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10/12/2023

Obra de misericórdia

 



Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato:

Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?

Era a sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade. Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes turísticos da zona.

Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco — lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa, sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora, vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?

Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então, agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente, escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal, mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.

A sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte desdobrava-se em perguntas.

Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma encomenda de uma peça para metro e meio. Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.

Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!

Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete, ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.

Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? — brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.

Ah! Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical. Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”, não sei se conheces.

Com programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe oferecia.

Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim fechado, mas público.

Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em Roma.

Mas isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? — admirou-se Duarte.

Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração! Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!

Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?

Já leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.

Duarte começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.

Parece latim, mas não me serve de muito… Já estou esquecido. O que é que isto significa?

Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança o que for preciso.

Filial?

Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do carcereiro, na visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia, “alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos, ambiguidades.

Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da amiga.

Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.

Duarte não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim. Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:

A mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.

Sobrinha!

Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora. Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados a olhar para a cena pintada?

Não sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás, parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas representando este tema. Pompeia! Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.

Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel relevante na sua popularidade.

Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha, se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar atirado para o alto da jovem representada — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio, acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para ela, há tanto tempo.

Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão ou mais passado do que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já tivera melhores dias.

Sabemos pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual. Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu. Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão dócil e sedosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura terna:

Chh! Com jeitinho!

Duarte não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão. Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”, suspeitou Duarte, por fim.

Em breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além, tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.

Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo lá do alto tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente. E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.

Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para afinar o modelo final da sua escultura.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 42ª edição (novembro/dezembro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 85):

https://drive.google.com/file/d/17eHuCBSfBm8MdceDc5oZApqQZcN-tIMv/view

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Outra versão deste conto tinha sido o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de leitores de Alcains, com a moderação de Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul.

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Imagem: Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.

Jardim Botânico Tropical, Lisboa.

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10/12/2020

O Paladino

 


O rei Milore e Guloz, o senescal do rei Justin, caçam o veado na floresta de Gamywood. Estão acompanhados pela rainha Florence e pelos cavaleiros de ambas as casas. A manhã vai avançada e ainda não abateram qualquer peça de caça. Avistam um veado, um enorme “doze-hastes”, pastando calmamente numa encosta fronteira. Guloz levanta o arco. Ao ver tal, o rei Milore incita o convidado:

A esta distância, homem algum lhe consegue acertar!

Que prémio me dareis, se o atingir? ─ inquire Guloz, sobranceiro.

O rei semicerra os olhos e avalia a distância: “Impossível!”

O que me pedirdes! ─ declara o rei, categórico.

O senescal retesa o arco. Um gavião passa a voar à esquerda do grupo. Os corações dos homens do rei apertam-se. A flecha parte, voa como nunca se vira, dirige-se velozmente em direção ao animal. Surpreendentemente, trespassa o flanco do veado que logo cai morto.

Levanta-se um coro de regozijo na comitiva. O cavaleiro Potranc está apreensivo. O rei grita:

Hurrah! Que bela peça vamos ter hoje para a ceia. Felicitações, sire! Dizei-me, então, que prémio quereis por esta proeza. Palavra de rei não volta atrás!

Guloz olha em volta e dá com os olhos na jovem rainha.

Quero a rainha Florence.

Um rumor atravessa toda a comitiva. Os cavaleiros do rei agitam-se, belicosos. O mais exaltado é Potranc. O rei mostra-se pesaroso e impotente. Ouvem-se palavras de revolta. Há muitas mãos nos punhos das espadas. A rainha intervém:

Sires, mostremos nobreza aos nossos convidados; não os hostilizemos. Eu irei com sir Guloz, já que ele assim o quer e o ganhou pela sua destreza em desafio justo.

Guloz, seguido pelos seus cavaleiros, parte de imediato, levando a rainha Florence.

Potranc diz ao rei:

Vós, pela vossa palavra, nada podeis fazer, mas eu, que não aceito a perda da minha senhora, irei resgatá-la de Guloz.

O fogoso cavaleiro parte a galope, sem que alguém o tente demover. Embrenha-se no caminho da floresta, por onde o grupo desapareceu. Ao fim de um bocado, chega a um riacho cuja ponte foi derrubada; pelos homens de Guloz, certamente. Mete o cavalo à água, o qual luta para vencer a força da corrente com tal peso na garupa. Passam ambos o obstáculo, sãos e salvos.

