou para quem o quis ver. De Inácio, nem sinal. 
Quando as vizinhas se encaminhavam para a missa das sete, já em quarta-feira de cinzas, depararam com Inácio caído junto à porta da igreja a esvair-se em sangue. De cada ouvido ensanguentado, sobressaía uma cavilha de violino.

Joaquim Bispo

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Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso, Música Surda, c. 1914–1915.
Coleção Particular [Até 26/2/17, no Museu do Chiado, Lisboa]

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(Este conto foi publicado no número 26 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2010.)
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