10/09/2016

A faixa branca


Ah, a Irlanda! — a ilha que exibe o permanente verde dos seus campos numa faixa da bandeira. Há quem diga que a faixa alaranjada no outro extremo é a cor do uísque. Ah, os pubs, a festa, a herança celta. E a faixa branca, a meio, faz-nos lembrar o quê? A pureza perdida das crianças?
Um relatório divulgado há poucos anos revela que, entre 1930 e 1990, milhares de crianças carenciadas, que tinham sido acolhidas por instituições religiosas irlandesas, foram objeto de violência e abusos sexuais por parte de centenas dos seus cuidadores. O facto choca, sobretudo, porque os acontecimentos tiveram lugar em abrigos infantis, reformatórios e orfanatos geridos pela Igreja Católica, largamente maioritária no país.
Pensamos sempre que os homens e as mulheres da Igreja estão, tendencialmente, acima dos “pecados” da carne, só porque o potentado religioso que os enquadra a isso aspira, ou pelo menos apregoa. Grave erro: as pessoas que o integram são da mesma carne e pulsam com o mesmo desatino hormonal que as que festejam o corpo e a vida fora dos espaços religiosos. Refugiaram-se nas instituições católicas pelas mais variadas razões, quase nunca para renunciarem ao apelo das sensações lúbricas. Nem tal lhes é exigido. Mesmo aos padres, a Igreja proíbe o casamento, não pela subjacente implicação de mais difícil acesso ao sexo, mas — dizem algumas teorias mais pragmáticas —, por um mais prosaico programa de evitar o forçoso sorvedouro de bens, necessários para alimentar e vestir cônjuge e filhos.
Não é a Igreja que faz os pedófilos; também nas instituições governamentais sucede o abuso. O ambiente coletivo nos locais de acolhimento, onde os mais velhos dispõem de ascendente sobre aqueles que estão à sua guarda, proporciona a oportunidade adequada às práticas do pedófilo. A proximidade, o espírito de ajuda, de proteção, cria, por vezes, aquela intimidade perturbadora a que o pedófilo não resiste. A evolução é progressiva. Um dia, ajuda a criança a vestir-se, sente-lhe o morno da pele, a suavidade do cabelo; outro dia, observa-lhe a cor límpida dos olhos, a forma germinante dum corpo a meio caminho da floração; recorda o seu próprio corpo e as emoções perturbadoras da puberdade, às vezes, como um adulto o iniciou nessas emoções. Aos poucos, sobrevém a oportunidade de masturbar a criança. Quer desvendar-lhe esse mundo maravilhoso, que o seu corpo encerra, onde reside um prazer insuspeito. Ele próprio segue o que entende como o desejo da criança, que chega a perceber como uma provocação ao gozo mútuo. Desencadeia e deixa-se enredar, consciente e maliciosamente, numa crónica teia de relacionamento furtivo, sabendo que é um comportamento censurável, a esconder, um segredo para dois. Sente na criança uma aceitação e uma ausência de reprovação que, apenas em algumas raras vezes, julgou encontrar na aproximação a outros adultos, mas que sempre redundou em rejeição e dor.
A criança gosta de quem mostra querer-lhe bem, de quem a defende nas inúmeras situações de controlo e poder que surgem numa instituição com muitas crianças desenraizadas. Às vezes, encontra nesse adulto o amigo que a ouve e lhe afasta as inquietações. Fica perturbada com as sensações que o adulto ensinou o seu corpo a proporcionar-lhe, aceita corresponder às carícias como retribuição pedida e “justamente” merecida. Não domina o jogo das relações sociais; mesmo quando se sente desconfortável, evita denunciar quem sempre parece querer-lhe bem. Afinal, os outros adultos estão emocionalmente muito mais afastados. Tem dificuldade em dizer “não”, sente que talvez seja culpada de ter ido tão longe. Envergonha-se; sabe como tais situações, quando reveladas, são motivo de escárnio. Isola-se e tenta sobreviver até que um dia possa sair da instituição.
Vamos a contas: no referido período, passaram pelas 250 instituições em causa entre 30.000 e 40.000 crianças. No inquérito realizado nos primeiros anos deste século, duas mil, algumas com mais de cinquenta anos, declararam ter sofrido abusos de vários tipos.
Ah, o horror! Inaceitável!”, dirão alguns, alarmados com os números. “Danos colaterais. Inevitáveis.”, dirão outros, argumentando que se fossem só estas duas mil, estaríamos a falar do valor “confortável” de apenas 2 ou 3 crianças abusadas, por instituição, por ano.
Há, realmente, tanta coisa inaceitável que temos de engolir, infelizmente, desde a miséria nos bairros periféricos das grandes cidades, à exploração e à guerra no terceiro mundo promovidas pelas grandes potências, que produzem milhões de refugiados, sem esquecer essa ignomínia de todos os tempos — o tráfico de pessoas. Em todas essas situações, há inocentes apanhados nas redes da animalidade humana e traídos pelo bocejo da indiferença social e internacional. É tão difícil alertar as pessoas, embrenhadas nos seus pequenos problemas. E, mesmo quando alguém para para pensar, o máximo que sente é uma sensação angustiante de impotência. E vai desforrar-se no frigorífico…
Para quem foi abusado, a relação com a situação de que foi vítima é diferente. Não consegue simplesmente declarar para si próprio: “é passado”. É um subjacente desconforto psicológico permanente. Pela humilhação, pela coação a que não conseguiu escapar. Muitas vezes, reconhece que lhe estruturou a personalidade, alterando profundamente a relação com os outros, provocando-lhe sentimentos de desconfiança e medo, baixa autoestima, menor resistência aos posteriores solavancos da vida.
O caso relatado foi tratado com algum empenho: os inquéritos permitiram identificar 12.500 vítimas e indemnizá-las, reconhecendo a gravidade do trauma. E houve afastamentos de responsáveis e pedidos de desculpas.
Não se sabe o que desencadeia as tendências pedófilas. Nem sempre os abusadores foram abusados; nem sempre os abusados se transformam em abusadores. Há pedófilos violentos, mas, muitas vezes, são apenas o que a palavra indica: gostam mesmo de crianças. À sua distorcida maneira. Não aceitam que o que fazem é prejudicial à criança, que representa um abuso, uma humilhação que a vai acompanhar pela vida inteira. Se tiverem oportunidade — e é impressionante como são atraídos por relações, atividades e profissões que os aproximem das crianças — vão repetir comportamentos pedófilos.
Pelas crianças, que serão adultos magoados, a sociedade tem o dever de tentar reduzir as oportunidades de acesso dos pedófilos às crianças, selecionando criteriosamente quem lida com elas e mantendo uma observação ativa sobre o funcionamento dessas instituições. Para que as irlandas deste mundo sejam apontadas apenas pelos bons motivos: as belas paisagens e o bom uísque.

