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10/05/2018

Anti-Íon ou a Crítica do Dom



Timandro: Íon! Clistes! Bons olhos vos vejam! Donde vindes, assim, laureados?
Íon: Viva! Estivemos nas festas do Epidauro, onde pusemos à prova os nossos dons.
Clistes: Viva!
Timandro: Ah, sim; ouvi dizer que o concurso de rapsodos é muito apreciado e concorrido. Também há concurso de aedos?
Clistes: Sim; e dos mais importantes. Eu concorro sempre.
Timandro: E, pelo que vejo, saístes-vos bem!
Íon: Eu venci o concurso de rapsodos.
Clistes: E eu só perdi para o aedo de Egina. Em onze concorrentes.
Timandro: Fico muito feliz, por vós. Dizei-me: o que vos fez enveredar por essas tão belas ocupações? Qualquer um consegue ser rapsodo ou aedo?
Íon: Não, de modo algum. É o dom com que se nasce. A excelência que ponho nas minhas atuações e que faz chorar os que me ouvem é um dom com que nasci.
Timandro: Ah, sim? Dize-me: já em criança sabias recitar Homero?
Íon: Sim, mas só pequenos trechos. Aos poucos é que fui dominando a extensa obra do génio.
Timandro: Então o dom com que nasceste era pequenino?
Íon: Sim, posso dizer que sim. Felizmente que o meu tio Perilo era um apaixonado por Homero e não descansou enquanto não me incutiu o gosto. Recitava-me frequentemente as mais emocionantes passagens da Odisseia.
Timandro: Queres dizer que, se não tivesses um tio que te estimulou o gosto pelas epopeias homéricas, talvez esse pequeno dom com que nasceste tivesse murchado?
Íon: Nem mais. Estou muito agradecido ao meu tio.
Timandro: De bem pouca valia é um dom que não se usa. Imagina que nasceste com o dom do auriga e que o deixaste estiolar. Como saberias que tinhas nascido com ele?
Íon: Provavelmente, nunca o saberia.
Timandro: Então, é possível que nasçamos com muitos dons que não desenvolvemos e, portanto, nem deles tomamos consciência.
Íon: Assim deve ser, como dizes.
Timandro: E tu, Clistes, nasceste com o dom de fazer e cantar poesia ao som da lira?
Clistes: Depois do que disseste, creio que não; só comecei a gostar do fino vibrar das cordas da lira quando me apaixonei por Magide, filha de Macário. Nessa altura é que a musa se apoderou de mim.
Timandro: Então, segundo Íon, não devias ter dom, porque não nasceste com ele.
Clistes: Tenho, tenho. Componho com facilidade e toco e canto com gosto.
Timandro: Desculpai, se insisto: esse dom que, de uma maneira ou de outra, tendes é que vos levou à vitória, mas também trabalhais para conseguir tais êxitos, presumo, ou o dom é suficiente?
Íon: Não, eu estudo incessantemente Homero. É preciso conhecer o seu pensamento em profundidade e não só decorar-lhe as palavras. E recito partes da Ilíada todos os dias.
Timandro: Queres dizer que nasceste com um dom que foi sendo aperfeiçoado com trabalho!
Íon: Sim, pode-se dizer isso.
Timandro: Então, o que mais contribuiu para te levar à vitória: o trabalho que puseste no estudo ou o dom?
Íon: Ambos. O dom com que nasci — ou que aprendi com o meu tio — forneceu-me o interesse pela representação das epopeias; o trabalho dá-me a competência no conhecimento de Homero. Mas nada disto seria suficiente para empolgar a assistência se não fosse o que Clistes já referiu. Aliás, ainda ontem tive esta mesma conversa com Sócrates que me provou que eu estou fora de mim quando faço emocionar a audiência.
Timandro: Sócrates é sábio.
