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10/04/2019

A Guerra da Líria



Arrebatamentos de potência e invencibilidade dominavam a mente de Jorge Fontoura naquela manhã. O negócio com os investidores imobiliários chineses tinha sido concluído. Agora, havia que pôr a gorda e saborosa comissão a trabalhar. O seu gestor de conta, que já em outras ocasiões o tinha incitado a apostar em aplicações financeiras agressivas, recebeu-o de imediato:
Tenho justamente o que lhe vai agradar, senhor Fontoura — atacou o gestor. — Já ouviu falar em SEP? São produtos de exposição suprema, na sigla em inglês. Não lhe vou mentir; como o nome sugere, são aplicações de risco máximo, em que o investidor pode perder tudo de um dia para o outro, mas, se correr bem, como quase sempre sucede, o senhor Fontoura pode ver triplicado ou quintuplicado o seu investimento em um ano, ou até em poucos dias. Quem não arrisca não petisca, lá diz o ditado.
Ótimo; mas de que se trata: ações, futuros, o quê?
Uma espécie de ações. Ou antes, unidades de conquista e predação, como eu gosto de lhes chamar. Cada ação é como um soldado que invade o território inimigo, mata quantos encontra e regressa com os despojos. Ou então mantém-se a ocupar o território, a assegurar um fluxo contínuo de riqueza para os acionistas. Para o seu bolso, senhor Fontoura.
Não estou a entender nada. Já percebi que são aplicações agressivas, mas apresentá-las como soldados a invadir território inimigo será uma metáfora exagerada, não?
De modo algum! É mesmo disso que se trata. O que lhe proponho, senhor Fontoura, são ações da Guerra da Líria. Sim, aquela que começou há quinze dias — reforçava o gestor bancário, perante o rosto incrédulo de Fontoura. — É o produto que está a bombar. Literalmente. Aproveite agora, enquanto estão baratas, porque quando o conflito ganhar dimensão, quando, como se espera, os rebeldes adquirirem mísseis terra-ar e derem luta às forças governamentais, de igual para igual, aí, senhor Fontoura, pode ser tarde. Aí, podem já estar ao preço das ações da Guerra da Síria, que ainda é um bom produto, sempre a jorrar dividendos, mas a que já não se pode chegar. Agora, só os grandes bancos e os conglomerados financeiros dos países ricos as podem comprar. Aliás, nem sequer aparecem à venda.
Fontoura parecia em choque. Pressionado pela pausa do gestor, acabou por murmurar:
Guerra?
Sim, claro; tudo o que dá dinheiro é bom para investir…
Refere-se a empresas de armamento, não?
Também; mas a gestão por objetivos obrigou a que se separassem as áreas de aplicação — Guerra do Iraque, Guerra da Síria, Guerra da Ucrânia —, cada uma com o seu fluxo de capitais e o seu retorno, por um lado, e a junção de várias empresas no mesmo esforço de produção. Um mesmo objetivo engloba, certamente, empresas de armamento, mas também empresas de reconstrução, empresas de segurança, até empresas de comunicação social, todas unidas no mesmo esforço de manter a guerra em atividade. O pior que pode acontecer é, sem se esperar, os contendores fazerem as pazes. Essa é a única situação em que os investidores podem perder grande parte ou todo o capital, porque as ações vêm por aí abaixo.
Mas, isso é horrível! — reagia, finalmente, Fontoura, acompanhando as palavras com uma expressão de repugnância. — Então e as cidades destruídas, as mortes de crianças, as populações em fuga a atirarem-se ao Mediterrâneo de qualquer maneira, em barquinhos sem condições, a preferirem o risco de uma morte por afogamento à vida demencial em zona de guerra?
Bem, realmente há algumas associações de intervenção social que chamam Stinky Ethics Products aos SEP, como quem diz Produtos de Ética Pestilenta, mas a pessoa quando entra no mundo financeiro é melhor nem saber em que é aplicado o seu dinheiro. É como os frangos — gostamos do sabor, mas não queremos saber como são criados.
Diga-me uma coisa: isso é legal? É que estou a ver que, se alguma coisa correr mal, posso ser preso e julgado, acusado de me tornar cúmplice de destruições e matanças, de crimes contra a Humanidade, não?
Ó senhor Fontoura, eu nem estou a acreditar no que estou a ouvir — impacientava-se o gestor. — O senhor desculpe, mas já viu algum vencedor ser julgado? Nós estamos do lado dos vencedores, senhor Fontoura! Agora, e por muito tempo. Mais depressa condenam algum negociador de paz do que simples acionistas que apenas querem aplicar honradamente algumas poupanças que conseguiram com o seu trabalho. Não é o senhor que vai lá dar tiros, nem empurrar refugiados para os barcos da morte
Está bem, está bem! — contemporizava Fontoura, derrotado. — Líria… A Líria até parecia um país sossegado. Cheguei a passar por lá, em férias. Tinham as suas manias, como os outros, mas nada fazia prever isto. De repente, aquele obus na escola… E o governo a dizer que tinham sido os rebeldes, e eles a acusar o governo...
Não fui eu que disse, mas com certeza que às vezes é preciso dar um empurrãozinho... Repare, os outros conflitos estiveram um bocado parados e assim ninguém ganha dinheiro. Felizmente, parece que as coisas estão a “melhorar” na Líbia. No Iraque, então…; as ações estão outra vez a subir em flecha. Aliás, se o senhor Fontoura não quiser investir na Guerra da Líria, compre Iraque. Estou convencido de que ainda vão subir muito mais.
Não, não; pode ser Líria. Gostava do país, gostava do povo. É pena irem partir aquilo tudo. Paciência!

Joaquim Bispo
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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 19 a 21 — a 14ª edição (março/abril de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


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Imagem: Delacroix, A barca de Dante, 1822.
Museu do Louvre, Paris.
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