10/04/2025

A visita do diabo

 


O dia amanheceu frio, mas luminoso. Nada fazia prever...

Era terça feira, dia de o queijeiro passar a recolher a produção de queijo fresco da semana. O casal de agricultores e o filho, em férias escolares de Natal, esperavam-no no terreiro fronteiro à casa, mas o rapazito não largava o mais recente brinquedo que ele mesmo construíra: uma “espingarda”.

Dois ou três dias antes, na aldeia, assistira maravilhado à habilidade que um amigo aprendera nas aulas de Física do primeiro período: metia quatro ou cinco cabeças de fósforo num tubo metálico, aquecia a extremidade fechada com outro fósforo aceso e, passados instantes, o tubo disparava, como uma espingarda. Que inspirador!

Logo que voltou ao campo, tratou de pedir a caixa de inox do termómetro à mãe, amarrou-a a um pedaço de tábua, que afeiçoou em forma de coronha, e estava a arma pronta. Fez algumas experiências: aumentou a carga explosiva, juntou uns grãos de chumbo à frente, por fim aplicou um bucha de cartão. Como os cartuchos do pai. Os tiros espalhavam um pouco o chumbo, mas os grãos ficavam bem cravados na casca das árvores que usava como alvo. Tencionava experimentar em breve a nova arma na caça aos pássaros.

Dessa vez, o queijeiro não vinha sozinho; trazia o filho, assim disse. Só muitos anos mais tarde o jovem inventor suspeitou que aquele rapazola não era outro senão o diabo. Ou, pelo menos, o seu instrumento.

Apeou-se e dirigiu-se, seguro e sobranceiro, ao moço do campo. Este, orgulhoso, mostrou-lhe logo a “espingarda”. Mas o visitante não parecia trazer tenção de brincar. Era entroncado e devia ter mais dois anos que o jovem atirador, pelo menos. Dirigiu a curiosidade fiscalizadora para a cerca de troncos em que uma bezerra mugia a pedir a mãe.

- Porque é que a bezerra está presa? - indagou, austero.

- “Atão”, é a corte dela! - respondeu o miúdo, incapaz de explicar uma evidência.

Então, o visitante deu início à sequência fatal: com um resmungo indignado, destrancou a cancela, abriu-a e enxotou a vitela para fora. Solta, não se fez rogada e partiu em trote na direção que devia achar que estava a vaca mãe. O jovem dono, incrédulo e atarantado, só emitia frágeis protestos:

- “Atão”, soltaste a bezerra…

Mas o recém-chegado parecia ter um plano marcado. Mudou logo a conversa:

- Isso dispara? - perguntou, interessado.

A atenção que o miúdo esperava para mostrar a sua “espingarda” foi o toque de mágica que o levou a esquecer o problema da vitela que ainda há pouco o desorientava.

- Sim, sim. Queres ver?

O rapazito correu para casa e rapidamente preparou o tubo, desta vez com uma carga de fósforos mais generosa, para fazer boa figura. Saiu com a “espingarda” carregada, fósforos e uma vela, e encaminhou o outro para trás da casa. Aí, acendeu a vela, encostou a coronha ao ombro e apontou a arma para um estreito tronco de mimosa a uns dois ou três metros, com a chama da vela a aquecer a extremidade do tubo.

Ao contrário do que era habitual, o estouro estava a demorar. Por um momento, o miúdo teve um assomo de receio. Nem sabia o que eram premonições. Baixou ligeiramente a cabeça, tapou mesmo o ponto de mira com a aba do chapéu que todos usavam no campo. Por fim, o estampido, uma dor fugaz, o negro.

Acordou com todos à volta dele, em grande alarido e alarme. O miúdo tinha dores, deitava sangue do olho, havia muitos pingos no chão. O tubo também caído indicava o que tinha acontecido: com a força de recuo, soltara-se da fixação à tábua e entrara pelo olho adentro do miúdo imprudente. Os pais estavam desanimados e zangados.

- Fartei-me de dizer para não brincar com aquilo, mas não… Só faz o que quer!

- Já está aleijado o meu filho! - choramingava a mãe.

