10/06/2024

O acaso

 


Marco não admitia que tinha um problema de jogo. É certo que sempre estivera envolvido em ambiências de fortuna e azar, quer na adolescência, em que começara por jogar King a meio centavo o ponto, depois “abafa” e “lerpa” na tropa, com incursões cada vez mais frequentes na zona de máquinas do Casino do Estoril, até às posteriores dependências da roleta e aos seus mais recentes empolgamentos com o póquer on line.

Na tropa, apostava o vencimento de oficial miliciano. Quando as sucessivas noites de jogatina corriam mal e o vencimento se ia, iam-se também as saídas do quartel. Felizmente, havia a messe e o preço das refeições era descontado no fim do mês. E não parava de jogar: ficava a dever, apoiado na garantia do vencimento seguinte.

A fase da roleta foi das piores, em termos de perdas. Muitas noites saiu do casino de bolsos vazios, mas convencido que estivera perto de ganhar. E na noite seguinte estava de volta. A adrenalina de ver a bolinha a saltar e a perspetiva de ganho só era equivalente à da perspetiva de uma conquista galante. Pediu muito dinheiro emprestado.

Então, era o póquer. Sentia que visualizava com rapidez as várias variantes possíveis, e era agressivo nas apostas, mas continuava a perder “algum” dinheiro.

Tens um problema de jogo! — disse-lhe Jacinto, um amigo que encontrou por acaso e se apercebeu de alguns aspetos menos simpáticos desta maneira de estar.

Depois de meia hora de disputa — ele a negar, com argumentos de “nada de mais”, o amigo a insistir, com argumentos de “sê sincero contigo próprio” —, aceitou acompanhá-lo a uma sessão dos Jogadores Anónimos:

É só porque já não te posso ouvir…

Era mais ou menos o que esperava: uma sala com cadeiras a formar um círculo; um psicólogo a tentar que as pessoas se abrissem e assumissem o seu problema de jogo. A primeira experiência não foi especialmente interessante, mas acabou por voltar várias outras vezes para acompanhar o amigo, que, por sinal, frequentava o grupo como manutenção do combate à dependência do jogo on line.

Aos poucos, foi ouvindo histórias extraordinárias de vício de jogo — perdas gigantescas numa só noite, endividamentos extremos, roubos a familiares para jogo, autoestimas destruídas, tentativas de suicídio:

«Atolada em dívidas e incapaz de parar de jogar, tentei suicidar-me à frente dos meus quatro filhos.» «Os problemas com o jogo levaram-me a desviar milhares de euros do local de trabalho.» «Vivi durante quatro anos praticamente sem comer nem dormir. Quase enlouqueci.» «No espaço de poucos meses, acabei com os plafonds de três cartões de crédito e o ordenado de economista deixou de chegar para pagar as dívidas ao banco.» «Acumulei seis créditos em bancos diferentes e uma dívida de mais de sessenta mil euros.» «Cheguei a roubar dinheiro do mealheiro dos meus filhos.» «Em desespero, vendi um aquecedor a óleo na feira, por cinco euros.» «Todas as noites acabavam da mesma maneira: sem dinheiro no bolso e a braços com crises de choro, ansiedade e insónias.» «Em 2009, gastei o ordenado de dois mil euros em apenas meia hora.» «Cheguei a estar doze horas seguidas à frente de uma slot machine.» «Cheguei a remexer em gavetas em casa à procura de moedas, para poder comprar uma lata de atum para matar a fome.»

Com exceção de algumas diferenças de escala, havia semelhanças com a sua história. Quase todos falavam de um ganho importante, no início, referiam o gosto pelo ganho fácil, pelo poder, as sensações fortes, a novidade, culpavam a vontade de ganhar mais, quando ganhavam, e a premência de tentar recuperar, quando perdiam.

Para além dos casos pessoais, foi apanhando uma ou outra máxima, difíceis de aceitar, a princípio, verdades sábias, depois: “A dependência do jogo é uma doença que não tem cura”; “Um jogador compulsivo nunca deixa de o ser”.

Só no terceiro mês percebeu que tinha de “abrir o jogo” e parar de jogar. Foi quase insuportável a sensação seguinte de tédio, de vazio, de carência de qualquer coisa. Felizmente, o amigo Jacinto, indivíduo curioso, sempre a tentar perceber melhor alguns fenómenos, deu-lhe apoio e foi desmistificando alguns dos mitos que perdem o jogador.

— “Não jogue nunca!”, dizia Dale Carnegie num livro que li há muitos anos. Porquê? Porque todos os sistemas de jogo estão construídos para vencerem o jogador e lhe ficarem com o dinheiro. É de uma grande ingenuidade ele pensar que pode derrotar uma máquina que está programada para o vencer. Ela até pode dar-lhe prémios chorudos, que o deslumbram com esse ganho esporádico. Ao fim de muitas jogadas, a máquina ganha sempre. A máquina ou qualquer sistema. Porque o número de possibilidades de ganho do jogador é sempre inferior ao número de possibilidades de ganho do organizador do jogo. Seja roleta, slot machine, lotaria, raspadinha, concurso televisivo. O casino e os outros organizadores de jogos são os únicos que estão do lado certo do jogo. Como organizadores, dispõem de vantagens em relação aos jogadores: na roleta do casino, há 37 números — do 0 ao 36, como sabes; 18 são vermelhos e 18 são pretos; se jogares nos vermelhos e sair vermelho ganhas o dobro, se sair preto, perdes. Quando sai 0, ganha o casino. Portanto, apostas em 18 números, mas o Casino dispõe de 19 números. A longo prazo ganha sempre. Sempre!

Sim, claro, mas é possível derrotar o casino — ripostou Marco, certo do que dizia. — É preciso é contar bem as saídas de pretos e vermelhos e apostar no que tenha saído menos vezes. O que tenha saído menos vezes tem maior probabilidade de sair, claro!

