O aniversário de nascimento é a data
mais marcante para quase todas as pessoas.
Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o
esquecem. Comemorar aquele momento especial em
que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que
muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos.
Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques
não é diferente:
— Hoje o nosso Martim vai
apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez —
anuncia o baboso pai da criança.
Reuniu à volta da mesa de
almoço, em sua casa, avós, tios e primos do bebé. E mais meia
dúzia de outros familiares. A ocasião não é para menos.
— Nasceu exatamente à uma
da tarde, de 20 de fevereiro — relembra. — Quando for uma da
tarde, completará um aninho e vamos todos cantar-lhe os parabéns!
— Isso, agora… — intervém o tio Francisco, que é um autodidata vaidoso e muito metediço. — Até podemos cantar-lhe os parabéns, mas esse miúdo tão giro não
completa um ano à uma da tarde.
— Como assim, tio? —
reclama o papá frustrado. — Eu estava lá e assisti ao parto!
Assim que saiu cá para fora, olhei para o relógio: uma da tarde em
ponto.
— Eu não digo o contrário,
mas não passa um ano à uma. Só lá perto das sete da tarde. Aliás,
curiosamente, é por isso que este mês tem 29 dias.
Todos os familiares já
conhecem bem estas tiradas do tio e sabem que não há nada a fazer:
de uma maneira ou de outra, ele vai desbobinar o relatório completo:
— Estamos habituados a que,
de 4 em 4 anos, fevereiro tenha 29 dias, em vez dos habituais 28 —
continua ele, enchendo o peito. — É o resultado das repetidas
tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano de
calendário à duração da translação da Terra. O que não é nada
fácil, porque, em vez de um número inteiro de dias, a viagem à
volta do Sol deste esferoide maravilhoso, em que vivemos, dura
365,2422 dias. Nem 365, nem 366; um pouco mais de 365. Ora, o que é
que isto implica? Que, no caso do nosso Martim, o aninho dele
completa-se só pelas… 18 horas e quase 49 minutos.
Neste ponto, o pai da criança
fecha os olhos e baixa e abana a cabeça, desanimado. Os mais novos,
meio surpreendidos, meio divertidos, prestam alguma atenção à
explicação do tio esquisito, que prossegue:
— Alguns povos da
Antiguidade, como os Mesopotâmicos, usavam 12 meses lunares de 29 ou
30 dias, o que perfazia só 354 dias, mas, quando havia necessidade,
adicionavam um mês extra. Os Egípcios e os Persas já usavam 12
meses de 30 dias, a que acrescentavam 5 dias, no fim do ano.
— Por amor de Deus, tio;
contas agora não! — insurge-se a mãe da criança.
— Isto é muito
interessante. São só dois minutos — desculpa-se o divulgador
extemporâneo de ciência e história. — O calendário juliano —
de Júlio César, do século I a.C. —, que vigorou no Ocidente por mais
de 15 séculos, estipulava um ano de 365 dias, exceto que, a cada 4
anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de
março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de março. A cada 4 anos,
havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de março. É
daí que vem a designação de “bissexto”, e não por 366 dias
ter dois algarismos 6. E de calendas derivou calendário.
— Então, era igual ao nosso!
— atreve-se um dos miúdos.
— Quase! — esmiúça o
“tio-enciclopédia”, puxando de uma esferográfica e de um
guardanapo de papel. — O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano
médio deste calendário — (365 + 365 + 365 + 366) / 4 = 365,25 dias —
era ligeiramente maior do que o da duração real: 365,2422 dias. A
diferença era pouca, mas, com o passar dos séculos, o desfasamento
foi aumentando tanto que, no século XVI, o equinócio da primavera
acontecia vários dias antes do dia 21 de março e tornou-se premente
adotar outro calendário. Em 1582, sob o Papa Gregório XIII,
adotou-se o calendário atual — o gregoriano, derivado do nome do
Papa. Para que o dia 21 de março do calendário voltasse a coincidir com o equinócio
da primavera, houve que saltar 10 dias. O ajuste
foi feito no outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de outubro e
quando acordaram no dia seguinte era o dia 15.
— A sério? —
entusiasma-se outro. — Que cena!
— Sim. Foram 10 dias que
nunca existiram no calendário de Portugal, Espanha, Itália e
Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este
calendário.
— Mas saltar 10 dias
resolveu o problema, de vez? — capitula o pai do aniversariante.
— Não, mas minorou-o
bastante. Repara no que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do
ano:
. O ano tem 365 dias;
. Se o ano for divisível por
4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de
fevereiro. Por exemplo, este ano — 2016 — é bissexto;
. Se o ano for fim de século
e divisível por 400 — por exemplo 2000 —, o ano é bissexto. Caso contrário,
mantém os 365 dias. É o caso dos anos de 1700, 1800, 1900, 2100, que são divisíveis por 4,
mas não por 400.
Rematando o raciocínio, o
tio Francisco ataca de novo o guardanapo:
— Assim, o tamanho médio do
ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365)
+ 366] / 400 = 365,2425. Mesmo com esta “ginástica” toda, ainda
há que saltar um dia a cada 3333,(3) anos! Que difícil de encaixar
esta nossa Terra! Não acham? — conclui.
Na mesa do almoço da festa do
primeiro ano do bebé Martim, reina um silêncio mais ou menos
constrangido. Quebra-o a avó Celeste:
— Então, sendo assim, não
custa nada adiar o bolo e os parabéns para mais logo — comenta,
decidida. — Cantar os parabéns antes é que não! Dá azar.
Furtivamente, o anfitrião
aproxima-se da esposa e sussurra-lhe:
— Faz-me um favor, pela tua
saúde: não convides mais o teu tio Francisco para as nossas festas!
Mas ela olha-o com um sorriso
e dá de ombros, como quem diz: «Deixa lá! É um chato, mas é
nosso.»
Joaquim Bispo
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(Este conteúdo foi publicado, sob
a forma de ensaio, no número 14 da revista literária virtual
Samizdat, de março de 2009, com o título “O ano bissexto”.)
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