Íon: Sócrates estranhou que, falando Homero, Hesíodo e outros poetas dos mesmos assuntos — guerra, relações entre os homens, e destes com os deuses, e dos deuses entre si, e da genealogia dos heróis e dos deuses — eu só saiba falar e interpretar bem as palavras de Homero e não saiba nem goste de falar dos outros poetas.
Timandro: Por que achas que isso acontece?
Íon: Eu pensava que era porque Homero fala das mesmas coisas, mas muito melhor que os outros poetas, mas Sócrates convenceu-me de outra coisa.
Timandro: E o que disse ele?
Íon: Que se eu sei reconhecer que Homero fala melhor que os outros, mas das mesmas coisas, eu também deveria saber falar bem dos outros poetas.
Timandro: Aparentemente...
Íon: Acontece que não sei falar dos outros e aborrece-me mesmo ouvir falar deles. Ora, Sócrates diz que isso significa que o que eu digo de Homero não advém de conhecimento, mas de outra causa.
Timandro: Sócrates é sábio. Não ignora, certamente, que é possível falar das mesmas coisas mas de modos totalmente distintos, assim como é possível representar Zeus como Fídias o fez, ou como o fazem outros escultores menores.
Íon: E, na verdade, Homero é inexcedível.
Timandro: Não considerou Sócrates que sempre viveste “rodeado de Homero” e que estudas Homero afincadamente e não os outros poetas, e que, por isso, é lógico que o conheças melhor e o prefiras?
Íon: Não. A interpretação dele é a de que estou possuído por uma força divina, quando o recito.
Timandro: Curioso! O caso é tal que seja necessário recorrer a explicações tão potentes?
Íon: Sócrates diz que a mesma musa que inspirou Homero, quando ele compôs a sua obra, transmite a sua influência para mim e de mim para a audiência.
Timandro: A musa! Sócrates é sábio, mas, como ele próprio está sempre a dizer que nada sabe, é natural que muitas vezes se tenha reconhecido em erro e se previna de equívocos futuros. De cada vez que oiço invocar as musas como explicação de alguma coisa humana, lembro-me sempre do mau teatro.
Íon: Como assim?
Timandro: As ações de uma peça devem estar encadeadas numa relação de causa e efeito, de modo que cada uma seja a resultante lógica e necessária dos acontecimentos anteriores. Uma peça assim encadeada tem verosimilhança os espectadores reveem-se nela, como na vida. Uma má peça, pelo contrário, quando não consegue criar desenlaces consequentes com o nó que a trama enredou, recorre ao deus ex machina, dando um fim abrupto à história, não congruente com o fio da narrativa, o que desagrada sobremaneira aos que a veem.
Íon: A mim agrada-me que, pelo menos em certos momentos, eu seja instrumento do divino.
Timandro: Isso evita-te, certamente, seres desafiado por aqueles que são da mesma opinião que Sócrates. Os que te consideram instrumento do divino poderão travar a inveja com a desculpa de que não se consegue competir com o divino. Por um momento, vislumbrei a possibilidade de Sócrates te invejar.
Íon: Não creio. Mas os teus remoques a Sócrates é que me parece indiciarem alguma dor de cotovelo…
Timandro: Sem dúvida! Quem me dera que o meu filosofar tivesse a acutilância e a profundidade do jeito de filosofar do feioso. Mas, voltando ao nosso tema: e tu, Clistes, também sentes a possessão da musa?
Clistes: Compor poesia é deveras misterioso. Não sei onde vou buscar as palavras e as personagens que me surgem. Acredito que é a musa que mas insufla, como num sopro.
Timandro: Dize-me!: surgem-te palavras e personagens desconhecidas?