Logo à frente, encontra dois cavaleiros do senescal, que montaram guarda. Postam-se a barrar a passagem a Potranc. Este desembainha a espada e investe contra o primeiro. Retinem os metais. O segundo cavaleiro ataca-o pelo outro flanco. Potranc espadeira à esquerda e à direita. Num golpe à perna, corta o estribo do primeiro, que se desequilibra e cai. Ao segundo, assesta um golpe no elmo, que o deixa atordoado.

Potranc não quer combater, só passar. Avança. Mais à frente, chega a uma bifurcação. Há sinais de cascos em ambos os caminhos. Vê um monge que anda a apanhar ervas medicinais para as suas mezinhas. Diz-lhe:

Meu padre, se vistes passar a comitiva do senescal Guloz, dizei-me por que caminho seguiu.

Todos os caminhos vão dar ao Senhor, mas o do evangelho é mais direto que o da epístola ─ responde o santo homem.

Deixai-vos de enigmas, que isto não é um romance de Chrétien de Troyes ─ riposta Potranc de mau humor. ─ Indicai-mo sem demora!

À vossa direita, sire ─ diz o monge, após o que murmura entre dentes: “Nada se pode ensinar a quem pensa que tudo sabe!”.

Potranc retoma o galope. A tarde inteira, Potranc cavalga a toda a brida e esporeia o cavalo que, não suportando tal esforço, tomba e morre. O cavaleiro prossegue a pé.

Num troço do caminho onde o matagal é mais espesso, Potranc depara com um enorme javali. O animal, ou porque está a defender o território ou porque acha agressiva a figura do cavaleiro a pé, arremete de presas prontas a rasgar o que se lhe meta à frente. Potranc, surpreendido, só pode saltar para o lado. A besta volta à carga, mas o cavaleiro, treinado em justas de lança, aplica um tal golpe, com a sua espada Morandina, na cabeça do varrasco, que este tomba de crânio aberto.

Potranc prossegue. De um ramal, surge um almocreve, com uma carga de loiça no seu carro puxado por uma mula.

Para onde vais, almocreve? ─ indaga o cavaleiro apeado.

Para o castelo do rei Justin. Se quiserdes, posso levar-vos ─ responde o carregador, solícito.

Potranc não tem outro remédio senão aceitar, apesar da situação pouco nobre para um cavaleiro. Toma lugar ao lado do almocreve e rumam ao castelo, onde espera encontrar a sua senhora. Chegam à noitinha.

Potranc, informado pelo seu benfeitor, dirige-se à torre onde Guloz habita. Sobe os degraus a dois e dois. O seu peito está cheio de receio, pelo que possa ter acontecido à sua rainha. Ouve a voz de Florence, em gritos de aflição. Vêm do ponto mais alto da torre. Lá chegado, Potranc encontra dois homens armados a defender uma porta. De trás dela, vêm os gritos da sua senhora. Louco de fúria, arremete de espada em riste contra os sequazes de Guloz. Tinem os ferros num bater ritmado, chispando a cada golpe. Guloz assoma, a ver o que se passa. Pela porta aberta, Potranc vislumbra a sua senhora de cabelos em desalinho.

Minha senhora, morrerei, se tal for preciso, para vos salvar ─ grita o cavaleiro, entre duas espadeiradas.

Guloz, com um gesto, manda parar o combate.

Que quereis daqui, cavaleiro?

A minha senhora, que vós, maliciosamente, usurpastes ─ responde Potranc enraivecido.

Vistes bem que não forcei o rei Milore a prometer-ma. Ganhei-a em aposta leal.

Aposta, sim, mas não leal. Um nobre cavaleiro, além do mais, convidado, não se aproveita assim, dum gesto magnânimo do seu anfitrião. Vós não tendes nobreza.

Já que quereis tanto bem à vossa senhora, prometo entregar-vo-la se cumprirdes com êxito três tarefas que vos vou indicar: matar o javali que vive na gruta do Diabo; enganar a bruxa do Penedo e fazê-la beber da sua própria poção; e encontrar-me a espada que deixei cair ao Lago do visco ─ enumera Guloz com um sorriso furtivo.

