10/06/2017

O Ar do Tempo



Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.”
Marinetti, Manifesto Futurista, 1909.

Arrastando a brevidade da nossa existência na lama do nosso pequeno mundo, esfrangalhamo-nos de impotência, de cada vez que a tragédia nos atinge. Como seria perfeito podermos voltar atrás e alterar o que correu mal: aquela brincadeira de adolescente que teve consequências funestas, aquela nossa palavra impensada que comprometeu a nossa vida profissional, o episódio que desencadeou uma guerra.
Um dos episódios singulares de consequências mais devastadoras da nossa História recente é o do atentado bem-sucedido contra o herdeiro do Império austro-húngaro, o arquiduque Francisco Fernando. Foi perpetrado na cidade de Sarajevo por um estudante de vinte anos, membro de um grupo nacionalista de inspiração sérvia, em 1914. Quase todos os historiadores estão de acordo que esse episódio desencadeou a Primeira Guerra Mundial, que levou à Segunda, que levou à Guerra-fria, que levou à hiperpotência única e a outros males correlatos.
Candidamente, podemos pensar que, se pudéssemos evitar esse atentado, o rumo do mundo teria sido muito diferente; não teríamos passado por aquelas guerras terríveis, e hoje teríamos paz. Evitá-lo seria o ideal, mas, para muita gente, entender o que correu mal já seria um avanço extraordinário, já forneceria um avo de esperança de evitar, no futuro, a sequência fatal de acontecimentos que leva ao horror.
Alguns filósofos admitem que, devido à extensão infinita do nosso universo, toda a nossa história está, também, a decorrer num número inimaginável de outros mundos, em incontáveis variantes que resultam de outras tantas pequenas variações de rumo. Assim sendo, a nossa mesma história poderia ser encontrada e observada numa das inúmeras fases já passadas ou futuras, como em cada versão do que podia ter sido.
A ideia é aliciante. Desgraçadamente, mesmo que seja verdadeira, falta aquele pormenor: conseguir viajar no tempo. Infelizmente, o tempo parece caminhar numa só direção. Todas as tentativas de viajar nele, se é que existiram, falharam.
A nossa única consolação é a ficção. Nela, temos exercido a liberdade de viajar no tempo, nos dois sentidos conhecidos, à velocidade que o autor decidiu. Caro leitor, aceite embarcar neste meio de transporte espaciotemporal e observe um pouco do ambiente que lançou a Europa e o Mundo na Primeira Guerra Mundial. Partamos!

Ao abrigo de um programa secreto, foi, há seis anos, enviado um explorador a um planeta dum aglomerado globular a 160 milhões de anos-luz de distância, onde se detetou que o atentado de Sarajevo não resultou. Pretendia-se perceber qual foi o pormenor que alterou o rumo da História e por quê, a fim de tentar evitar tragédias semelhantes, no futuro. Como esse explorador faz o favor de ser meu amigo, um dia contou-me o seguinte:
A minha missão era apenas seguir o estudante radical Gavrilo Princip e, como sombra, observar o que fazia, já que na Terra tinha sido ele a abater o arquiduque e a mulher. Nos dias anteriores ao atentado, reuniu-se várias vezes com os seus correligionários da “Mão Negra”, combinando posições ao longo do trajeto do alvo pelas ruas de Sarajevo e as armas que cada um iria utilizar. O grupo parecia animado por um ódio violento contra a recente anexação austro-húngara da sua Bósnia-Herzegovina, e falava frequentemente da congregação futura de todos os povos eslavos, desde os sérvios aos eslovacos, sob uma bandeira comum — o chamado pan-eslavismo. Até aqui, tudo como na Terra. O que me surpreendeu foi a realização de uma exposição de artistas futuristas na cidade, a ser visitada pelo arquiduque. O grupo infiltrara lá um elemento, como vigilante, o qual deveria detonar uma bomba escondida no interior da escultura mais representativa, quando Francisco Fernando estivesse a admirá-la.
Na antevéspera, Gavrilo acompanhou o amigo vigilante à exposição. A ideia era ajudar a distrair alguém presente, enquanto a bomba era instalada por outros dois elementos. Por coincidência, deambulava pelas salas um dos artistas — o depois famoso Umberto Boccioni. Gavrilo e o companheiro mostraram-se interessados nas obras expostas, e o artista gostou do ar radical e da postura revolucionária deles. Para ilustrar a atmosfera que se vivia na Europa, mesmo dentro dos movimentos artísticos, relato alguns dos diálogos mantidos pelo pequeno grupo:
Gosto destes teus “Estados de alma” e do “Tumulto na galeria” — começou Jovanovic, referindo-se a duas pinturas de Boccioni e afastando o artista da zona das esculturas. — São violentos.
"Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima" — teorizava Boccioni, citando o Manifesto Futurista, de Marinetti. — Já não há beleza senão na luta.
Rapidamente, a conversa derivou para temas de patriotismo, anarquia e insurreição, afinal, caros a ambos os grupos: artistas futuristas e radicais do “Mão Negra”.
Também penso isso — acompanhava Gavrilo. — O mundo está submetido a impérios que oprimem os povos: o austro-húngaro, o alemão, o inglês, o russo e o otomano, para só falar dos maiores.
"Nós, os futuristas, cantaremos as grandes multidões agitadas pela sublevação" — enlevava-se Boccioni.
Só a Sérvia nos pode salvar da pata dos impérios — declarava Jovanovic. — Com os nossos irmãos de outras regiões eslavas, formaremos uma grande nação que renovará o decadente Ocidente, conforme bem disse o grande Bakunine.
"A guerra é a única higiene do mundo" — prosseguia Boccioni, alimentado pelo radicalismo dos visitantes e pelo espírito do Manifesto Futurista de 1909. — O patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas são belas ideias pelas quais vale a pena morrer.
Nessa altura — confessou o meu amigo — eu já duvidava que, com tal incitamento, Gavrilo deixasse de executar o gesto assassino pelo qual ficou conhecido na Terra.
Que pensas do arquiduque que depois de amanhã visitará a tua exposição? — perguntou ele ao artista.
Acho-o capaz de iniciar uma bela guerra, aquela que a Europa precisa para varrer todo este bolor acumulado — respondeu o pintor escultor. — Sabes o que ouvi dizer? Que, ao longo da vida, já matou cinco mil veados em jornadas de caça, o feroz. Gosto desse laivo agressivo dele.
Pouco depois, Gavrilo despediu-se; a bomba já fora instalada na mais emblemática escultura da exposição — um gesso com o título “Formas Únicas de Continuidade no Espaço”, que agora está em S. Paulo e cuja imagem circula nas moedas de vinte cêntimos de Itália.