Clistes: Não; todas as palavras são por mim conhecidas, mas aparecem-me organizadas de uma maneira tão sensata e harmoniosa que me surpreendo que tenha sido eu a gerá-las, naquele encadeamento. Já as personagens são mais difíceis de caraterizar. Todas elas me são desconhecidas naquela forma.
Timandro: Naquela forma? Já as conheces sob outra máscara?
Clistes: Cada personagem parece-me uma mistura de outras, que conheço das epopeias; de heróis, de deuses, de homens.
Timandro: Então dirias que elas já existiam em ti, como as palavras que referiste? Isso significaria que não houve qualquer “sopro” exterior e que tudo é criado no teu espírito.
Clistes: Sim, mas, nas formas e atributos com que me surgem, são-me totalmente inesperadas.
Íon: Também me surpreendo com as palavras que saem da minha boca, quando estou no estrado. Sócrates disse que os belos louvores que teço a Homero não são devidos a uma techné que pudesse ser atribuída ao meu mérito, mas ao privilégio exterior concedido pela musa; que eu falo sem nada compreender. Senti-me humilhado.
Timandro: Sócrates é o mais sábio filósofo da Grécia, o que não quer dizer que não possa vir a mudar de opinião em relação a algumas das convicções que agora mantém. Há quem diga que a imaginação é “uma amálgama de perceção e julgamento” e que implica sempre a presença da perceção. Não aceitas que a inspiração seja um estado de exaltação emotiva que atinge a alma do poeta que, qual tecedeira a escolher os fios coloridos de lã para compor tapetes sempre diferentes, usa um caráter deste, uma fisionomia daquele, um atributo de outro, para compor uma personagem inesperada?
Clistes: Assim poderá acontecer.
Timandro: Esclarece-me uma dúvida que me assaltou agora. Se estivermos atentos e formos honestos connosco, reparamos que a genealogia dos deuses varia conforme as regiões, como Afrodite, que para uns nasceu de Zeus e Díone, e para outros é filha exclusiva de Urano. A questão é a seguinte: nesses teus momentos de criação, já criaste algum deus ou, ao menos, modificaste os atributos de deuses ou heróis?
Clistes: Envergonho-me de o dizer, mas já. Quando não me lembro bem da história de algum, componho-a com o que me parece melhor. Uma peripécia em que Dioniso é raptado por centauros foi criada por mim. E já criei um deus — Metaro — que é filho de Hefesto e que quando quer vigiar os homens incorpora nas estátuas de bronze.
Timandro: Era o que eu pensava. Não me custa admitir que Hesíodo é que criou a maior parte dos nossos deuses. Há um filósofo em Abdera — Demócrito — que diz que não há deuses nenhuns. No fundo, a nossa vida não se alteraria muito sem a sua existência. Não há dúvida, no entanto, que tornam a nossa vida menos monótona e sempre nos sentimos mais acompanhados, porque a solidão é funesta.
Íon: Na verdade; mas cá estamos nós, rapsodos, aedos, poetas, dramaturgos e atores para tornar a vida mais empolgante.
Timandro: Por outro lado, há um abismo entre a situação do artista que considera a sua obra manifestação de uma entidade exterior — e, portanto, nenhuma responsabilidade e mérito tem nela —, e a situação de outro artista que, atuando sem o pressuposto de influências metafísicas, considera a obra sua, com tudo o que isso implica: batalhar por ela, pôr nela todo o seu saber e sentir, não se entregar à preguiça, sabendo que só o seu trabalho a fará emergir. Agora, dize-me, Íon: preferes ser o títere manipulado por uma improvável divindade, ou o autor da admirável arte que move a alma das multidões?
Íon: Se pões as coisas nesse pé…

