O
que vou contar começou na semana após
o Natal, ao chegar a casa, cerca das cinco da tarde. Depois de
me pôr à vontade, preparei um copo de leite-com-chocolate morno,
juntei um pacote de bolachas recheadas e fui lanchar para a sala,
enquanto via televisão.
Foi
já no fim do lanche que o vi: o carteiro de Pablo Neruda, como eu me
lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da rapariga que lê uma
carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer,
que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei estático, sem
saber bem o que pensar. Depois, observei as bolachas e cheirei o
leite-com-chocolate, mas pareceram-me em bom estado!
Levantei-me
e mirei-o de perto. Estava com aquele ar ingénuo e satisfeito de
quem finalmente sabe o que são metáforas. E parecia bem implantado
na camada cromática, como se tivesse sido pintado ao mesmo tempo que
a mulher. Esquecendo o anacronismo do vestuário, não ficava mal de
todo no quadro. Aparentemente, tinha sido ele a trazer a carta à
jovem holandesa de Vermeer.
“Bem”,
pensei, “é melhor não dizer nada a ninguém, sem dormir sobre o
assunto”. E foi isso que fiz no sofá, a meio de um diagnóstico
delicado do Dr. House.
Quando
acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o quadro. O carteiro
já lá não estava. Fiquei aborrecido. Frustrara-se a hipótese de
mostrar o fenómeno aos amigos. Logo a seguir, fiquei preocupado. O
que quer que tivesse perturbado a minha perceção devia estar em mim
e podia ser um grave problema de saúde.
Resolvi
fazer umas pesquisas na Net sobre alterações de perceção.
Um site francês advertia que níveis elevados de açúcar no
sangue podem provocar alucinações. Nessa noite, dormi mal.
No
dia seguinte, via-se uma alcoviteira de Murillo assomando à janela,
a falar com a rapariga da carta. E nos outros dias sucederam-se
outras imagens de menor dimensão: um jarrão azul com flores, de
Cézanne, junto à fruteira; uma joia a imitar Lalique no cabelo da
jovem; o gato da Olímpia de Manet, sobre a tapeçaria; eu sei lá!
Isto, apesar de eu ter começado a conter-me nas sobremesas e a
lanchar só fruta fresca.
Entretanto,
fui ao médico. Impôs-me uma dieta rigorosa sem açúcares e
receitou-me uns comprimidos de lítio. Disse que devo ter uma
predisposição genética visionária que foi potenciada pelos
excessos da quadra natalícia. Para eliminar todos os fatores
desencadeantes, aconselhou-me ainda a parar com quaisquer leituras
sobre arte durante uns tempos. Certo é que, passadas umas semanas,
deixei de ver imagens estranhas a perturbar o recolhimento da
holandesa de Vermeer na leitura da sua carta.
Quando
já dava por seguro que o meu problema estava sanado, certa manhã,
dei pela falta da própria mulher do quadro. Calculam como fiquei! O
coração acelerou-se e quase entrei em pânico. Se antes era açúcar,
o que seria agora?!
Telefonei
logo para o meu médico, que também se mostrou alarmado e me disse
que eu, provavelmente, teria abusado da dieta. Mandou-me tomar
imediatamente um pacote de açúcar dissolvido em água e que fosse
ao consultório dele no dia seguinte. Tomei o que ele mandou e
estaquei pensativo a olhar para o quadro deserto. Que intrigante a
situação!
Então,
reparei nuns pequenos vultos refletidos na vidraça do quadro, agora
noutra posição. Eram-me familiares. Apesar de minúsculos, não
deixavam margem para dúvidas – eram as silhuetas da holandesa
desaparecida e do carteiro de Pablo Neruda, passeando de braço dado
numa praça de Delft!
Instantaneamente,
entendi todo o percurso de aproximação e sedução: o primeiro
contacto, o recado influente, as flores, a prenda…
No
dia seguinte, já não fui ao médico. Nunca mais lá voltei. Percebi
que o amor é mais forte que quaisquer dietas ou comprimidos. E
encontra sempre o seu caminho.
Joaquim
Bispo
(Este
conto foi publicado no número 16 da revista literária virtual
Samizdat, de maio de 2009)
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