Não vou cumprir nenhuma dessas estúpidas tarefas ─ riposta Potranc. ─ Não que me intimidem. O mais certo é que não respeitásseis a vossa própria palavra e criásseis outros obstáculos. Vós sois matreiro e cobarde!

O cenho de Guloz carrega-se. Está prestes a bradar por reforços, quando chega o rei Justin, atraído pela algazarra que a luta na torre tinha provocado. Quer ouvir ambas as partes. Depois, sentencia:

Guloz tem razão porque, dadas as condições e embora sem nobreza, conquistou o direito a escolher a rainha como prémio, mas Potranc, como seu paladino, tem direito a procurar contestar essa condição que desonra a rainha e o rei Milore. Tal situação também me constrange e temo que ponha em perigo as boas relações que têm existido entre os dois reinos. Estais dispostos a lutar por Florence, em combate singular?

Ambos os contendores assentem. Na manhã seguinte, à hora combinada, em frente aos cavaleiros dispostos em fila e às damas da corte, que se aglomeram junto ao palanque real, alinham-se os antagonistas. Justin dá sinal para começarem. Cada um esporeia o cavalo que lhe foi distribuído e arremete contra o outro, de lança em riste. O primeiro golpe faz voar um troço da ponta de cada lança. Os cavaleiros voltam para trás e tornam a enfrentar-se. Uma e outra vez as lanças apontam ao peito do adversário e, todas as vezes, a espada do oponente afasta o perigo, com um golpe potente e decidido. Quando de cada lança não resta mais que um toco, trocam por novas e recomeçam o combate.

Neste reinício, Potranc engana o rival e atinge-o com a lança em pleno peito. Guloz é arrancado da montada e cai desamparado. Potranc não se aproveita da vantagem. Desmonta e prossegue o combate a pé. Guloz já se levanta e maneja a espada enraivecido. Durante muito tempo, os escudos ressoam com as pancadas dos ferros. Os cavaleiros que assistem mantêm-se silenciosos, mas as damas não conseguem evitar um ou outro grito de emoção. As maiores simpatias vão para o defensor da rainha Florence.

De repente, um brado. Potranc, entrando pela nesga entre a proteção do ombro e a do tronco, penetra a cota de malha de Guloz e atinge-lhe a carne. O senescal sangra abundantemente e parece exausto. Finalmente, cai de joelhos, sob o peso da armadura. O rei manda parar a disputa, não que Potranc faça menção de atacar o adversário no chão, mas por se tornar claro de que lado está a razão neste ordálio. A rainha Florence será confiada à proteção de Potranc; Guloz, sem honra para continuar a ser o senescal do rei Justin, será expulso do seu reino.

Após uma refeição festiva, Potranc e a rainha partem, cada um em seu cavalo, nobremente ajaezados. Embrenham-se na floresta, de regresso ao seu castelo, mas por um caminho que evita a ponte caída. A tarde vai soalheira, a floresta enche-se de cores fortes, mas nenhuma parece mais agradável a Potranc que o dourado que se solta em chispas, quando o sol atinge a cabeleira loura de Florence.

De repente, um texugo passa a correr à frente do cavalo da rainha. Este assusta-se e toma o freio nos dentes. Potranc vai atrás, tentando travar o galope louco do animal. Embora o comando dum cavalo não tenha segredos para a rainha, desta vez, não consegue dominá-lo e cai, felizmente, sobre um tufo de junco. Não se magoa. O cavalo desaparece pelo caminho que seguem e que serpenteia por entre as árvores. Não há outro remédio senão subirem para a mesma montada e viajarem muito mais devagar.

Daí a pedaço, o sol baixa e a floresta começa a escurecer. Passam por um forno de carvão, chegam à cabana do carvoeiro, que parece não receber o dono há semanas, e resolvem pernoitar ali. Enganam o estômago com maçãs silvestres e descansam, como podem ─ Florence no catre do carvoeiro e Potranc reclinado sobre a sela.

Na manhã seguinte, quando Potranc acorda, fica amorosamente enlevado pelo rosto adormecido da sua senhora sobre um mar de fios dourados, cujas ondas enrolam na cabeceira. A rainha acorda também e percebe o arrebatamento no olhar claro do seu paladino, iluminado pelos alvores da manhã.

