Na
sua meia-idade, cultivava uma postura pouco ativa e vagamente
agreste, como a árvore que lhe dava o sobrenome, e estava sempre
disposto a deixar para melhor oportunidade alguma tarefa agendada.
Trabalhar e competir tinham tido o seu tempo. Agora, reformado e
apaziguado dos antigos afãs, Anselmo só queria sossego, algum
silêncio, e desfrutar a boa-vida. Junto a um sofá onde fazia umas
sestas tinha um pequeno quadrinho com a frase: “Que bom é não
fazer nada e depois descansar!”
Nessa
manhã acordou com um auspicioso sinal: o consolo gratificante de uma
ereção. Era uma prova de vida mais relevante do que a habitual
confirmação de conseguir mexer o dedo grande do pé, em cada início
de mais um dia. A sua mente, seduzida pelo contentamento do físico,
deixou-se invadir por um júbilo sereno. O dia que aí vinha só
podia correr bem.
Pouco
depois de verificar que a manhã prenunciava brindá-lo com as
primeiras chuvas de outono, pegou no caderninho com problemas de
sudoku que
o entretinha por horas e instalou-se ao comprido no sofá da salinha,
cabeça no braço do lado da janela, para apanhar o máximo de luz no
papel.
Um
sorriso subtil aflorou-lhe os lábios ao ouvir a chuva a bater na
vidraça. Esticou os pés para a frente e para trás, que estalaram
agradavelmente. Ia ser uma manhã daquelas!
Enquanto
alguns dos seus ex-colegas tentavam continuar a ganhar dinheiro, e
outros arranjavam depressões por se sentirem inúteis, Anselmo
declarava que “Inútil” era o seu nome do meio e convivia bem com
ele. “Quanto menos chatices, melhor!”
No
fim dessa manhã teve a satisfação orgástica de terminar um
problema de 16x16 que já o vinha deliciando havia três dias, como
metodicamente anotara na margem do caderninho. “Ah, dia abençoado!”
Depois
de almoço, como a chuva parara, deu um passeio até ao parque
próximo de sua casa. O tempo estava fresco e agora eram brancas, em
borbotões de algodão, as nuvens que evoluíam no céu estranhamente
luminoso. Durante um pouco, aceitou o jogo das formas para o qual
estas nuvens, autónomas e bem delineadas, sempre convidavam. Uma
pareceu-lhe uma ovelha, tão presente na sua infância no campo;
outra, um torso feminino deitado.
Cães
de apartamento frustrados, na ânsia de encontrarem almas-gémeas
pelo cheiro, arrastavam cinquentonas solitárias pela trela, ao longo
das estreitas e sinuosas alamedas em que já eram evidentes os
despojos que o outono impõe às árvores. “Por baixo da roupa,
todas vão nuas”, pensou.
Junto
ao banco em que se sentara, chamou-lhe a atenção um formigueiro.
Diligentes e sem hesitações, os insetos negros espalhavam no chão
em volta do buraco de entrada todos os haveres que a chuva da manhã
tinha ensopado — sementes, pedaços de talos, folhas e carcaças de
bichinhos vários. Depois de secos, voltariam a recolhê-los.
Deu
uma volta pausada pelo parque. Num recanto onde a autarquia instalara
mesa e cadeiras metálicas, um magote de outros reformados rodeava
quatro compenetrados jogadores de sueca, apreciando provavelmente os
seus requintes de estratégia. “Muito reformado há em Portugal!”
Anselmo não se aproximou; cultivava o individualismo dos
autossuficientes conterrâneos. “Formigueiros, não!”
Saboreando
o sol oblíquo que alegrara a tarde, avançou para uma zona mais
recôndita que confinava com uma área de mata. Ao fundo de uma álea,
avistou a mancha arruivada de uma zorra, confiante, mas alerta, em
incursão em território adverso. “Que bonita!” Há quanto tempo
não estava tão próximo de uma... Seguiu-a de longe, a observar o
seu deambular furtivo e elegante. Aos poucos, embrenhou-se mais e
mais na mata, o entusiasmo da ruptura a fazer-lhe brilhar o olhar.
Era
quase noite quando Anselmo chegou a casa. A mulher já estava
preocupada, já tinha pensado telefonar para os Bombeiros e para a Polícia
a saber se tinha havido algum acidente com o marido. Toda a aflição
desapareceu quando ele se desculpou com uma opção errada:
Nessa
noite dormiu de um sono só. No dia seguinte retomou o ramerrame
quotidiano, com as divagações da consciência, os programas tontos
da televisão, e, sobretudo, o seu sudoku.
Joaquim
Bispo
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Por
seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 7 a
10 — a antologia “Literatura de Outono”
da Editora Jogo de Palavras:
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Imagem: Santiago Rusiñol, Carreiro num parque, 1920–1925.
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