O dia amanheceu frio, mas luminoso. Nada fazia prever...
Era terça feira, dia de o queijeiro passar a recolher a produção de queijo fresco da semana. O casal de agricultores e o filho, em férias escolares de Natal, esperavam-no no terreiro fronteiro à casa, mas o rapazito não largava o mais recente brinquedo que ele mesmo construíra: uma “espingarda”.
Dois ou três dias antes, na aldeia, assistira maravilhado à habilidade que um amigo aprendera nas aulas de Física do primeiro período: metia quatro ou cinco cabeças de fósforo num tubo metálico, aquecia a extremidade fechada com outro fósforo aceso e, passados instantes, o tubo disparava, como uma espingarda. Que inspirador!
Logo que voltou ao campo, tratou de pedir a caixa de inox do termómetro à mãe, amarrou-a a um pedaço de tábua, que afeiçoou em forma de coronha, e estava a arma pronta. Fez algumas experiências: aumentou a carga explosiva, juntou uns grãos de chumbo à frente, por fim aplicou um bucha de cartão. Como os cartuchos do pai. Os tiros espalhavam um pouco o chumbo, mas os grãos ficavam bem cravados na casca das árvores que usava como alvo. Tencionava experimentar em breve a nova arma na caça aos pássaros.
Dessa vez, o queijeiro não vinha sozinho; trazia o filho, assim disse. Só muitos anos mais tarde o jovem inventor suspeitou que aquele rapazola não era outro senão o diabo. Ou, pelo menos, o seu instrumento.
Apeou-se e dirigiu-se, seguro e sobranceiro, ao moço do campo. Este, orgulhoso, mostrou-lhe logo a “espingarda”. Mas o visitante não parecia trazer tenção de brincar. Era entroncado e devia ter mais dois anos que o jovem atirador, pelo menos. Dirigiu a curiosidade fiscalizadora para a cerca de troncos em que uma bezerra mugia a pedir a mãe.
- Porque é que a bezerra está presa? - indagou, austero.
- “Atão”, é a corte dela! - respondeu o miúdo, incapaz de explicar uma evidência.
Então, o visitante deu início à sequência fatal: com um resmungo indignado, destrancou a cancela, abriu-a e enxotou a vitela para fora. Solta, não se fez rogada e partiu em trote na direção que devia achar que estava a vaca mãe. O jovem dono, incrédulo e atarantado, só emitia frágeis protestos:
- “Atão”, soltaste a bezerra…
Mas o recém-chegado parecia ter um plano marcado. Mudou logo a conversa:
- Isso dispara? - perguntou, interessado.
A atenção que o miúdo esperava para mostrar a sua “espingarda” foi o toque de mágica que o levou a esquecer o problema da vitela que ainda há pouco o desorientava.
- Sim, sim. Queres ver?
O rapazito correu para casa e rapidamente preparou o tubo, desta vez com uma carga de fósforos mais generosa, para fazer boa figura. Saiu com a “espingarda” carregada, fósforos e uma vela, e encaminhou o outro para trás da casa. Aí, acendeu a vela, encostou a coronha ao ombro e apontou a arma para um estreito tronco de mimosa a uns dois ou três metros, com a chama da vela a aquecer a extremidade do tubo.
Ao contrário do que era habitual, o estouro estava a demorar. Por um momento, o miúdo teve um assomo de receio. Nem sabia o que eram premonições. Baixou ligeiramente a cabeça, tapou mesmo o ponto de mira com a aba do chapéu que todos usavam no campo. Por fim, o estampido, uma dor fugaz, o negro.
Acordou com todos à volta dele, em grande alarido e alarme. O miúdo tinha dores, deitava sangue do olho, havia muitos pingos no chão. O tubo também caído indicava o que tinha acontecido: com a força de recuo, soltara-se da fixação à tábua e entrara pelo olho adentro do miúdo imprudente. Os pais estavam desanimados e zangados.
- Fartei-me de dizer para não brincar com aquilo, mas não… Só faz o que quer!
- Já está aleijado o meu filho! - choramingava a mãe.
Logo depois, ensaiaram várias experiências visuais:
- Tapa o olho esquerdo. O que é que eu tenho na mão? É uma colher ou um garfo? E agora, são dois ou três dedos?
Embora com forte perda de visão, conformaram-se por o ferimento não ter sido maior. O olho podia ter sido vazado.
Souberam então da ausência da bezerra. O que foi?; como?; porquê? - queriam saber. O miúdo, só tinha uma desculpa:
- Foi ele!
- Então e tu deixaste? E porque é que não foste chamar-nos? - eram perguntas cujas respostas o miúdo não sabia dar.
O pai estava descoroçoado. Andava a guardar aquela bezerra de boa raça para fazer criação. Começou por chamá-la, esperando que ela mugisse e a localizasse. O queijeiro também estava um pouco constrangido. No fundo, alguma responsabilidade havia do seu filho, nada habituado à vivência de uma quinta agrícola e pecuária.
