Uma
deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de
certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante do que
um passeio por muitos dos jardins da cidade.
Estes
cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa
por uma fase de alvoroço, com a abertura de novas covas e montões de
coroas de flores em cima de montes de terra, que progride, durante
umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão.
Aos poucos, o campo de linhas revoltas vai evoluindo para um prado de
aspeto arranjado, pincelado de lajes de mármore e floreiras
multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e
mantém um aspeto muito estável durante cinco anos, com os mármores
alinhados, entremeados por um ou outro simples monte de terra dos
defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com
uma ou outra placa de mármore com inscrições prosaicas, ou menos
esperadas, como “Grand-maman — Je ne t’oublierais jamais”, a
refletir o fado da emigração.
Quase
sempre, esses talhões de meio hectare de área estão circunscritos
por um muro quadrilátero, de gavetas de cimento embutidas, nas
quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo
apenas os ossos lavados e desinfetados dos corpos que tenham atingido
o estado necessário ao levantamento.
Estar
sozinho num desses talhões, a observar a extensão florida agitada
pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de
pequenas floreiras metálicas, faz qualquer um sentir-se num universo
distinto do nosso. São várzeas artificiais, prados de flores
naturais de caules cortados à medida, e de flores de plástico,
inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores
que nem a Natureza produz.
Depois,
passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser
escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem
desoladora semeada de crateras retangulares por entre as campas
intactas, cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição
total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a
“vida” florida — se de vida podemos falar —, para mais um
ciclo de enterramentos.
Aos
domingos, na Ajuda, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a
honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde
está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo
da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano
que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta
aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de
flores sobre panos bordados brancos.
Os
outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto maior o
inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As
floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico
que “duram mais tempo”. Não muito, que também estas são, às vezes, levadas pelo vento ou tão só carcomidas por chuvas e sol. No fim do verão, a maioria das floreiras
está vazia, ou tem uns pedaços de flores ressequidas, quando muito.
Perto do Dia de Finados — 2 de novembro —, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a “obrigação” e o ritual. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época. Veem-se pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas.
Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, percebe-se que há quem ande perdido e é possível ouvir pelas alamedas discussões em surdina sobre a localização das gavetas que procuram. Quem não visita esquece e há quem deixe passar muito tempo. Até por defesa.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: “O tempo passa — A saudade aumenta”. Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor dos primeiros dias; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.
Joaquim
Bispo
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(Esta
crónica foi publicada no número 11 da revista literária virtual
Samizdat, de dezembro de 2008.)
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