O
dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao
emprego. Isto numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à
consulta do psicanalista a Lisboa.
Parti
de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já estava a chegar
ao aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado. Perto
das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a
pedir desculpa pelo atraso. Às sete e vinte, já desvairado,
encostei o carro como pude, a meio da 5 de Outubro, e apressei o
passo para o consultório, que é junto ao Saldanha.
A
consulta foi pouco produtiva. Não consegui soltar-me e verbalizar
todas as queixas que tenho da vida, desde que a Noémia me deixou.
Quando ia para pagar, dei-me conta que tinha deixado a carteira no
compartimento da porta do carro, onde a meti ao pagar a portagem.
Fiquei a dever a consulta.
Voltei
ao carro, mas não o encontrei. No café em frente, confirmaram-me
que tinha sido rebocado. Na pressa, tinha-o posto num espaço
reservado a deficientes.
De
repente, vi-me numa situação muito desconfortável: só tinha um
porta-moedas com 4 euros e 40, eram nove da noite, estava a duzentos
quilómetros de casa e não tinha onde dormir. Enquanto pensava o que
havia de fazer, comi uma sandes de queijo com uma imperial e um café.
Fiquei com 1 euro e 70.
Lembrei-me
de um amigo da tropa, o Marques, que, quando me encontra, insiste
para o ir visitar a Campo de Ourique. Liguei-lhe, mas, assim que
começou a chamar, acabou-se a bateria do telemóvel. Numa lista
telefónica, por exclusão de partes, encontrei a morada. Meti-me no
Metro até ao Rato e depois fui a pé. Quando dei com a rua Tomás da
Anunciação, eram já quase onze da noite. Toquei, toquei à
campainha, mas ninguém respondeu. Se calhar tinham saído de
fim-de-semana.
Voltei
para trás, meio acabrunhado. Sem saber para onde ir, segui a linha
do elétrico por S. Bento até ao Chiado. Já não cirandava pela
cidade desde os tempos de tropa, há uns vinte e tal anos. Aqui e
ali, vi pessoas a dormir enroladas em cobertores e metidas em caixas
de cartão. Como se teriam deixado chegar àquilo? Um despedimento inesperado? Um endividamento incontrolável? Uma desistência abismal? Um indivíduo de
barba hirsuta veio pedir-me «uma ajuda». Apeteceu-me dizer-lhe
«hoje não pode ser», como habitualmente, mas acabei por lhe dar
vinte e cinco cêntimos. Pela primeira vez, sentia uma identificação
estranha com aquelas pessoas. Deambulei pela Baixa a ver as
iluminações de Natal. Era minha intenção continuar a andar até
que amanhecesse mas, ao contrário do que esperava, comecei a
sentir-me cansado. Subi a Almirante Reis e toquei em três pensões.
Uma estava cheia e as outras duas não me aceitaram sem identificação
ou sem pagar adiantado.
Pela
primeira vez, também não tinha onde dormir. Para piorar as coisas,
começou a chuviscar. Estive um bocado debaixo do toldo de uma montra
de móveis. Depois, encostado às paredes, meti por uma transversal
da Morais Soares e entrei na porta de um prédio que estava
encostada.
Fiquei
parado na penumbra, atento a todos os ruídos. Do alto das escadas
ouvia-se, de vez em quando, um ruído indefinido. Cheirava a mofo.
Sentei-me nos degraus de madeira e aos poucos a fadiga invadiu-me.
Estive ali muito tempo de pernas encolhidas, dobrado sobre os
joelhos, com o rosto apoiado nas mãos abertas, enquanto o frio se
espalhava por todo o corpo. Apesar de estar cheio de sono, só
conseguia adormecer por curtos períodos, devido ao frio e à
posição. Apetecia esticar-me. A meio da noite, reclinei-me de lado
nos degraus, mas as arestas magoavam. Fui mudando amiúde de posição.
Tiritava. Os pés estavam gelados. Ansiava pela manhã.
De
repente, meio estremunhado, ouvi ruídos de passos a descer as
escadas. Em poucos segundos, estava confrontado com um cão grande a
ladrar furiosamente e a fazer avanços para me morder. O que me valeu
foi o dono e a trela com que o segurava. Envergonhado, saí.
Tinha
parado de chover. Subi a rua até ao alto da Penha de França. O
casario acinzentado começava a ganhar cor. Do lado de Xabregas, o
céu tingia-se de fortes tons de vermelho. Em breve, a enorme bola
solar fez a sua entrada triunfal. Há quanto tempo não via um nascer
de Sol! Fiquei um bocado a saborear essa extraordinária visão e a
sentir o corpo a deleitar-se com o pouco calor que transmitia.
Depois,
comecei a encaminhar-me para o parque de carros rebocados de Sete
Rios. Na Duque de Ávila, encontrei um café aberto. Perguntei quanto
custava um galão.
― Oitenta!
― E
se for setenta? ― murmurei eu, de porta-moedas aberto.
O
homem mirou-me e começou a preparar o galão. Deve ter reparado na
barba por fazer, nos olhos remelados, na roupa amarrotada e
empoeirada de roçar nas escadas. Fui à casa de banho, aliviei a
bexiga, lavei os olhos e passei as mãos molhadas pelo cabelo. Daí a
pouco, com o calor do galão a inundar-me o estômago, sentia-me
pronto para outra. Salvo seja! Espero que nunca mais volte a não ter
onde dormir. Nem imagino pelo que passa quem vive anos sem abrigo.
Ao
resgatar o carro, fiquei a saber que passei uma noite horrível
sem necessidade: afinal, o parque de rebocados só fecha à
meia-noite. Nesse início de 2009, apeteceu-me gritar uns palavrões.
Joaquim
Bispo
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(Este
conto foi publicado no número 14 da revista literária virtual
Samizdat, de março de 2009.)
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