Então, Jacinto disse o que ele não esperava ouvir e que mudou radicalmente a sua conceção dos jogos aleatórios:

A bola não tem memória das jogadas anteriores. A probabilidade de sair vermelho é a mesma de sair preto. Em todas as circunstâncias. Mesmo que tenham saído 500 vermelhos contra 20 pretos, a probabilidade de sair preto na jogada seguinte é igual à de sair vermelho.

Mas, como assim? — revoltou-se Marco. — Sei bem que a média em lançamentos aleatórios de duas possibilidades é de 50% de resultados para cada uma… Como é isto possível, se a cor que saiu menos vezes não passar a sair mais vezes?

É. Repara!

Puxando do telemóvel para fazer os cálculos, mostrou-lhe, então, com números, como a média se aproxima de 50–50%, sim, mas, geralmente, só à medida que o número de lançamentos sobe para os milhares.

No exemplo anterior dos 500–20, a média era de mais de 96% vermelhos contra menos de 4% pretos. Se continuarmos a fazer lançamentos e obtivermos, por exemplo, totais de 5000 vermelhos contra 4000 pretos, a média passou para cerca de 55% vermelhos contra cerca de 44% pretos, que é muito mais próxima de 50–50, sim, apesar de os vermelhos terem continuado a sair mais — 4500 contra 3980 pretos. Os tais pretos que “obrigatoriamente” teriam de sair mais vezes...

Manteve-se em silêncio, mais para não lhe dar a vitória, apesar da clareza da explicação. Engoliu em seco despercebidamente. Não estava a ser fácil dar de barato o que lhe pareciam verdades inquestionáveis.

Eu era um maluquinho das simulações — continuou Jacinto. — Com programas informáticos simples que eu próprio elaborava, fiz todo o tipo de experiências. Posso garantir-te: não se consegue ganhar à roleta. O zero a favor do casino é a vantagem que lhe garante a vitória final contra qualquer jogador, se ele não parar de jogar.

Desculpa lá… — tentou Marco levantar-se —, jogando o dobro de cada vez que perco, acabo por recuperar…

Essa é outra ilusão. Nem os milionários têm dinheiro para isso. Já foram registadas séries de 22 resultados da mesma cor, seguidos — esmagou Jacinto, voltando à calculadora do telemóvel. — Isso significa que um jogador que estivesse a fazer apostas de um euro com essa estratégia, se perdesse um euro e continuasse a apostar o dobro, ao fim de 22 jogadas teria já perdido 4.194.303 euros e teria de ainda pôr 4.194.304 euros na mesa da roleta para conseguir recuperar as perdas na 23ª aposta. E ganhar um euro... Apostar mais de oito milhões para ganhar um euro? Há investimentos mais acessíveis e mais seguros! E úteis.

Mas, então... — estava sem palavras. — Nem “à moedinha”, para o café?

É isso mesmo, Marco! “Não jogues nunca!” O jogo só é inofensivo e prazeroso quando não se tem em vista um ganho. Claro que eu jogo duas apostas de euromilhões por semana, não mais. O suficiente para uma vivência social normal. E podemos jogar à moedinha. Três, para as que vierem — vaticinou ele, estendendo a mão fechada, que podia trazer 1, 2, 3 moedas, ou nenhuma.

Ok, já percebi. Eu pago-te o café!

Entraram num café, com Marco numa espécie de estado de graça. Sentia que a sua vida de jogo — já não tinha medo das palavras — iria mudar radicalmente. Passaria a ser muito racional sempre que fosse confrontado com solicitações de ganhos miríficos, em acasos de jogo.

Acho que agora vejo as coisas duma maneira muito mais clara. Nem sei como te agradecer!

Para que servem os amigos?

Uma semana depois, voltaram a tomar café.

Marco estava pouco falador, cabisbaixo mesmo. Mexeu o café, pensativo, muito mais do que o necessário. Por fim, falou.

Jacinto, há alguns anos que não nos víamos e, em pouco tempo, temos convivido bastante. Só por isso é que me atrevo a pedir-te um favor — começou ele de rosto muito constrangido. — Só o faço porque as coisas não vão nada bem. Espero que não leves a mal.

Que se passa? — estranhou Jacinto. — Se eu puder ajudar… Não me esqueço dos amigos de longa data.

Marco fez um compasso de espera, cabeça baixa, como se não soubesse bem o que dizer.

Ainda são sequelas do jogo. Na altura, pedi bastante dinheiro ao banco e não consigo dar conta dos compromissos. Há dias penhoraram-me o ordenado. Dois terços já não me chegam às mãos. Fico só com um terço para as despesas todas. Preciso que me emprestes dois mil euros.

Com o desenrolar da conversa, percebia-se o que vinha aí, mas o número…

Eh, pá, dois mil euros… Estás mesmo a precisar de tanto? É que isso é mais do que eu recebo.

A sério? Estás a ganhar pouco! Ó Jacinto, eu não te pedia se não estivesse a precisar. Eu depois pago-te quando as coisas melhorarem.

Ainda tentou descartar a hipótese que entretanto o assaltara:

Por acaso não voltaste a jogar, não?

Ó pá, agora magoaste-me. Então eu ia pedir-te dinheiro para jogar?

Jacinto aceitou fazer a transferência, mas no mês seguinte o amigo voltou à carga:

Mil euros, Jacinto! É que a Belise ficou desempregada...

Continuaram a encontrar-se semanalmente nos Jogadores Anónimos, mas a situação estava a tornar-se pungente. Um dia Marco pedia um carregamento de telemóvel; noutro o passe do metro. E ia dizendo que era a última vez, que não pedia mais, mas na semana seguinte voltava ao mesmo. Jacinto já começava a não achar graça nenhuma àquela amizade.

Marco, isto assim não pode ser! Ainda não me pagaste nada do que te emprestei. Como é que achas que vais pagar?

Amigo, ainda não foi possível, mas eu vou pagar-te, está descansado. Anda lá a casa jantar amanhã para falarmos disso, pode ser?