Logo depois, ensaiaram várias experiências visuais:

- Tapa o olho esquerdo. O que é que eu tenho na mão? É uma colher ou um garfo? E agora, são dois ou três dedos?

Embora com forte perda de visão, conformaram-se por o ferimento não ter sido maior. O olho podia ter sido vazado.

Souberam então da ausência da bezerra. O que foi?; como?; porquê? - queriam saber. O miúdo, só tinha uma desculpa:

- Foi ele!

- Então e tu deixaste? E porque é que não foste chamar-nos? - eram perguntas cujas respostas o miúdo não sabia dar.

O pai estava descoroçoado. Andava a guardar aquela bezerra de boa raça para fazer criação. Começou por chamá-la, esperando que ela mugisse e a localizasse. O queijeiro também estava um pouco constrangido. No fundo, alguma responsabilidade havia do seu filho, nada habituado à vivência de uma quinta agrícola e pecuária.

Com os brados, outros vizinhos se juntaram à procura da vitela. Dividiram o grupo em três equipas e partiram em direções próximas daquela em que ela desaparecera. O miúdo ficou em casa com a mãe a ouvir os chamamentos das buscas, para os lados da zona florestal.

Passadas duas horas, chegou o pai. Vinha alterado. Não disse o que tinha acontecido. Não disse se tinham ou não encontrado a bezerra, nem o destino que lhe tinha sido dado. Certo é que a novilha não voltou à cerca. Pegou na espingarda e saiu, dizendo que ia dar uma voltinha à caça; para desanuviar, certamente. Menos de um quarto de hora depois, ouviram-se dois tiros bem próximos. Ele não costumava encontrar coelhos tão perto de casa, mas parece que desta vez tinha tido sorte.

Não; com a irritação, tinha acertado numa das cadelas. Coitada, entrou a ganir baixinho e a tremer, largando pingos de sangue de vários pontos da pele, e foi tentar encontrar alívio junto ao lume. Mas via-se que estava em sofrimento. O homem que numa só parte da manhã tinha tido um filho aleijado, uma vitela perdida e uma cadela chumbada saía e entrava em casa, visivelmente desnorteado. O peso do irremediável oprimia, uma e outra vez. Por fim, deve ter tomado uma decisão. Pegou novamente na espingarda, dirigiu-se para a porta e chamou a cadela ferida. Todos sabiam o que se seguiria. Mas antes de sair, parou, virou-se para o miúdo e convidou, a voz doce:

- Anda! Queres vir? Anda!

O miúdo abanou a cabeça, receoso do que lhe passou pela cabeça.

Mas, talvez o pai quisesse apenas fazer a pedagogia da dureza da vida, mostrando-lhe como a sua insensatez provocara a morte de uma cadela. Ou tivesse decidido, enfim, pôr-lhe nas mãos uma arma a sério. O mais assustador era o tom suave, amoroso mesmo, que não era muito comum no pai, muito menos nas últimas duas horas.

- Anda!

- Então, ó Domingos, deixa lá o menino! - à mãe também não passara despercebido o perigo. - Não vês que é uma criança? Vai, vai-te lá embora!

O pai saiu. De ouvido atento, o miúdo esperava o estampido a todo o momento. Sabia perfeitamente o que estava a acontecer. Imaginou a cadela a olhar para o dono, dono a quem servira lealmente, de espingarda apontada para ela.

«Podia ser eu» - atreveu-se a pensar. Ser ele a ver os enormes olhos negros da espingarda de dois canos a mirá-lo.

Um tiro, um só tiro se ouviu. O inevitável cumpria-se.

Joaquim Bispo

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Este conto foi selecionado para a 50ª edição (março/abril de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 103 a 106):

https://drive.google.com/file/d/1D4CESBS7a_MnIytdx0aLq8TXT42Bt9c_/view

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Imagem de IA.

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10/03/2025

O eremita

 


Na manhã em que foi anunciado o fim das medidas de confinamento social, Jerónimo cortou a barba. Ao fim daqueles meses, já começava a dar ares de monge do deserto. Teve dificuldade em concentrar-se na tarefa delicada de rapar a cara, com tanto barulho na rua. Ouviu-se um estrondear de foguetes. O leão estremeceu, inquieto.