Bem conhece ela o entusiasmo que o cavaleiro põe nos poemas e louvores que canta à sua beleza e a outros atributos e talentos, nos alegres e prazerosos serões do castelo, e lhe valem, não sem fundamento, o epíteto maldoso de “lançarote”. Sim, é certo que, muitas vezes, vai visitar o leito de Milore, mas com a alma deleitada pelas palavras e as canções de Potranc. Não será o rei que reclamará por esse acréscimo de languidez.

Eis agora junto a si, de olhar apaixonado e depois de se ter sujeitado a tantos perigos para a salvar, o mesmo generoso e bravo jovem que tantas vezes a faz sonhar nos jogos de amor cortês. Os seus olhares fundem-se numa comunhão de almas mutuamente afeiçoadas. Uma enorme ternura invade Florence que quase desfalece. Os corações abandonam-se à vontade do destino. Nenhum tenta resistir à atração.

Os lábios encontram-se e os corpos pressionam-se um contra o outro num paroxismo de desejo há muito sublimado. As mãos libertam roupas e tateiam geografias ocultas. Potranc vislumbra finalmente o mármore e a seda que tantas vezes adivinha no corpo da sua senhora, quando nele cogita. Florence entrevê nos peitorais do cavaleiro a potência do Arcanjo Miguel. O encontro da seda e do couro não pode ser dito por palavras; o purgatório deve ser assim; o advento do paraíso é uma urgência.

Mas o corpo de Potranc, tão lesto e magnânimo quando, na solidão do seu leito de cavaleiro, fantasia com a rainha, mostra-se agora preguiçoso e refratário. A iminência de receber, sem resistências nem hesitações, a rendição da fortaleza, que sempre lhe parecera inexpugnável, desarma-o. A retirada é sombria e embaraçosa.

Florence cicia um «Não faz mal, meu paladino!». Acrescenta no mesmo tom «Sei agora que me respeitais tanto como me amais», enquanto lhe acaricia o rosto, onde uma névoa de tristeza se instalou. Ficam muito tempo abraçados, envoltos no chilrear matinal da passarada em afazeres primaveris. Aninhado nos braços da sua senhora, Potranc adormece sobre o seu seio.

Nesse momento, o cavalo de Potranc relincha e ambos percebem que é tempo de regressar aos domínios do castelo, onde, desde os servos da gleba ao castelão, todos os esperam inquietos, sem saberem que Potranc já resgatou galhardamente a rainha e a traz de volta sã e salva.

Cavalgando com a sua senhora à garupa, Potranc é a imagem imponente do paladino intrépido e abnegado.


Joaquim Bispo

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Imagem: Henry J. Ford, Lancelot traz Guenevere a Arthur, 1902.

Ilustração de O Livro de Romance, de Andrew Lang, de 1902.