Jacinto não queria ser indelicado, apesar da situação que se vinha a criar. Acabou por aceitar. Marco morava com a mulher na Pontinha, na zona antiga, e não tinham filhos. Receberam-no com muito carinho e Belise apresentou um esparguete com um molho realmente saboroso. Naquele momento, Jacinto invejou-o. Aquele tipo, com enormes problemas económicos, tinha um aconchego familiar apetecível: comidinha caseira e uma mulher que, não sendo esplendorosa, era muito bonita e atraente. O jantar foi amigável, mesmo afável e não se tocou no assunto dinheiro durante toda a refeição, apesar de Jacinto vir à espera disso. Depois do café, ficaram os dois a conversar nos sofás da sala, enquanto a mulher se retirara para a cozinha.

Quero realmente pagar-te — começou Marco — mas não está fácil. O dinheiro que entra é pouco e acaba-se depressa. A Belise vai fazendo uns biscates, que é o que vai valendo. Estivemos a pensar e lembrámo-nos que talvez não te importes de receber alguma coisa que precises, mesmo sem ser dinheiro. Espero que não leves a mal.

Não respondeu logo; não lhe agradava deixar de receber em dinheiro vivo, tal como emprestara. Por outro lado, não se vislumbrando outra maneira, talvez Marco tivesse objetos de que se quisesse desfazer e lhe dessem jeito. Do mal o menos.

Não sei, Marco! Tens coisas para vender? Eu já tenho a casa cheia de tralhas. Sem ofensa!

Sim, temos bens que te podem convir. Depende do teu interesse. Estarias disposto a receber, sem ser dinheiro mesmo? É que nós queríamos pagar esta dívida, mas dinheiro não temos.

Não é preciso eu receber já. Se achas que dentro de algum tempo me consegues pagar… — descaiu-se Jacinto, arrependendo-me logo de seguida. Estava a abrir a porta para receber daí a muitos anos ou no “dia de São Nunca”. — Mas diz lá o que tinhas em mente. Pode ser que me interesse.

Jacinto, só te vou propor isto porque sei que és um tipo sério a quem estou muito agradecido. Devo algum dinheiro a outras pessoas — pouco — mas a esses não proponho pagamentos destes; não me merecem respeito, apesar de me terem emprestado dinheiro. Pensa bem antes de responderes.

Ok, ok, diz lá!

Jacinto, estamos com cinquenta e tal anos, já nos conhecemos há uns tempos, já vamos percebendo os pontos positivos e os negativos de cada um. Sei que também tiveste problemas de jogo, mas que estás a ultrapassar; sei que não vives mal economicamente, mas que vives sozinho desde que te separaste da tua mulher — fez uma pausa neste ponto. — Um homem não vive bem sem uma mulher. Mesmo que o dia corra bem no emprego. À noite vai beber um copo com os amigos, sem que ninguém o chateie? Sim, é verdade, mas quando chega a casa também não tem ninguém que lhe dê um aconchego. Percebo bem as tuas carências nesse ponto. Nós não temos muito mais para te oferecer… O que me dizes? Não leves a mal!

«Quê? O que é que ele está a querer dizer? Será o que parece?» — pensou Jacinto. «Não, não pode ser… assim, com esta desfaçatez? Com a mulher ali na cozinha? Este tipo está parvo ou sou eu que tenho uma mente perversa?»

Marco, não sei se estou a compreender. Estás a dizer o que eu estou a pensar?

Não te sintas constrangido. Se não quiseres, nós compreendemos. Mas isso ia magoar a Belise. Ia ver isso como uma rejeição pessoal.

Mas, quê? Diz, diz tu!

Uma vez ou duas por semana vinhas cá a casa. Ou a Belise ia à tua. Até pode viver contigo uma semana por mês. Como quiseres. Acho que é uma maneira de te compensar, já que não temos meios de te pagar de outro modo.

Estás maluco! Eu não posso aceitar isso — reclamou Jacinto, numa atitude genuína de respeito pela dignidade humana.

Marco hesitou. De repente, pareceu apanhado de surpresa.

Gostas de mulheres, não? Não achas a Belise interessante?

Sim, sim! Quero dizer... não. Isto é, acho-a muito bonita e interessante, mas não quero pensar nela dessa maneira. É a tua mulher… — atrapalhava-se Jacinto, em pressupostos. — E a Belise? Não tem voto na matéria? — atirou ainda, mas já temendo que o argumento pegasse…

Claro que tem! Já falámos muito, já pusemos muitas hipóteses. Ela está disposta a tentar; deu-me há pouco o aval. Estamos nisto juntos.

Mas, não é penoso para ela?; não é humilhante para ti? — contrapôs Jacinto, de regresso a uma posição mais ética, menos egoísta.

A Belise gostou de ti. Achou-te interessante e, além disso, também está muito reconhecida pela ajuda que nos tens dado. Por mim, é bem melhor que fique entre amigos.

Mesmo assim, parece que estou a pagar por sexo. A ela, a ti. É… desconfortável.

Era bom que esta proposta não passasse de uma espécie de ilustração teórica dos perigos do jogo. Infelizmente, é a realidade de muita gente. Há quem venda o corpo na rua. Nós, até agora, temos conseguido não chegar aí. Esta solução não nos traz constrangimentos; estamos decididos.

Perante o silêncio do amigo, continuou:

Mas, se preferes, podemos deixar a decisão à sorte — sugeriu, tirando uma moeda de 20 cêntimos e colocando-a sobre a unha do polegar direito, pronto a dar-lhe um piparote. — Se sair coroa, recusas a proposta, mas ficas à espera do dinheiro; se sair cara… aceitas a Belise.

Não, não. Não me tentes com jogos — declarou numa meia verdade.