Antes de sair, meteu um bocado de pão rijo na boca. Largara-lho, havia dois dias, a pega que vinha aliciando com as larvas que lhe iam aparecendo na despensa. Na rua, foi metralhado pelo ruído infernal de buzinas e carros em alardes de escape. Os passeios iam cheios, como se o perigo de contágio tivesse desaparecido. Parecia que tinha vindo gente de todo o concelho. Abraçavam-se aos magotes, em amizades inesperadas. Bem lhe apetecia apertar a roliça do prédio em frente, que, de uma janela para a outra, o tinha ajudado a acalmar o leão, nos negros tempos do confinamento radical, mas retraiu-se. Sentia-se trôpego.

No meio da multidão, muitos pareciam tolinhos, a lançar olhares para todos os lados, deslumbrados, como se nunca tivessem visto prédios, carros e árvores. Paravam no meio da rua, boquiabertos e atarantados. Abriam os braços, riam, davam gritos estridentes ou roucos, cantavam.

Passou uma ambulância em marcha acelerada o som terrível da sirene fizera arrepiar muitos , mas, desta vez, foi aplaudida freneticamente.

Alguns vizinhos cumprimentaram-no; passou um bando animado que o abraçou efusivamente, sem que o conseguisse evitar. Os desconhecidos quiseram depois fazer uma espécie de dança tribal, mas Jerónimo, desconfortável, conseguiu afastar-se.

Manquejando um pouco, rompeu a multidão e atravessou a cidade em direção ao arrabalde, no trajeto mais direto para campo aberto. A um quilómetro dos prédios, conseguiu voltar a ouvir alguns chilreios, consolo natural que muitas vezes o salvara, no longo ostracismo imposto.

Por associação, lembrou-se do que o encaminhara para ali: as suas árvores, os quatros frágeis caules que plantara, antes da pandemia, numa zona de propriedade incerta no final desse caminho. Tantos quantos os ovos que tinha o ninho de cotovia que encontrara naquele dia que parecia tão longínquo. Temeu pelas suas plantinhas. Duas faias e dois cedros. Passara o tempo chuvoso e já tinham vindo muitos dias de sol intenso e grandes calores.

Em quarenta minutos, chegou à sua floresta pessoal. Quatro raminhos secos, sem folhas, separados entre si por quatro metros - qual mortífero distanciamento social -, era tudo o que restava da sua mais recente utopia. Então, só então, quebrou: foi incapaz de conter o choro. Depois dos meses de cárcere e ascetismo, o vírus dera-lhe a estocada mais dolorosa. Deixou-se ter compaixão de si. Soluçou, sentado numa pedra da berma do caminho, o rosto molhado apoiado nas mãos.

Passados uns minutos, uns piados fizeram-no levantar o rosto. Olhou em volta e avistou um pequeno bando de cotovias, no seu característico voo de impulsos e pausas no bater das asas. Correu à concha moldada na terra, sob uma ervas, onde vira quatro ovos havia tanto tempo. Vazio. Quis acreditar que os ovinhos se tinham transformado em cotovias e agora voavam, vivas e em liberdade. A pandemia matara muitas pessoas umas de morte corporal, outras de morte social , mas poupara o desenrolar normal da vida da Natureza.

Voltou para casa, apaziguado a sua caverna, como gostava de pensar. Agora havia que recomeçar. Dar oportunidade de vida a si e a outras árvores. Sem esquecer o leão, que estava mais morto que vivo.

Joaquim Bispo

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Uma versão deste conto integra a coletânea em papel (páginas 224 a 225) resultante do II Concurso Literário do Curso de Letras do Instituto Federal do Paraná — Campus Palmas, 2020.

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Imagem: IA.

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10/02/2025

A genética prática dos pastores

 


Abençoado! Um sentimento de bem-aventurança cintilava-lhe no íntimo. Desfrutar dos bens necessários, do respeito dos outros, de felicidade. Tudo isto Deus e a Igreja Dele trouxeram e providenciavam continuamente a Rúben, o atual nome de Amadeu Rodrigues.