No dia da visita do arquiduque, 28 de Junho, a comitiva deslocava-se em sete carros. O arquiduque e a esposa iam no terceiro. O primeiro membro do grupo, Mehmedbasic, não disparou por não ter bom ângulo. O segundo lançou uma bomba que falhou o alvo, mas feriu várias pessoas do carro seguinte. Tomou rapidamente uma pílula de cianeto e lançou-se ao rio que atravessa Sarajevo, mas a pílula não fez efeito; foi retirado do rio e quase linchado, mas a polícia levou-o. Como cá.
Eu não estava a ver o que é que iria ser diferente. Os restantes membros, incluindo o que eu vigiava, fugiram. Como na Terra, o arquiduque irritou-se fortemente pela receção tão hostil e mais tarde foi visitar os feridos ao hospital. Como sabes, foi nesse percurso que, inesperadamente, o seu carro surgiu na rua onde Gavrilo Princip deambulava furtivamente e este aproveitou para disparar. Um acaso infeliz, que lançou a Terra numa espiral de guerras. Ali, Gavrilo procedeu de forma diferente. Postou-se perto da sala de exposições, esperando, talvez, que o arquiduque mantivesse a visita programada. Não manteve. Acabou por voltar para Viena sem um arranhão.
Fiquei feliz pelo resultado, sem contudo ter uma opinião clara sobre a causa da variação. Para uma melhor perceção da diferença resultante, fiquei lá mais um mês. Por essa altura, como na Terra, o imperador Francisco José acusou a Sérvia de fomentar a sublevação em algumas regiões ocupadas pelo Império, fazendo várias exigências de controlo. Como aqui, a Sérvia aceitou a maioria delas, exceto as inspeções dentro do seu território, por considerá-las uma violação da sua soberania. Então, o Império austro-húngaro atacou a Sérvia, a Rússia foi defendê-la, a Alemanha juntou-se ao Império, e, como aqui, o resto que tu sabes.
Compreendi que o atentado na Terra foi bem-sucedido devido a uma circunstância meramente casual, e que não terá sido tão decisivo para o início da guerra, como se pensa. A atmosfera de confrontação que se vivia no continente, que até os movimentos artísticos refletiam, era determinada por uma atitude belicosa das potências envolvidas, cuja arrogância as incapacitava de dialogar com as minorias subjugadas. Percebi que foram e são essas potências as grandes responsáveis pelas guerras. Qualquer pretexto lhes serve para prosseguir políticas de domínio global, seja um atentado ou outra desculpa qualquer.
Para o ano, vou integrar outra missão de observação crono-simétrica: tenho a incumbência de averiguar que pretextos foram usados para começar a guerra contra o Iraque, em três pontos diferentes do Universo.

Joaquim Bispo

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Imagem: Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo [cópia em bronze e original de 1913, em gesso].
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(Este conto foi publicado no número 29 da revista literária virtual Samizdat, de junho de 2010.)
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