Jacinto aceitou a proposta, com sentimentos mistos. Uma luta entre respeito humano e egoísmo lúbrico não deixou de se travar no seu íntimo, durante os seis meses que durou o “pagamento da dívida”. À medida que se aproximava o fim do período previsto, crescia nele um certo sentimento de angústia. Não queria perder aquele mimo feminino que tão bem lhe fazia. Quando, esporadicamente, Marco voltou a pedir-lhe dinheiro emprestado, facultou-lho sem reservas. Até com um sentimento de satisfação. Perto do fim do mais recente prazo, foi o próprio Marco que o libertou mais uma vez da ansiedade.

Jacinto, estamos contentes não só por conseguirmos pagar a dívida, como por nos teres permitido fazê-lo deste modo. Estivemos a falar e resolvemos propor-te… uma extensão do acordo. Dava-nos jeito uma entrada extra de dinheiro. Mas só se tu quiseres.

Jacinto manteve o rosto impassível, mas por dentro rejubilava. Não era coisa que não lhe tivesse já passado pela cabeça, mas não tinha tido coragem de ser ele a propô-lo. Envergonhava-se.

Cerca de dois anos mais mantiveram o acordo de dama e cavalheiros, se é que algum merecia esse galanteio. Uma vez por outra, que Jacinto visitou o casal, percebeu pelo ecrã esquecido em jogos on line que o jogo nunca tinha abandonado verdadeiramente aquela casa. Há certos apelos que nem conhecimentos teóricos nem sofrimentos conseguem ultrapassar. E foi sabendo pela Belise antigas penas passadas, como as de ter feito hotéis e apartamentos em certos períodos extremos. Fizera-o com espírito de sacrifício pela família, com esperanças de redenção. Aos poucos, foi ficando cada vez mais desesperançada. Por fim, tomou uma decisão — ficar de vez com Jacinto. Para ela, foi a libertação; para ele, um momento de jackpot. Quem diria que seria pelos caminhos do acaso dos jogos que encontraria a mulher da sua vida?

Continua a frequentar os Jogadores Anónimos, porque bem sabe que “a dependência do jogo é uma doença que não tem cura”. Encontra lá o amigo, que agora anda a “tentar jogar pouco” e a “viver um dia de cada vez”. Falam dos velhos tempos, com o muito em comum que os acasos da vida favoreceram. Marco pergunta pela Belise, mas esse é um ganho que Jacinto já não arrisca perder.

Joaquim Bispo


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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 45ª edição (maio/junho de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1sJH6wduc-nSa11gMQBaiPQ2WMfUffDMa/view

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Imagem:

J. Haudry (?), Cena de Casino.

Da Internet.

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10/05/2024

Abraão e o GPS

 


Abraão nunca aceitara bem aquele filho nascido fora de tempo. Quando o Senhor lhe anunciou que ia ser pai, Sara já tinha alguma idade. Como podia ainda gerar descendência?

Sara tivera uma série de abortos espontâneos. O ambiente insalubre em que toda a gente vivia no século XXI, não ajudava. A carne estava carregada de hormonas, o peixe, de mercúrio e outros venenos, as verduras, de agrotóxicos e chumbo dos fumos de escape. Aquela estada em terra estrangeira também fora traumática. Fora vítima de violação e sabe-se lá se apanhara alguma doença. Depois de todas as provações, e já sem esperanças, veio aquela voz pausada e grave anunciar-lhe o que parecia impossível:

«Corta o teu prepúcio e daqui a um ano serás pai» — ordenara a voz do Senhor, em tom assertivo, vinda do telemóvel desligado.

Abraão não percebeu porque é que o prepúcio vinha ao caso — embora tivesse lido umas coisas sobre DST na Internet —, mas obedeceu e nasceu Isaac. Inacreditável; o Senhor prometera e cumprira, não havia dúvidas. Quase tão inacreditável foi a criança nascer com aqueles caracóis ruivos que não existiam na família. Por isso, Abraão sempre olhou o filho de través. «Crê e viverás!» — ameaçou Ele, certa vez, em voz austera vinda do robô de cozinha. Isso foi fácil. Abraão tinha vontade de acreditar.

A psicologia já vai tentando explicar — sem grande aceitação —, como é que o imaginado toma conta do racional e docilmente o conduz pelos meandros de efabulações puramente mentais, como se fossem eventos acontecidos. O pensamento desejoso, que entretanto foi dominando Abraão, teria talvez origem na sua convicção de que Isaac não era seu filho, e aliciava-o com a possibilidade de ele ser filho do Senhor. Mais valia que Isaac fosse filho de um ser sobrenatural, do que de algum vizinho dissimulado. Ser trapaceado nesta matéria por alguém próximo ou amigo de casa era intolerável.

Com o tempo, nem tal estratagema mental concedia ainda descanso. Já andava Isaac pelos onze anos quando o Senhor, usando a voz modulada de Celestino, na aplicação de GPS do telemóvel, comunicou a ordem fatídica:

«Vai à Peninha, constrói um altar sobre a Pedra da Visão e imola o teu filho Isaac.»

Abraão não resistiu muito, nem perguntou porquê. Se era o Senhor que mandava… Como sempre, a ordem não o constrangia e até vinha ao encontro de um pensamento acarinhado, mas mantido íntimo, e explicável talvez por essa animosidade escondida para com Isaac. Mas não deixava de ser uma ordem. Mandava-o matar o filho, num ritual de adoração comandado pelo próprio Senhor e não iria contra ela. Nem contra essa, nem contra nenhuma outra.

Dias depois, muito cedo, Abraão obrigou o filho a sair da cama e a acompanhá-lo. Numa mochila, meteu uma faca de cozinha, um isqueiro piezoelétrico e uma caixa de acendalhas ecológicas. Na bagageira do Jeep, já tinha uma saca de lenha do Aki.

Meio ensonado, Isaac demorou a estranhar a excursão matinal, até porque o pai, não sendo madrugador, de vez em quando tinha assim repentes inesperados.

«A 400 metros, entre na rotunda e saia na segunda saída» — dirigia Celestino, do telemóvel que Abraão fixara no interior do para-brisas.

Aonde vamos, pai?

Abraão não respondeu. Não gostava de ter de se explicar.