Antes, tinha sido vendedor de seguros; depois, de apartamentos. Finalmente, um bendito dia, acompanhara um colega a uma sessão daquela Igreja. O amigo não o enganara: aquele meio prometia possibilidades imensas e não imediatamente percetíveis. Havia no entanto que aprender a Bíblia a fundo. O Livro sagrado era a origem, a ferramenta e o objetivo. Seguindo a Bíblia, tinha-se acesso a conhecimentos de todo o tipo, desde as grandes revelações das origens, às verdades da vida; desde a mediação transcendente do saber cósmico, ao domínio das pequenas atividades quotidianas. Rúben empenhou-se a fundo. Leu-a em poucos meses, em jornadas pela noite adentro. Frequentou sessões de aprofundamento, apanhou cada argumento a aplicar a cada questão mais polémica.

A ascensão na hierarquia foi rápida e prometedora. Habituado a interpretar sinais faciais e conhecedor de outras atividades que lhe tinham exigido capacidades de argumentação e de persuasão, em breve integrava a elite da Igreja. Fazia pregações memoráveis, citava partes da Bíblia, mostrava como ela continha, já há milhares de anos, grandes conhecimentos que, só mais tarde, os Homens pensaram descobrir, e já predizia muitas das descobertas atuais: a Bíblia indicava onde estavam localizados os poços de petróleo, chamando-lhe betume; antecipava claramente o submarino, com Jonas a viajar no ventre de uma baleia; e o avião, com Enoch a ser levado para os céus por um carro de fogo; profetizava as missões humanitárias, com o lançamento do maná; e os bombardeamentos, com a destruição de Sodoma e Gomorra. A seguir às prédicas, Rúben incitava os doentes e os mal-amados a pedirem ajuda ao Senhor, em paroxismos de aflição coletiva e algumas curas milagrosas. Por fim, pedia o dízimo, tão justo e necessário que até Moisés o colocara na Lei.

Se em tempos mosaicos o dízimo era dado em géneros, no século XXI mais valia que os aflitos da cidade não andassem carregados com verduras ou criação. O dinheiro transporta-se com muita facilidade e também com prontidão se separa nas quantias necessárias. Era o dinheiro que fazia viver e melhorar a Igreja do Senhor. E os seus ministros. Nem em tempos de especulação imobiliária o então Amadeu vivera com tal bênção económica. Habituou-se a boas refeições, primeiro, e depois a boa roupa e bons carros. De bem-aventurado era o seu estado de espírito.

Rúben nunca deu guarida a qualquer pensamento de remorso. Sentia-se a prestar um serviço — o mais importante —, trazer esperança ao coração dos desesperados. Pela vontade do Senhor. E como ele o fazia bem!

Como primeira prioridade, o Homem procura alimentar-se, sobreviver. Por vezes, consegue-o, em tal quantidade e com tal facilidade, que a anterior necessidade começa a ser soterrada pelos apelos do estado de abundância. Então, acumular, esbanjar, experimentar o exagero do luxo e da luxúria ganham foros de estilo de vida. Ah, a vertigem dos sentidos!

Cedo, Rúben percebeu que seria fácil obter sexo naquela mole de mulheres carentes e sugestionáveis. E bem percebia como era fácil estender o clima coletivo de carências individuais a um estado de espírito de ajuda mútua. “Temos de ser uns para os outros, neste mundo tão cruel.” “Temos de ver o que cada um dos nossos irmãos precisa.” “Eu preciso que o Senhor me ajude, mas, e eu posso ajudar alguém?” “Será que posso ajudar o meu irmão?” “O que é que ele precisa?” “O que é que eu posso dar, eu que recebo tanto do Senhor?” E, se não se via a aceitar intimidades com a maior parte daquelas mulheres, outras havia a quem podia abrir exceções e, solenemente sonso, aceitar o dízimo em géneros…

Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.” Dinheiro a rodos, sexo até à exaustão, o que faltava? Nada, ou quase nada.