Com os brados, outros vizinhos se juntaram à procura da vitela. Dividiram o grupo em três equipas e partiram em direções próximas daquela em que ela desaparecera. O miúdo ficou em casa com a mãe a ouvir os chamamentos das buscas, para os lados da zona florestal.
Passadas duas horas, chegou o pai. Vinha alterado. Não disse o que tinha acontecido. Não disse se tinham ou não encontrado a bezerra, nem o destino que lhe tinha sido dado. Certo é que a novilha não voltou à cerca. Pegou na espingarda e saiu, dizendo que ia dar uma voltinha à caça; para desanuviar, certamente. Menos de um quarto de hora depois, ouviram-se dois tiros bem próximos. Ele não costumava encontrar coelhos tão perto de casa, mas parece que desta vez tinha tido sorte.
Não; com a irritação, tinha acertado numa das cadelas. Coitada, entrou a ganir baixinho e a tremer, largando pingos de sangue de vários pontos da pele, e foi tentar encontrar alívio junto ao lume. Mas via-se que estava em sofrimento. O homem que numa só parte da manhã tinha tido um filho aleijado, uma vitela perdida e uma cadela chumbada saía e entrava em casa, visivelmente desnorteado. O peso do irremediável oprimia, uma e outra vez. Por fim, deve ter tomado uma decisão. Pegou novamente na espingarda, dirigiu-se para a porta e chamou a cadela ferida. Todos sabiam o que se seguiria. Mas antes de sair, parou, virou-se para o miúdo e convidou, a voz doce:
- Anda! Queres vir? Anda!
O miúdo abanou a cabeça, receoso do que lhe passou pela cabeça.
Mas, talvez o pai quisesse apenas fazer a pedagogia da dureza da vida, mostrando-lhe como a sua insensatez provocara a morte de uma cadela. Ou tivesse decidido, enfim, pôr-lhe nas mãos uma arma a sério. O mais assustador era o tom suave, amoroso mesmo, que não era muito comum no pai, muito menos nas últimas duas horas.
- Anda!
- Então, ó Domingos, deixa lá o menino! - à mãe também não passara despercebido o perigo. - Não vês que é uma criança? Vai, vai-te lá embora!
O pai saiu. De ouvido atento, o miúdo esperava o estampido a todo o momento. Sabia perfeitamente o que estava a acontecer. Imaginou a cadela a olhar para o dono, dono a quem servira lealmente, de espingarda apontada para ela.
«Podia ser eu» - atreveu-se a pensar. Ser ele a ver os enormes olhos negros da espingarda de dois canos a mirá-lo.
Um tiro, um só tiro se ouviu. O inevitável cumpria-se.
Joaquim Bispo
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Este conto foi selecionado para a 50ª edição (março/abril de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 103 a 106):
https://drive.google.com/file/d/1D4CESBS7a_MnIytdx0aLq8TXT42Bt9c_/view
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Imagem de IA.
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Sempre humano é belo
ResponderEliminarObrigado, Anónima/o!
EliminarFoi mesmo uma visita do diabo!... Zé MC
ResponderEliminarAté pareceu…
EliminarAbraço!
Ele há dias do diabo! Ainda bem que esta é só uma história triste...
ResponderEliminarObrigado, Anónima/o.
EliminarUma história triste que me deixou com 10% de visão no olho direito...
"O diabo disparou uma tranca", assim me disse toda a vida a Minha Querida MÃE, assim me avisando que o diabo faz das suas..
ResponderEliminarContava o Zequiel que ao aprender a ler no livro da 1º classe, assim lia a frase por debaixo do desenho...
Bola...
Pião ...
No local onde estava desenhada um a vitela, lia o Zequiel, ... bezerra, com orelhada de professor, incluída.
Só tu me fazes lembrar destas coisas nos teus excelentes textos.
Continua, abraço do maneldalcains.
Este comentário foi removido pelo autor.
EliminarObrigado, maneldalcains.
EliminarQuando se evocam memórias, vêm associadas algumas designações usadas nessas épocas. Curiosamente, encontraste memórias de “bezerra” e não de “novilha”. Creio que o que se usava menos era “vitela”.
Abraço!
Mais um excelente conto! JG84
ResponderEliminarObrigado, JG84!
EliminarOlá meu amigo
ResponderEliminarVolta e meia apareço por aqui, embora nunca deixe de ler as estórias, sempre excelentes e de farta imaginação. Esta não foi exceção. Que conto triste, ainda esperei que a vitela aparecesse para haver um "happy end"... mas o autor não quis. Paciência, fica para a próxima!
Um grande abraço Joaquim
Muito obrigado, Portugal.
EliminarNão gosto muito de finais felizes – costumam ser mais sensaborões – e desta vez não queria mesmo que fosse – não foi.
Abraço!