Ah,
a Irlanda! — a ilha que exibe o permanente verde dos seus campos numa faixa da bandeira. Há quem diga que a faixa alaranjada no outro extremo é a
cor do uísque. Ah, os pubs, a festa, a herança celta. E a
faixa branca, a meio, faz-nos lembrar o quê? A pureza perdida das
crianças?
Um
relatório divulgado há poucos anos revela que, entre 1930 e 1990, milhares de crianças
carenciadas, que tinham sido acolhidas por instituições religiosas
irlandesas, foram objeto de violência e abusos sexuais por parte de centenas dos seus cuidadores. O facto
choca, sobretudo, porque os acontecimentos tiveram lugar em abrigos
infantis, reformatórios e orfanatos geridos pela Igreja Católica,
largamente maioritária no país.
Pensamos
sempre que os homens e as mulheres da Igreja estão, tendencialmente,
acima dos “pecados” da carne, só porque o potentado religioso
que os enquadra a isso aspira, ou pelo menos apregoa. Grave erro: as
pessoas que o integram são da mesma carne e pulsam com o mesmo
desatino hormonal que as que festejam o corpo e a vida fora dos
espaços religiosos. Refugiaram-se nas instituições católicas
pelas mais variadas razões, quase nunca para renunciarem ao apelo
das sensações lúbricas. Nem tal lhes é exigido. Mesmo aos padres,
a Igreja proíbe o casamento, não pela subjacente implicação de
mais difícil acesso ao sexo, mas — dizem algumas teorias mais
pragmáticas —, por um mais prosaico programa de evitar o forçoso
sorvedouro de bens, necessários para alimentar e vestir cônjuge e
filhos.
Não
é a Igreja que faz os pedófilos; também nas instituições
governamentais sucede o abuso. O ambiente coletivo nos locais de
acolhimento, onde os mais velhos dispõem de ascendente sobre aqueles
que estão à sua guarda, proporciona a oportunidade adequada às
práticas do pedófilo. A proximidade, o espírito de ajuda, de
proteção, cria, por vezes, aquela intimidade perturbadora a que o
pedófilo não resiste. A evolução é progressiva. Um dia, ajuda a
criança a vestir-se, sente-lhe o morno da pele, a suavidade do
cabelo; outro dia, observa-lhe a cor límpida dos olhos, a forma
germinante dum corpo a meio caminho da floração; recorda o seu
próprio corpo e as emoções perturbadoras da puberdade, às vezes,
como um adulto o iniciou nessas emoções. Aos poucos, sobrevém a
oportunidade de masturbar a criança. Quer desvendar-lhe esse mundo
maravilhoso, que o seu corpo encerra, onde reside um prazer
insuspeito. Ele próprio segue o que entende como o desejo da
criança, que chega a perceber como uma provocação ao gozo mútuo.
Desencadeia e deixa-se enredar, consciente e maliciosamente, numa
crónica teia de relacionamento furtivo, sabendo que é um
comportamento censurável, a esconder, um segredo para dois. Sente na
criança uma aceitação e uma ausência de reprovação que, apenas
em algumas raras vezes, julgou encontrar na aproximação a outros
adultos, mas que sempre redundou em rejeição e dor.
A
criança gosta de quem mostra querer-lhe bem, de quem a defende nas
inúmeras situações de controlo e poder que surgem numa instituição
com muitas crianças desenraizadas. Às vezes, encontra nesse adulto
o amigo que a ouve e lhe afasta as inquietações. Fica perturbada
com as sensações que o adulto ensinou o seu corpo a
proporcionar-lhe, aceita corresponder às carícias como retribuição
pedida e “justamente” merecida. Não domina o jogo das relações
sociais; mesmo quando se sente desconfortável, evita denunciar quem
sempre parece querer-lhe bem. Afinal, os outros adultos estão
emocionalmente muito mais afastados. Tem dificuldade em dizer “não”,
sente que talvez seja culpada de ter ido tão longe. Envergonha-se;
sabe como tais situações, quando reveladas, são motivo de
escárnio. Isola-se e tenta sobreviver até que um dia possa sair da
instituição.
Vamos
a contas: no referido período, passaram pelas 250 instituições em
causa entre 30.000 e 40.000 crianças. No inquérito realizado nos primeiros anos deste século, duas mil, algumas com mais de cinquenta anos, declararam ter sofrido abusos de vários tipos.
“Ah,
o horror! Inaceitável!”, dirão alguns, alarmados com os números.
“Danos colaterais. Inevitáveis.”, dirão outros, argumentando que se fossem só estas duas mil, estaríamos a falar do valor
“confortável” de apenas 2 ou 3 crianças abusadas, por
instituição, por ano.
Há,
realmente, tanta coisa inaceitável que temos de engolir,
infelizmente, desde a miséria nos bairros periféricos das grandes
cidades, à exploração e à guerra no terceiro mundo promovidas
pelas grandes potências, que produzem milhões de refugiados, sem
esquecer essa ignomínia de todos os tempos — o tráfico de
pessoas. Em todas essas situações, há inocentes apanhados nas
redes da animalidade humana e traídos pelo bocejo da indiferença
social e internacional. É tão difícil alertar as pessoas,
embrenhadas nos seus pequenos problemas. E, mesmo quando alguém para
para pensar, o máximo que sente é uma sensação angustiante de
impotência. E vai desforrar-se no frigorífico…
Para
quem foi abusado, a relação com a situação de que foi vítima é
diferente. Não consegue simplesmente declarar para si próprio: “é
passado”. É um subjacente desconforto psicológico permanente.
Pela humilhação, pela coação a que não conseguiu escapar. Muitas
vezes, reconhece que lhe estruturou a personalidade, alterando
profundamente a relação com os outros, provocando-lhe sentimentos
de desconfiança e medo, baixa autoestima, menor resistência aos
posteriores solavancos da vida.
O caso relatado foi tratado com algum empenho: os inquéritos permitiram identificar
12.500 vítimas e indemnizá-las, reconhecendo a gravidade do trauma.
E houve afastamentos de responsáveis e pedidos de desculpas.
Não
se sabe o que desencadeia as tendências pedófilas. Nem sempre
os abusadores foram abusados; nem sempre os abusados se transformam
em abusadores. Há pedófilos violentos, mas, muitas vezes, são
apenas o que a palavra indica: gostam mesmo de crianças. À sua distorcida maneira. Não
aceitam que o que fazem é prejudicial à criança, que representa um
abuso, uma humilhação que a vai acompanhar pela vida inteira. Se
tiverem oportunidade — e é impressionante como são atraídos por
relações, atividades e profissões que os aproximem das crianças —
vão repetir comportamentos pedófilos.
Pelas crianças, que serão
adultos magoados, a sociedade tem o dever de tentar reduzir as
oportunidades de acesso dos pedófilos às crianças, selecionando
criteriosamente quem lida com elas e mantendo uma observação ativa
sobre o funcionamento dessas instituições. Para que as irlandas
deste mundo sejam apontadas apenas pelos bons motivos: as belas
paisagens e o bom uísque.
Joaquim
Bispo
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Imagem: Georges Rouault, Tete o palhaço, Paris, 1930.
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(Esta
crónica foi publicada no número 20 da revista literária virtual
Samizdat, de setembro de 2009.)
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