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10/05/2019

Uma noiva para João do Campo



Era uma vez um rapaz que vivia sozinho no campo e raras vezes ia à cidade. Falava apenas com as cabras, os pássaros e as árvores, a não ser na festa dos rebanhos. Chegado à idade de casar, não conhecia ninguém que quisesse viver com ele, e pensava que todas as raparigas preferiam ficar na cidade, em vez de ir viver para o campo, onde, às vezes, faz muito calor e muito frio, e não há luz à noite. Então o João — assim se chamava o rapaz — foi falar com o rei, dizendo:
Meu rei, já tenho vinte anos e ainda sou solteiro. Não sei de ninguém que queira casar comigo. Peço-te que me arranjes uma noiva para viver, dia e noite, lá no campo onde moro.
O rei ficou muito admirado por alguém do seu reino não ter com quem casar e disse:
Daqui a três dias, volta aqui, mas traz a coisa mais bonita que o campo tem, como prenda para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias, voltou ao palácio com um braçado de malmequeres. Ao lado do rei estavam três pretendentes, que ele tinha arranjado, entre as solteiras da cidade. Uma disse:
Não gosto de malmequeres, que me fazem espirrar!
A segunda disse:
Tenho muitos, lá em casa, mais bonitos que esses!
A terceira disse:
Os malmequeres são as minhas flores preferidas. Caso contigo.
No dia seguinte, fez-se uma grande festa e casaram-se os noivos que, por fim, partiram para o campo. Durante uma semana, viveram os dois muito alegres. Corriam, rebolavam nos prados, jogavam às escondidas e riam-se a valer. Depois, o casal começou a ficar triste, porque esperava que o casamento fosse diferente. A rapariga dizia que o João não gostava dela, o que era um pouco verdade. Achava-a muito delicada, muito “menina da cidade”. Começou a desejar que a sua noiva fosse mais robusta e gostasse de jogar à bilharda, à pedrada, e a outros jogos de rapazes do campo. Resolveram pedir ao rei que os descasasse e lhes arranjasse outros noivos. Assim fizeram. Contaram ao rei o que tinha acontecido e ele ficou muito pensativo. Disse ao João:
Volta daqui a três dias, mas traz a coisa mais saborosa que o campo tem, como presente para a tua noiva.
João assim fez. Daí a três dias voltou com uma saca de peras, muito cheirosas e suculentas. Ao pé do rei, estavam três pretendentes. A primeira disse:
As frutas doces fazem-me engordar.
A segunda disse:
Para comer peras, fico em minha casa!
A terceira disse:
As peras são a minha fruta preferida. Caso contigo.
Assim se fez e, depois da festa, os noivos partiram para o campo. Durante uma semana correram, saltaram, riram e brincaram muito. Depois começaram a ficar tristes. A rapariga dizia que o João já não gostava dela, e era verdade. Achava-a demasiado suave e frágil. Parecia-lhe que havia de preferir uma que fosse mais vigorosa e gostasse de jogar às quedas e ao jogo do pau. Contaram tudo ao rei, que os descasou e que, depois de pensar um bocado, disse ao João:
Volta cá daqui a três dias, mas traz a coisa mais divertida que há no campo, como lembrança para a tua noiva.
João voltou no dia combinado, com um par de cajados. A primeira das novas pretendentes disse:
Que jogo tão rústico! Eu só gosto de jogos de tabuleiro.
A segunda disse:
Que bruto; ainda alguém se magoa!
A terceira disse:
O jogo do pau é o meu favorito. Caso contigo.
O rei, então, disse:
Vão para o campo e voltem só daqui a um mês! Se então me disserem que continuam a querer casar-se, assim farei, mas só se gostarem de viver um com o outro.
Os noivos assim fizeram. Durante a primeira semana, não fizeram outra coisa senão jogar ao jogo do pau. Depois jogaram à pedrada, ao braço-de-ferro e ao salto a pés juntos, zonzos de alegria. João estava feliz. Finalmente encontrara alguém com os mesmos gostos. E também gostava do seu corpo, que era musculado e rijo, à maneira do campo. Passaram a dar muitos beijinhos e decidiram dizer ao rei que, agora sim, estavam bem um para o outro e queriam casar. Mas, antes, a noiva confessou:
João, eu, na verdade, não sou uma rapariga; sou o filho do rei. O meu pai, avisado por um mágico, fez que eu sempre me tenha vestido de princesa e ninguém no reino sabe que eu sou, na verdade, um príncipe. Quando te vi, gostei do teu ar campestre, e quando soube das tuas dificuldades com as outras raparigas, percebi que talvez fosse eu a pessoa que te pudesse contentar. E realizar-me contigo. Eu próprio, também me queria casar. Então, pedi ao meu pai para me deixar vir para o campo contigo.
João, apesar de surpreendido, aceitou e beijou apaixonadamente o amor da sua vida. Estavam ambos felizes e isso era o que na verdade interessava.
Quando se completou um mês, voltaram ao palácio e contaram ao rei que estavam decididos a casar. Houve uma grande festa e o rei, em pessoa, casou a princesa com o João, perante todo o povo. Todos se divertiram e um dos mais animados era o rei, que, finalmente, via o seu filho feliz.

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra em posição de destaque — páginas 7 a 10 — a antologia “+ Amor, Respeito, Tolerância, Humanidade” da Editora Jogo de Palavras:


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Imagem: Almada Negreiros, Centauros (tapeçaria), 1959.
Four Seasons Hotel Ritz, Lisboa.
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