Pai! — insistiu Isaac.

Tá calado! Vamos ver o teu avô ao lar da Azóia. Mas primeiro passamos na Peninha, para ver a vista.

A esta hora? Com este nevoeiro? Porque é que a mãe não veio?

Seguiam então pela estrada secundária junto a Barcarena, quando Isaac deu um grito:

Cuidado! Pai!

O que foi? — assustou-se Abraão.

A ponte não está lá… Para, pai!

«A 200 metros vire à esquerda e entre na ponte!» — comandava impávido Celestino.

Estás parvo? É do nevoeiro! Não ouviste o que o Senhor disse? — ralhou Abraão, abrandando.

E tu não viste as placas? Para!

Arre, que é chato! Queres saber mais do que o Senhor?

Para, já! — gritou o miúdo, muito mais alto do que alguma vez gritara com o pai.

Abraão parou. Através da neblina matinal, nada de anormal parecia haver com a ponte. Saíram do carro e aproximaram-se do que devia ser a balaustrada. Afinal, era só um resto. Antes, uma grande placa horizontal, derrubada por algum carro por sobre uns blocos de cimento esbranquiçado pela geada, avisava: “Ponte destruída. Utilize a variante de Leceia”. Aproximaram-se mais. Lá em baixo a água rosnava irada e inquietante.

Tás a ver pai, eu não te disse? Havia placas de perigo desde lá atrás.

Mas o Senhor…

O GPS? É uma máquina, pai! Nem sequer está online. E há quanto tempo não o atualizas? Queres que eu te ensine a tirar isso da net?

Está atualizado — resmungou Abraão, desconfortável. — Tem-me dado bons conselhos. Confio mais no Celestino, como lhe chamas, do que nos mapas.

Ia-nos tramando de vez...

«Vire à esquerda e entre na ponte!» — continuava Celestino.

Ajustado o itinerário e ultrapassado o conflito motivado pelas condições rodoviárias, pai e filho seguiram o seu destino, sob o conselho sábio de Celestino:

«O abate deve ser rápido e a sangria total, conforme o procedimento ritual». Abraão atrapalhou-se, mas Isaac não pareceu aperceber-se. Ia entretido com o seu próprio smartphone, mas atento a se o pai não se enganava no caminho.

Em menos de meia hora, passaram a Malveira da Serra e chegaram à Peninha. O tempo continuava encoberto, mas já se avistavam pedaços da costa e do Cabo da Roca. Abraão pegou na mochila e na saca de lenha e chamou Isaac. Sobre uma rocha que culminava um esporão do barrocal, e depois de uns gestos rituais que aprendera, Abraão dispôs os cavacos sobre as acendalhas e começou a acender o lume.

Pai, o que estás a fazer? Uma fogueira aqui, sem a mãe, à hora do pequeno almoço... E o entrecosto? O que se passa contigo? — disparou Isaac, apreensivo.

É um sacrifício, uma ordem do Senhor. Não posso desobedecer.

Pai, foste outra vez aos saca-dízimos?

Não, rapaz, foi o Senhor mesmo que me disse para te imolar — anunciou Abraão em voz grave, enquanto tirava a faca da mochila.

Embora aterrorizado, Isaac acionou as três teclas de emergência-criança do seu smartphone, que ele sabia que enviavam um pedido de socorro e as coordenadas do aparelho.

Vais-me matar? O teu filho? — choramingou.

Tu não és meu filho. Basta olhar para essas melenas vermelhas!

Em estupefação, Isaac hesitava entre tentar fugir e argumentar. Nesse momento, o seu telemóvel começou a vibrar. Abraão arrancou-lho das mãos e atirou-o para a ribanceira de penedos.

Isaac nunca tinha visto o pai assim. Virou-se para fugir, mas a manápula do pai agarrou-o.

Larga-me, pai! Larga-me!

Já disse que não sou teu pai. Tá quieto! Eu tenho de oferecer este sacrifício ao Senhor, para que eu encontre graça diante d’Ele, me proteja e me torne feliz.

Tás louco, pai. HELP! Que conversa é essa? Essa voz do telemóvel são só gravações. Não é nenhum sábio, nenhum deus — gritava Isaac, tentando ganhar tempo como única saída do labirinto do medo. — Os primitivos é que sacrificavam animais e pessoas. Pensavam que assim tinham mais caça ou colheitas. Estamos no século XXI, pai!

Não quero ouvir mais tretas desta sociedade que não respeita os valores da tradição e da família — ripostou Abraão, enquanto arrastava o filho para junto da fogueira que já ardia bem. Tolheu-lhe os movimentos e dobrou-lhe o pescoço sobre a parte mais lisa da pedra.

Nesse momento, ouviu-se o sibilar característico de um drone, que deu uma volta larga, mas rápida, sobre os penhascos da Peninha. Era de tipo octogonal, tinha envergadura de um metro e apresentava câmaras e vários outros instrumentos apontados para baixo. Um altifalante berrou:

«Largue a criança. Já!»

Abraão não esperava esta interferência. Tentou prosseguir. O altifalante do drone, que agora pairava a uns quinze metros sobre o grupo, voltou à carga:

«Pare já ou disparamos!»

Larga-me, pai! Cuidado! Eles disparam! — gritou Isaac.

Abraão levantou a faca, mas, antes de desferir o golpe fatal no pescoço de Isaac, foi atingido por um dardo junto à clavícula. O efeito do entorpecente foi imediato. Deixou cair a faca, oscilou uns segundos e afundou-se no chão pedregoso. Isaac afastou-se do volume do pai, aliviado, mas meio confuso. Chegou-se à beira do rochedo e espreitou lá para baixo, tentando localizar o smartphone. Quinze minutos depois, chegou a Polícia e o Socorro médico. Duas estações televisivas de atualidade criminal chegaram logo a seguir.


Joaquim Bispo

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Por seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 104 a 107 — a 18ª edição (novembro/dezembro de 2019) da Revista LiteraLivre, em formato e-book:


https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_18__edi__o


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Imagem: Javier López Molano, Sacrifício de Isaac, 2011.

