Por aqueles tempos, Labrão subiu ao Monte Scopus e postou-se no monumental miradouro de onde se avistava uma grande fatia da cidade velha de Jerusalém. Daquela posição dominante, gostava de contemplar a que tinha sido a grande capital dos Hebreus e que um dia voltaria a ser. Ali se erguera o templo de Salomão, destruído pelos Babilónios, primeiro, e pelos Romanos, depois.
Quando se voltou, viu três homens parados, a fitá-lo, magníficos no seu esplendor, e logo reconheceu que o Senhor estava entre eles. Quis prostrar-se de rosto no chão, mas eles não o permitiram.
― Deixa-te disso. Estou farto de mesuras hipócritas.
― Vinde a minha casa, para que Vos prepare uma refeição. Comprarei o carneiro mais gordo do talho kosher.
— Agora não tenho tempo. Enquanto te banqueteias com as sementes de todas as ervas, os frutos de todas as árvores, todos os peixes do mar, todas as aves dos céus e todos os animais que se movem na terra, que Eu te dei, há milhares de irmãos teus que tu matas à fome.
Labrão engoliu em seco. Agora também o Senhor vinha com o discurso de ódio dos inimigos de Israel.
— Todos os meus irmãos têm o que comer e Vos estão agradecidos. Os meus inimigos que se danem!
— E o que te leva a pensar que os teus inimigos não são teus irmãos e não têm direito ao banquete que Eu prometi a todos os Homens?
— Vós sempre dissestes que nós éramos o povo escolhido.
— Arrependo-me amargamente dessa declaração. Fiados nela, criastes um sentimento etnocêntrico de exclusão de todos os outros povos. Uma xenofobia repelente. Que vos levou a uma incapacidade de manter boas relações com os vossos vizinhos, ao longo do tempos. Enganei-me terrivelmente. Vou escolher outro povo.
Não pareciam palavras do Senhor. Labrão tentou recordá-lo das antigas promessas.
— Vós prometestes-nos a terra de Canaã, mas quando voltámos da grande diáspora, encontrámo-la ocupada por homens de um povo que não Vos adora. Por isso os expulsámos das suas casas, que nos pertenciam por dádiva Vossa. E os vamos matando de todas as maneiras e empurrando para o deserto, para que pereçam.
— O clamor de sofrimento que Me chega das terras da Palestina e de todas as terras em volta não é mais tolerável. Afinal, transformastes-vos nos mais hediondos seres da Criação. E por isso vou ter de destruir-vos. Vou destruir Israel. O genocídio só a Mim pertence.
Labrão ficou uns momentos calado, os olhos muito abertos. Dominando o pânico, tentou apelar à compaixão do Senhor.
— Mas nós somos justos, Senhor, seguimos a Vossa palavra e os Vossos ditames; nem todos são como dizeis. Se houver um milhão de justos em Israel, destruireis o justo com o culpado?
— Se encontrar em Israel um milhão de justos, perdoarei a nação por causa deles.
— Pode ser que não haja em Israel mais de cem mil justos. Ainda assim destruireis a nação e matareis cem mil justos?
— Não; se encontrar cem mil justos em Israel, não o destruirei.
— Talvez muitos justos estejam temporariamente tomados pelo espírito do mal e não encontreis em Israel mais de dez mil justos — regateava Labrão, até ao limite. — Destruireis Israel por noventa mil justos temporariamente confusos?
— Não. Pouparei Israel se encontrar dez mil justos no país.
Os três homens afastarem-se e entre eles ia o Senhor. Labrão voltou para casa, com o coração apertado. Não tinha a certeza que o Senhor encontrasse dez mil justos em Israel, segundo este novo entendimento Dele.
Na manhã seguinte, Labrão voltou ao miradouro do monte Scopus. Ia tão ou mais angustiado que no dia anterior, porque, bem cedo, sentira convulsões da terra e ruídos tão profundamente graves, como nunca tinha ouvido. Olhou. Do ocidente, lá onde ficava Telavive, levantavam-se grandes rolos de fumo negro irisado. Mas também a noroeste e a sudoeste. Rasgou as vestes e prostrou-se por terra. Agora que Israel estava tão próximo de dominar todos os territórios de Canaã, acontecia uma catástrofe destas. Maldição!