Joaquim Bispo

* * *

Imagem: Georges Rouault, Tete o palhaço, Paris, 1930.

* * *

(Esta crónica foi publicada no número 20 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2009.)

* * *

Outros:

  • O deserto de Atacama na minha cozinha Há tempos, ao regressar de umas pequenas férias, deparei-me com um carreiro de formigas na cozinha e brigadas de exploração em vários outros pontos da casa. A minha mulher tratou de as atacar com vinagre e spray anti-insetos — método de destruição maciça, cujas evocações da guerra química me perturbam —, mas, apesar das inúmeras vítimas, a comunidade esfomeada não desapareceu … Ler Mais
  • És Feliz? Todos sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples — morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos em forma carnal incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E … Ler Mais
  • A primeira refeição do dia A primeira refeição do dia é a mais importante. (Dos sites nutricionistas) Acabei de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita — belos panoramas, excelentes museus —, mas do que não me esqueço é dos pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia passava a noite em sonhos salivados. No hotel em que estive, serviam fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo … Ler Mais
  • Os benefícios do futebol Por mais estranho que pareça, o futebol tem-se revelado muito importante para mim, culturalmente. Há dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com a preocupação de saber se vai aumentar o orçamento para a Defesa e diminuir para a Educação. Em vão: estava a transmitir um jogo de um dos inúmeros torneios oficiais, … Ler Mais
  • A Vingança de Zeus Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade. Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos… Ler Mais

9 comentários:

  1. Muito bom. Um libelo a ter em conta pelas Autoridades de todos os Países. Parabéns JB!

    ResponderEliminar
  2. Obrigado, Ferraz! As pessoas deviam ser o mais importante.

    ResponderEliminar
  3. Obrigado, Fradinho! “Interessante” é das qualificações que mais me agradam.

    ResponderEliminar
  4. Li o artigo que tu tão bem consegues descrever .Parabéns.

    ResponderEliminar
  5. Obrigado pela leitura, André! Contente por achares bem descrito.

    ResponderEliminar
  6. Abraço, Artur! É o nosso mundo.

    ResponderEliminar