Saatchi Art

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10/04/2024

O Apocalipse de Atouguia

 


Atouguia era uma sibila neandertal que vivia na zona mais ocidental da atual Península Ibérica, 29 mil anos antes do presente. A sua vivência simples de recoletora, adaptada às condições climáticas de então, foi certo dia marcada pelo terror de um feroz ataque de esguios e sanguinários invasores. Fugiu, escondeu-se numa loca rochosa, ouviu os gritos desesperados dos seus irmãos. Assistiu em agonia à morte de todos os membros do seu clã, que, depois de esquartejados pelas lâminas de sílex dos atacantes, foram comidos, numa orgia de sangue e ferocidade, que durou vários dias. Obrigada pela fome a tentar escapar, foi descoberta, apanhada e tornada alvo da turba cro-magnon. Violada repetidamente em festim da carne viva, acabou por ser poupada, não devido à alvura da pele da sua raça, mas à intensidade rubra dos cabelos. Os recém-chegados passaram a ser os seus donos e os novos senhores do seu mundo esfacelado. Tornou-se mãe de uma criança mista, calada e estranha.

A sua cria ainda durou quatro anos, mas, mais frágil do que as da sua antiga tribo, acabou por morrer aninhada nos seus braços. Atouguia sepultou-a na reentrância de uma falésia calcária, na zona do Lapedo, com alguns mimos de conchas e ossos pintados de ocre e, entre os joelhos, um coelho acabado de sacrificar. Depois, enlouquecida de dor e desesperança, retirou-se para um monte chamado Berlenga e pôs-se a profetizar desgraças para os seus captores e para a mãe Terra, em grandes lamentos que lhe eram revelados — dizia. Este é o rol das suas visões:


1 — Sentada no mais alto dos penedos da Berlenga e embrenhada na minha dor, lastimava a lonjura infinita do mar, quando ouvi uma voz potente atrás de mim. Voltei-me mas só vi uma névoa que parecia o meu pai. Ele falou lenta, mas profundamente, em frases cortadas por silêncios:

2 — Eu vejo o mal que vai assolar o mundo. Vejo turbas em fúria, vejo grandes tribos ser dizimadas, vejo a mãe Terra negar o alimento aos famintos. Aqueles que agora se banqueteiam com as nossas carnes amargarão a crueza da sua violência. Esta Terra que foi sempre mãe solícita e generosa, vai negar-lhes o úbere.

3 — Durante muito tempo, andarão enganados, iludidos pela sua própria expansão. Crescerão, invadirão campos e mares, expulsarão os seres irmãos dos territórios que cobiçam. Serão tantos que a Terra será incapaz de os alimentar. Apertarão o úbere da Terra até o esmagar, mas ele não verterá uma gota.

4 — Pragas envolverão as suas aldeias e tornarão arenosas as planuras. Querendo mais comida para si, espalharão venenos para debelar as pragas que lhes roubarão um resto de sustento. Matarão assim também os insetos úteis e não haverá pólenes a passar de flor em flor. Não haverá mais frutos, nem mais árvores novas, nem mais comida para os animais.

5 — Grandes incêndios engolirão florestas e matos e não restarão animais que eles possam caçar. Quando pensarem descansar, não terão sombras em que se refrescar, o sol queimará as suas peles e não terão descanso. Doenças e maleitas corroerão as suas entranhas e vomitarão os fígados, os bofes e as tripas. Fugirão para lá dos mares, mas o panorama será igualmente desolador.

6 — Vão-se arrastar nas campinas, tentando roer as ervas esparsas, mas elas serão amargas e envenenarão os seus ventres; em vão, percorrerão as margens dos rios e do mar, em busca de vermes e bolores, mas nada haverá que lhes mate a fome, nem água sã que lhes mate a sede.

7 — Os mananciais envenenados serão aterrados e secarão. Alucinados por pestes e epidemias deitarão as culpas aos seus semelhantes e eles próprios se dizimarão. As tribos famélicas e enlouquecidas enfrentarão outras tribos e os cadáveres insepultos secarão ao sol. Nem os abutres lhes quererão arrancar qualquer pedaço das carnes venenosas.

8 — As hecatombes serão diárias. Por fim, será tão evidente a insensata vida que escolheram que muitos se arrependerão, mas será tarde. A mãe Terra será um local morto. E terá de voltar a esforçar-se sozinha para recuperar do cataclismo que esta vil espécie Lhe infligiu.

9 — Esta é a revelação feita a Atouguia, que desvela o futuro da Terra. Ouvi!


Joaquim Bispo


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Por seleção em concurso literário, este texto integra a coletânea "A Arte do Terror — Volume 6 ou Apocalipse", projeto da editora Elemental Editoração.

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Imagem: Fernand Cormon, Caim fugindo perante a maldição de Jeová, 1880.

Coleção Museu d'Orsay, Paris.

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10/03/2024

A última morada

 



Respeita a minha última morada.

Pelo teu exemplo, talvez respeitem a tua.


Eburo estava indignado. A anta da sua família, com mais de 6000 anos, fora arrasada para plantar um amendoal.

Ninguém o avisara que os mortos não se indignam. Nem têm nenhuma das outras inumeráveis emoções dos vivos. Mas, não era o único morto que não tinha consciência da impossibilidade da sua vitalidade psíquica.

Comentou o desacato com familiares e amigos, mas não obteve mais do que encolheres de ombros. Parecia que todos já estavam habituados à falta de respeito pela integridade dos seus restos mortais e da sua última morada. Uma indignidade continuada. A falta de apoio deixou-o desalentado, mas não deixou de ruminar no assunto.

