O homem caminha por um trilho terroso, imerso na charneca imensa. É verão, o sol vai alto, o calor aperta, mas o homem caminha. Há muito que por desconhecidos caminhos rurais não se aventurava, mas o momento para isso o empurrou. Durante meses sufocou no pequeno apartamento citadino, temendo sair e ser tragado pelo vírus letal. Muitas vezes se lembrou então dos bons ares dos ermos envolventes da sua terra, algures no interior beirão. Agora, sorve o ar em grandes golfadas, sem medo que um bicho invisível o tome por dentro. Em volta, azinheiras isoladas, erva e sargaços secos, algum mato. A agricultura é já residual na zona, o calor da época esturricou as plantas que se aventuraram fora do solo, o deserto vai-se anunciando. Bem por cima, muito alto, um necrófago faz a ronda do seu território, emitindo, a espaços, o grasnado característico, parecendo que diz:
— Carne! Carne!
O confinamento doméstico fora suportável, durante quase dois meses. Ele e a mulher tinham até voltado a ter uma espécie de vida familiar, o que já não acontecia havia uns anos. Cada um andara enfronhado no respetivo emprego, a lutar para trazer para casa complementos e suplementos, arrebanhando, sempre que possível, mais e mais horas extraordinárias. Mas o casamento nunca suscitara apreensões.
Durante o isolamento forçado, devoraram juntos quase todas as séries disponíveis, mergulharam na Internet, revezaram-se nas idas ao supermercado. E devoraram-se outra vez, como nos primeiros tempos.
Foi numa saída ao supermercado que a mulher recebeu uma mensagem dele, que não era para ela. Confessava muita saudade de voltar ao trabalho. E falava em beijos e noutras carnalidades bem mais íntimas.
Lá em cima, o abutre parece comentar os pensamentos do homem:
— Carne! Carne!
O homem caminha e recorda a crispação, o azedume das recriminações, o constrangimento de ter de partilhar o espaço com a enraivecida companheira.
Quando foi possível desconfinar, quis voltar a experimentar a liberdade dos grandes espaços despovoados, como na sua juventude. E idealizou percorrer a pé umas centenas de quilómetros pelo interior, a começar na sua terra. Sozinho, com o básico, liberto de clausuras, aglomerados urbanos e dependências tecnológicas. A expandir os membros e o pensamento, a reconfigurar o seu lugar no mundo, a reencontrar-se.
No momento em que segue com estas deprimentes recordações, tem de cruzar um estreito riacho, quase seco. Aproveita para reencher o cantil, que já vai menos de meio. Ou porque as lembranças desestruturaram a qualidade dos seus movimentos, ou porque a vida citadina lhe embotou a prática campestre, o homem põe mal o pé esquerdo, que escorrega e se encaixa entre calhaus, torcido e esfolado.
O grito que dá é mais pela torção dolorosa, que pela ferida superficial, mas, quando se senta para avaliar os estragos, um fino veio de sangue escorre do tornozelo.
O abutre, de que se tinha esquecido, parece não perder pitada:
— Carne! Carne!
O contratempo é grande, mas o homem não quer adiar o seu pequeno sonho. Percorreu talvez uma dezena de quilómetros; quantos faltarão até à aldeia seguinte? Ata um lenço sobre a ferida, dá uns passos, parece que consegue andar; quando chegar a uma povoação, vai a uma farmácia.
O incómodo no pé e a vulnerabilidade em que se encontra trazem-lhe pensamentos negativos. Lembra-se da angústia que sentiu quando começou a ver morrer pessoas de todas as classes económicas. O número de infetados a disparar todos os dias, por todo o mundo. Filas de corpos a serem enterrados em valas comuns, campos crivados de covas prontas a receber caixões.
Em círculos largos, o abutre parece ter também opinião sobre o assunto:
— Carne! Carne!
Toda a tarde o homem caminha. O sofrimento torna-se penoso, mas não há alternativa. Voltar atrás tornou-se inviável e não se avista vivalma a quem pedir ajuda. Passa a noite enroscado sobre uma folhagem, tentando ignorar as formigas que desfrutam do seu corpo.
Quando a claridade rubra do sol nascente ilumina o caminho, recomeça a andar. O tornozelo está bastante inchado; perdeu a quentura do andamento do dia anterior. O cantil esgota ao princípio da tarde; o calor é sufocante; o homem espera encontrar outro regato ou avistar uma fonte. Chega a noite sem sinal da povoação desejada. Nem de água.
A manhã seguinte revela um homem quase a arrastar-se, cheio de dores e de sede. Tem febre. Na hora de maior calor, abriga-se na sombra esparsa de uma giesta. Delira. Recomeça a arrastar-se, mas a meio da tarde só percorreu mais umas centenas de metros. Por fim, desfalece.
O necrófago, lá em cima, observa. Alguns círculos depois, deixa-se deslizar sem pressas e pousa no caminho, a uma distância segura. Daí a pouco, nos seus passinhos saltitados e desajeitados, aproxima-se do homem. Com olhar conhecedor, vai avaliando a situação e, finalmente, parece concluir:
— Carne!
Joaquim Bispo
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Este conto foi selecionado para a 47ª edição (setembro/outubro de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 65 a 66):
https://drive.google.com/file/d/1KxMwestGrvcl0mvT1irU_tyVkYcGVJbH/view
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Imagem: Mark Rothko, No. 12 (Red and Yellow), 1954.
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