10/02/2016

Perdidos na translação

O aniversário de nascimento é a data mais marcante para quase todas as pessoas. Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o esquecem. Comemorar aquele momento especial em que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos. Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques não é diferente: — Hoje o nosso Martim vai apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez — anuncia o baboso pai da criança. Reuniu à volta da mesa de almoço, em sua casa, avós,...

10/01/2016

Sem abrigo

O dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao emprego. Isto numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à consulta do psicanalista a Lisboa. Parti de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já estava a chegar ao aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado. Perto das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a pedir desculpa pelo atraso. Às sete e vinte, já desvairado, encostei o carro como pude, a meio da 5 de Outubro, e apressei o passo para o consultório, que é junto ao Saldanha. A consulta foi pouco produtiva. Não...

10/12/2015

Colo

Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros ―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava, além de aproveitar para espreitar umas montras...

10/11/2015

Esta Cidade não é para Frutos Secos

Paulina, a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua ambição era ficar ali pela terra e um dia gerar um grande castanheiro. ― Maior e mais majestoso que o papá ― chilreavam de entusiasmo as irmãs. Antes de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da curva do caminho. Um dia, de manhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se mantinham no aconchego do ouriço familiar, e partiu em direção a sul. A meio da manhã, encontrou outra castanha como ela, mas mais anafada. ― Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou Paulina. ― Sou uma Castanha da Índia...

10/10/2015

Crescer

Quando o telemóvel emitiu o trinado de nova mensagem, Susana saltou para o agarrar e sentiu o coração acelerar-se. Se este não a enganava, o toque festivo prenunciava que iria ser a rapariga mais feliz da turma. Nessa manhã, regressara à escola para iniciar o 8º ano. Longe de o sentir como uma maçada, a perspetiva de rever as amigas fizera-a pular da cama cheia de entusiasmo. Não foi preciso a mãe insistir para se levantar. Tomou duche de um jato e vestiu-se a correr. Irritou-se por não encontrar um soutien completamente confortável. Estavam todos a ficar pequenos. Escolheu um vestido rosa...

10/09/2015

Um som no escuro

Naquele setembro de 75, dois jovens portugueses, amigos e colegas de profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado pouco antes para espraiarem por paragens além-fronteiras o otimismo que a revolução, em curso na sua pátria, lhes transmitia. Levavam uma tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso. À noite, em Vitória, – já país basco –, a notícia do dia era a morte de mais um «carabinero». Pressentindo o fim iminente de Franco, os separatistas da ETA intensificavam o número de atentados. Os viajantes petiscaram...

10/08/2015

Saudades da Minha Terra

Sou camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa, rodeado de carros e camiões, mas sozinho, a ver desfilar cidades para lá das estradas, e serras para lá das cidades, a trabalhar demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão bela e tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e, depois, ia passar o mês inteiro de férias a visitá-la, a conhecê-la, a amá-la. Assim que cheguei, fechei-me em casa, cerrei...