Na excursão a Lisboa que a autarquia organizou pouco depois, Eburo sentou-se ao lado de um tipo moreno de óculos. A conversa, em língua moderna, só podia rumar num sentido:

O vizinho já viu o que me fizeram? Arrasaram-me a anta de família, ali na Herdade do Vale da Moura. Aguentou 6000 anos sem estragos de maior! É claro que os esteios já estavam à vista e a cobertura estava tombada sobre um resto da terra da mamoa, mas estava completa, com um porte ainda nobre. Agora vieram estes tipos e mandaram aplanar o terreno todo, para plantarem um amendoal intensivo, como se lhes fizesse falta o terreno de 4 árvores. A última morada, minha e da minha família, não vale mais do que 15 ou 20 quilos de amêndoas. É de uma indignidade atroz, você não acha? Você é de onde e de quando?

Olhe, eu sou ali de ao pé de Montemor e estou morto de fresco. Morri há 4 anos e nem fui à terra, fui direto para o crematório de Ferreira. E pensa que os herdeiros levaram as cinzas para casa? Ná, foram para o cendrário coletivo do crematório. É assim a nossa vida. Você, ao menos, sabe onde era a sua anta; eu nem isso.

Eburo não respondeu, mas franziu o sobrolho, surpreendido com a revelação pungente do companheiro de viagem.

Eu até acho mais ecológico — continuou o interpelado. E tem algo de evocação primordial: o clã à volta da pira sobre a qual se depositava o falecido, as chamas altas, o fumo a subir. Parece uma solução própria de exércitos ou grupos étnicos em marcha. Prestam homenagem ao extinto e não deixam para trás qualquer resto que possa ser profanado por estranhos ou inimigos. Era assim no tempo da Guerra de Troia.

Só soube dessa guerra umas centenas de anos depois...

Somos a única espécie que tem comportamentos funerários — discorria o recém-conhecido. Devem ter surgido não só pela razão prática de fazer desaparecer a carne morta, como pela tomada de consciência da falibilidade da vida. Para os nómadas, se não praticassem o canibalismo, seria fácil abandonar o corpo à ação higienizadora de abutres e lobos; para os sedentários ligados à terra, o fogo purificador faria menos sentido do que enterrar o defunto. Adubava a terra. As plantas e os frutos que dali medrassem teriam um pouco do falecido, seriam o seu regresso ao ciclo da vida.

Eburo mantinha-se atento, mas conhecia bem aquele entendimento.

O resguardo dos restos mortais em urnas, jazigos, criptas deve ter sido adotado quando se ganhou a convicção, ou pelo menos a esperança, na vida depois da morte — prosseguiu o morto recente. — Manter o corpo guardado num local fechado podia ser a melhor forma de manter alguma coerência corporal. E se fosse bem preservado por uma mumificação eficaz, como faziam os Egípcios, e bem resguardado numa estrutura inexpugnável, como uma pirâmide, o morto tinha as melhores condições a que podia aspirar, quando iniciasse a viagem para um outro mundo, ou quando ressuscitasse.

Em Lisboa, Eburo tratou de visitar o Cemitério dos Prazeres. Já conhecia a fama da qualidade arquitetónica dos jazigos, mas o que o levou lá foi sobretudo tentar perceber se a falta de respeito pelos mortos e pelo património também se fazia sentir na grande cidade. A maioria dos jazigos parecia em bom estado e objeto de atenção frequente. Não meteu conversa com ninguém, porque os habitantes estavam recolhidos, e não era por causa da Covid-19; era porque já não podiam com tanto turista. Deambulou pelas avenidas do local, ficou mesmo surpreendido com o inesperado de algumas construções e com a qualidade das esculturas, mas, depois de muitas paragens, decidiu que, apesar de tantos arrebiques, a sua anta possuía — possuíra — uma beleza singela e natural que nenhum daqueles edifícios tumulares atingia. Deteve-se com alguma demora em frente do formidável mausoléu do Duque de Palmela. A grandiosidade da edificação, que alberga os restos mortais de mais de 200 membros da família, causava-lhe um misto de admiração e ressentimento pela ostentação faraónica. A seu lado, dois outros turistas isolados apreciavam o túmulo coletivo.

Admiro o cuidado com que mantêm esta necrópole em tão boas condições — lançou Eburo aos presentes. — E até fico impressionado, confesso, com a capacidade dela. Já sou mais cético em relação à longevidade… Eu estive numa anta no Alentejo, logo abaixo de Évora, rodeado por vários familiares, durante quase 6000 anos. Há talvez uma centena de anos, assaltaram-na e a maioria dos ossos dispersou-se. E, há uns meses, vieram com máquinas e destruíram-na completamente. Já tenho dificuldade em saber onde era. Até as pedras enterradas arrastaram dali. Há direito isto? Já não valem nada 6000 anos? Aonde é que nós chegámos?

Os outros dois olharam-no surpreendidos. Pareciam não querer conversa, mas após um tempo, um deles pareceu entristecer-se e baixou a cabeça. Parecia rememorar alguma coisa penosa. Por fim, tomou a palavra:

Como eu o compreendo, amigo! Isto são tempos terríveis. Não há respeito por nada. Você, se calhar, ainda encontra as pedras maiores da sua morada; eu nem isso.

Lembranças dolorosas fizeram-no baixar de novo a cabeça. Depois prosseguiu:

Chamo-me Creze. Vivi há 3000 anos numa área junto à serra da Gardunha. Fui agricultor de certa importância. Cultivava cereais naquelas encostas descarnadas e mantinha um rebanho numeroso, ajudado pela meia dezena dos filhos que chegaram à idade adulta. Quando morri, os filhos mandaram escavar uma grande pedra oblonga e enterraram o féretro na encosta de uma pequena elevação, na qual eu gostava de me sentar à sombra de um carvalho olhando a distância. Há coisa de 60 anos, um agricultor agradou-se da minha sepultura. Devia querer usá-la para bebedouro de animais. Desenterrou-a, levou-a para a sua quinta e tentou furá-la no fundo. Tanto martelou que a sepultura de pedra se partiu a meio. Frustrado e sem lhe encontrar já préstimo, no dia seguinte partiu-a a martelão.