Soube depois que ao alvorecer tinha chovido enxofre e fogo sobre as principais cidades de Israel, onde se localizavam as estruturas militares e administrativas do país, que ficaram reduzidas a cinzas brilhantes e fumegantes, sem que se conseguisse determinar a origem do bombardeamento.
Os sobreviventes dos colonatos e das pequenas localidades que não tinham sido atingidas, pareciam ter caído num estupor paralisante e mostravam-se incapazes de reagir à terrível reação dos palestinianos, que, armados de paus e pedras, se vingavam de dezenas de anos de espoliações, agressões e humilhações, chacinando quantos judeus encontravam. Toda a Cisjordânia foi limpa de colonatos, ainda nesse dia. Os Estados Unidos apressaram-se a enviar tropas paraquedistas, tentando estancar a matança e manter a presença americana na sua bem-amada colónia.
A seguir, apoiados em declarações antigas do Paquistão, atribuíram o ataque a esse país islâmico, possuidor de armas nucleares, e, verberando o seu “espírito antissemita”, bombardearam-no intensa e extensivamente, fazendo-o recuar, tecnologicamente à Idade da Pedra.
A comunidade internacional declarou, pouco depois, a criação de dois estados desmilitarizados no espaço global da Palestina e de Israel, pelas fronteiras definidas pela ONU em 1948, mas, desta vez, asseguradas por forças de manutenção da paz, e empenhou-se a reconstruir Gaza, terraplanada por Israel, e Israel, pulverizado sabe-se lá por quem.
Mas o espaço do antigo estado de Israel não era apelativo para os judeus do mundo inteiro, como fora antes. E os vários milhões de palestinianos, que tinham passado dezenas de anos em campos de refugiados nos países adjacentes, voltavam à Palestina à procura da casa dos seus antepassados e eram agora uma mole ameaçadora para qualquer veleidade judaica de reocupação.
Em sonhos, o Senhor apareceu de novo a Labrão. Este prostrou-se de imediato, de rosto no chão e implorou:
— Senhor Deus, Criador do Universo, tende compaixão do vosso servo que muito Vos ama.
— Não sejas palerma. Tens de saber distinguir uma mentira caridosa, de uma declaração de probabilidade razoável. Abraão e os teus outros antepassados aceitavam essa minha declaração, mas eram pastores e criadores de gado. Agora tu… Tu que já tens consciência do tamanho do Universo, diz-me: achas possível que um hipotético “Senhor Deus do Universo” prestasse atenção a um grupúsculo étnico, de uma espécie irrelevante, e o convencesse que é o suprassumo dos viventes?
— Mas, Senhor, se não sois quem nos dissestes, quem sois Vós?
— Aos teus antepassados rústicos disse que fora Eu o Criador do Universo — era o que estavam preparados para ouvir; a ti digo que sou um visitante vindo do futuro. É a explicação para que estás preparado.
Labrão abriu muito os olhos.
— Nunca tinha pensado nessa hipótese…
— A minha natureza é complexa. Talvez outros homens venham a estar preparados para outra explicação…
Labrão acordou, alagado em suor. O quarto estava vazio, mas sentiu um cheiro a metal aquecido. Talvez fosse apenas mais um miasma da nuvem nauseabunda que cobria os céus de Israel. Levantou-se, fez as abluções rituais e depois prostrou-se em oração, tentando reprimir uma animosidade por este Deus que não reconhecia. Em vão.
«Visitante do futuro? Aldrabão! Um dia, o verdadeiro Deus voltará. Que pena os serviços de espionagem não terem detetado a entrada no país deste terrorista. Deviam tê-lo bombardeado antes que atacasse Israel!»
Joaquim Bispo
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Imagem: O Senhor aparece a Abraão perto de Sodoma (ícone). Título, autor, data e localização da obra não encontrados.
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