Joaquim Bispo

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Fonte (emulada na forma, mas contestada nas teses): PLATÃO, Victor Jabouille (tradução), Íon, Lisboa, Editorial Inquérito, Lda., 1988.
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Imagem: Conversa entre filósofos, mosaico de Pompeia, século I d. C., Museu de Arqueologia, Nápoles.
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10/02/2016

Perdidos na translação


O aniversário de nascimento é a data mais marcante para quase todas as pessoas. Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o esquecem. Comemorar aquele momento especial em que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos. Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques não é diferente:
Hoje o nosso Martim vai apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez — anuncia o baboso pai da criança.
Reuniu à volta da mesa de almoço, em sua casa, avós, tios e primos do bebé. E mais meia dúzia de outros familiares. A ocasião não é para menos.
Nasceu exatamente à uma da tarde, de 20 de fevereiro — relembra. — Quando for uma da tarde, completará um aninho e vamos todos cantar-lhe os parabéns!
Isso, agora… — intervém o tio Francisco, que é um autodidata vaidoso e muito metediço. — Até podemos cantar-lhe os parabéns, mas esse miúdo tão giro não completa um ano à uma da tarde.
Como assim, tio? — reclama o papá frustrado. — Eu estava lá e assisti ao parto! Assim que saiu cá para fora, olhei para o relógio: uma da tarde em ponto.
Eu não digo o contrário, mas não passa um ano à uma. Só lá perto das sete da tarde. Aliás, curiosamente, é por isso que este mês tem 29 dias.
Todos os familiares já conhecem bem estas tiradas do tio e sabem que não há nada a fazer: de uma maneira ou de outra, ele vai desbobinar o relatório completo:
Estamos habituados a que, de 4 em 4 anos, fevereiro tenha 29 dias, em vez dos habituais 28 — continua ele, enchendo o peito. — É o resultado das repetidas tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano de calendário à duração da translação da Terra. O que não é nada fácil, porque, em vez de um número inteiro de dias, a viagem à volta do Sol deste esferoide maravilhoso, em que vivemos, dura 365,2422 dias. Nem 365, nem 366; um pouco mais de 365. Ora, o que é que isto implica? Que, no caso do nosso Martim, o aninho dele completa-se só pelas… 18 horas e quase 49 minutos.
Neste ponto, o pai da criança fecha os olhos e baixa e abana a cabeça, desanimado. Os mais novos, meio surpreendidos, meio divertidos, prestam alguma atenção à explicação do tio esquisito, que prossegue:
Alguns povos da Antiguidade, como os Mesopotâmicos, usavam 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, o que perfazia só 354 dias, mas, quando havia necessidade, adicionavam um mês extra. Os Egípcios e os Persas já usavam 12 meses de 30 dias, a que acrescentavam 5 dias, no fim do ano.
Por amor de Deus, tio; contas agora não! — insurge-se a mãe da criança.
Isto é muito interessante. São só dois minutos — desculpa-se o divulgador extemporâneo de ciência e história. — O calendário juliano — de Júlio César, do século I a.C. —, que vigorou no Ocidente por mais de 15 séculos, estipulava um ano de 365 dias, exceto que, a cada 4 anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de março. A cada 4 anos, havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de março. É daí que vem a designação de “bissexto”, e não por 366 dias ter dois algarismos 6. E de calendas derivou calendário.
Então, era igual ao nosso! — atreve-se um dos miúdos.
Quase! — esmiúça o “tio-enciclopédia”, puxando de uma esferográfica e de um guardanapo de papel. — O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano médio deste calendário — (365 + 365 + 365 + 366) / 4 = 365,25 dias — era ligeiramente maior do que o da duração real: 365,2422 dias. A diferença era pouca, mas, com o passar dos séculos, o desfasamento foi aumentando tanto que, no século XVI, o equinócio da primavera acontecia vários dias antes do dia 21 de março e tornou-se premente adotar outro calendário. Em 1582, sob o Papa Gregório XIII, adotou-se o calendário atual — o gregoriano, derivado do nome do Papa. Para que o dia 21 de março do calendário voltasse a coincidir com o equinócio da primavera, houve que saltar 10 dias. O ajuste foi feito no outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de outubro e quando acordaram no dia seguinte era o dia 15.
A sério? — entusiasma-se outro. — Que cena!
Sim. Foram 10 dias que nunca existiram no calendário de Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este calendário.
Mas saltar 10 dias resolveu o problema, de vez? — capitula o pai do aniversariante.
Não, mas minorou-o bastante. Repara no que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do ano:

. O ano tem 365 dias;
. Se o ano for divisível por 4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de fevereiro. Por exemplo, este ano — 2016 — é bissexto;
. Se o ano for fim de século e divisível por 400 — por exemplo 2000 —, o ano é bissexto. Caso contrário, mantém os 365 dias. É o caso dos anos de 1700, 1800, 1900, 2100, que são divisíveis por 4, mas não por 400.

Rematando o raciocínio, o tio Francisco ataca de novo o guardanapo:
Assim, o tamanho médio do ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365) + 366] / 400 = 365,2425. Mesmo com esta “ginástica” toda, ainda há que saltar um dia a cada 3333,(3) anos! Que difícil de encaixar esta nossa Terra! Não acham? — conclui.
Na mesa do almoço da festa do primeiro ano do bebé Martim, reina um silêncio mais ou menos constrangido. Quebra-o a avó Celeste:
Então, sendo assim, não custa nada adiar o bolo e os parabéns para mais logo — comenta, decidida. — Cantar os parabéns antes é que não! Dá azar.
Furtivamente, o anfitrião aproxima-se da esposa e sussurra-lhe:
Faz-me um favor, pela tua saúde: não convides mais o teu tio Francisco para as nossas festas!
Mas ela olha-o com um sorriso e dá de ombros, como quem diz: «Deixa lá! É um chato, mas é nosso.»

Joaquim Bispo

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(Este conteúdo foi publicado, sob a forma de ensaio, no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009, com o título “O ano bissexto”.)

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