Os ouvintes franziram o sobrolho, incomodados com o relato daquela depredação inútil.

O meu querido machado de bronze, que ele também tinha levado, foi parar às mãos do filho adolescente, que não reconheceu a peça, muito menos a sua antiguidade, apesar de ser estudante. Pouco depois, usou-o como escopro para uma das suas bricolagens. É claro que, com aquele uso inadequado, o machado abriu-se em lascas. A metalurgia do meu tempo não tinha a qualidade da de agora. Em dois ou três dias, o meu espólio, a minha última morada, a minha dignidade foram completamente esfacelados.

Eburo estava impressionado. Parecia que o seu caso, que tanto o indignava, era a regra: saque e destruição.

O outro ouvinte pareceu ganhar coragem para contar a sua história.

O meu nome é Arnth Vipinana, de uma das mais importantes famílias etruscas do final do século IV a.C., da qual provinham os altos funcionários do Estado. Vivíamos na zona a norte de Roma e a nossa gens tinha um nível cultural muito apurado, o que não impediu que viéssemos a ser absorvidos, nos últimos séculos antes desta era, pelos emergentes descendentes de Rómulo. Deixámos monumentos funerários admiráveis, de uma beleza sofisticada — sarcófagos encimados por figuras reclinadas, geralmente resguardados em grutas coletivas. Assim era o meu, uma arca em granito, com altos relevos de cenas guerreiras na face maior e que na tampa apresentava a minha figura de vulto, em atitude de descanso majestoso, reclinado sobre o lado esquerdo. Mantive-me em sossego durante 22 séculos, juntamente com outros familiares, cada um em seu sarcófago, na cripta coletiva subterrânea.

Os dois ouvintes circunstanciais mantinham uma atenção silenciosa.

Então, em 1839, a necrópole da minha família foi descoberta pela família Campanari. Os Campanari eram já prósperos comerciantes de antiguidades, com licenças estatais e tudo. Estava em alta a moda das antiguidades, potenciada por uma exposição de arte etrusca por eles organizada dois anos antes em Inglaterra. As peças etruscas rendiam bom dinheiro e muito do espólio encontrado foi leiloado pouco tempo depois. Por volta de 1867, venderam três sarcófagos da nossa cripta, incluindo o meu, por um preço fabuloso, a um emergente comerciante inglês — Francis Cook. Cook tinha acabado de comprar a Quinta de Monserrate, em Sintra e lançara-se na construção de um esplendoroso jardim romântico, com inúmeras espécies botânicas exóticas, trilhos serpenteantes, cascatas, lagos, pontes, ruínas falsas. Neste ambiente paradisíaco, colocou ele os três sarcófagos verdadeiros, aproveitando não só a sua beleza estética, mas também a sua capacidade evocadora, cada um em seu contexto cenográfico. O meu ocupava a abside da ruína falsa de uma capela e ali se manteve desde 1867, à mercê da ação da humidade, de líquenes e musgos, e sobretudo, do vandalismo dos visitantes, que é sempre ignorante. Aquele fabuloso parque foi mesmo votado ao abandono a partir de 1929.

É uma falta de respeito inaudita! — fez-se ouvir Eburo, que já estava um pouco cansado da explicação.

Em 1983, houve uma tempestade tal que a torrente arrastou uns metros o sarcófago que estava junto a uma represa e lhe levou a tampa, que nunca mais apareceu. Foi um dia muito triste para nós os três. Só nessa altura as autoridades nacionais recolheram os sarcófagos no abandonado Palácio de Monserrate, mas com tal falta de cuidado que esborcelaram gravemente aquele já castigado pela tempestade. Mas terminavam 116 anos de grande degradação e angústia. Finalmente, em 1997, criaram uma câmara especial, a lembrar uma cripta etrusca, no Museu Arqueológico de Odrinhas, onde me sinto razoavelmente. Só me queixo da vozearia que vem da Sala dos Romanos — um salão com umas boas dezenas de estelas e pedras tumulares.

Isso foi uma odisseia e tanto, amigo! — respondeu, por sua vez, o beirão. — Mas ao menos acabou em bem. Já quanto a nós…

— “Em bem” é uma maneira de dizer; o amigo desculpe — ripostou o etrusco. “Em bem” era ter-me mantido na cripta em que os meus familiares me colocaram, e não vir parar a uns milhares de quilómetros, a servir de decoração e divertimento para gentes que não conhecia.

Tem razão, pois claro, desculpe. Mas como compreende, a nossa situação é muito mais penosa que a sua. Infelizmente, não há muito a fazer. Não é verdade, amigo alentejano?

Eu não sei. Acho que isto não fica assim; não pode ficar assim. Só me apetece ir lá deitar-me na cama dos que me fizeram isto. Se calhar, não davam por nada; ou talvez sentissem um fresquinho, sem saberem de onde vinha… Pelo menos, tinha onde descansar.

Creze gostou da ideia. Logo ali resolveram os dois criar um movimento dos “sem tumba”. Haviam de organizar-se, reunir o apoio de tantos outros deserdados, propor formas de ação, intervir no mundo dos vivos, ainda que de forma subtil.

Despediram-se do itálico, que prometeu pensar no assunto.

Quando passarem por Sintra, vão-me lá visitar a Odrinhas — convidou.

Está prometido, Arnth! Arrivederci — brincaram os ibéricos, bem-humorados.

Foi bom humor de pouca dura. Daí a pouco, no elétrico, enquanto lançavam olhares distraídos ao jornal que um cidadão folheava, carregaram de repente o semblante. Uma pequena notícia no interior, de título “Outra anta do Neolítico arrasada no Alentejo”, informava que o crime acontecera no mês anterior na Herdade dos Pardais, Cabeção, Mora.

Joaquim Bispo


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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 44ª edição (março/abril de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 71 a 74):

https://drive.google.com/file/d/1p23s5QFHjyx7ieM_btfnEYNRrYFF3m6r/edit

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Imagem: Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, c. 310–300 a. C.

Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, Sintra.

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