A dica para o patamar seguinte veio de um simples programa de televisão sobre a vida selvagem. Naquela noite, mostravam-se técnicas de manha e embuste usadas por vários animais, para que os seus genes chegassem em maior quantidade e segurança à geração seguinte. Sentiu uma iluminação ao perceber como uma simples ave desenvolveu procedimentos de dissimulação e parasitismo, para que ingénuos casais de minúsculas carriças chocassem os ovos e alimentassem as crias de uma espécie bem maior: o cuco.

Hum, espalhar o seu sangue pela população, olhar a multidão de fiéis na sala da sua assembleia e saber que inúmeros deles eram seus filhos secretos, a crescer felizes e saudáveis, sem ter ele de se sacrificar nas prosaicas tarefas de levar bebés à vida adulta! Muitos bebés; muitos adultos, também eles a propagar o seu sangue. Era, sem dúvida, um patamar apetecível. Um cúmulo de vida.

Um pormenor, no entanto, parecia poder complicar esse intento: Rúben era o único ruivo, numa comunidade maioritariamente de cabelo escuro. Nada a que o Senhor e a sua palavra não pudessem fornecer solução. Pois não explica a Bíblia, no capítulo 30 do Génesis, como procedeu Jacó, certamente com a inspiração do Senhor, para obter vantagem na divisão dos rebanhos, quando quis terminar o contrato com o sogro, Labão, e afastar-se para terras mais a ocidente com mulheres, filhos, escravos e rebanhos?

Combinou com o sogro que ficaria com o gado malhado, enquanto o pai das suas mulheres, Lia e Raquel, ficaria com o de uma só cor — ovelhas brancas, cabras negras. Aceite o trato, Jacó colocou varas nos bebedouros, às quais tirara partes da casca. Quando os rebanhos vinham beber e as fêmeas eram aí cobertas pelos machos, ao emprenharem com os olhos postos nas varas às manchas vinham a ter crias malhadas. Pelo contrário, quando Labão quis um trato inverso, Jacó colocou nos bebedouros varas de uma só cor; e as crias passaram a nascer, maioritariamente, de uma só cor. Com este estratagema, obteve Jacó um rebanho muito maior do que o do seu sogro, para glória do Senhor.

Assim também Rúben esperava vir a ter um rebanho de filhos apreciável e não lhe era difícil imaginar-se um patriarca bíblico. Se Jacó, com duas mulheres e duas escravas tivera doze, quantos poderia Rúben vir a ter, com tanta mulher na comunidade? A Bíblia continha todo o saber do mundo, todas as soluções, para glória do Senhor e dos que O seguiam. Aí vinha ela de novo em auxílio do abençoado servo do Senhor.

A pregação de Rúben alterou-se subtilmente; passou a enaltecer a vida de família, a bênção de uma prole, a excelsa graça de continuar-se nos filhos. E passou a ser mais permeável a aproximações de irmãs menos apetecíveis, desde que em idade fértil. Só tinha dois preceitos incontornáveis: não usar preservativo, ou furá-lo previamente; e colocar sempre uma peruca negra, argumentando que queria assemelhar-se à figura do Senhor, tanto quanto possível. Se a técnica resultava com as ovelhas e as cabras de Jacó, com certeza que também resultaria com o rebanho do Senhor.

Muitas gravidezes depois, algumas das quais constituíam autênticas impossibilidades nas contas de cabeça das neo-grávidas, mas que Rúben se encarregava de encorajar, por serem certamente a vontade do Senhor, começou a perceber-se que estavam a nascer demasiados bebés ruivos. Surgiram dúvidas, interrogações, tentativas de explicação: Influxo transcendente trazido pelo inspirador pastor? Sinais de algum evento miraculoso? Alteração somática induzida pelo estado de beatitude alcançado no local santo da igreja?

«Não devem ter conseguido tirar da ideia a cor forte do meu cabelo», presumia Rúben.

Quando já se tornava difícil atribuir a singularidade capilar a causas metafísicas e antes que o seu rebanho em disparada o dizimasse, Rúben pediu à hierarquia transferência para a Irlanda, terra de ruivos, onde certamente seria mais fácil continuar a espalhar a palavra do Senhor e a aumentar a Sua Igreja.

Joaquim Bispo

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Este conto foi selecionado para a 49ª edição (janeiro/fevereiro de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 74 a 77):

https://drive.google.com/file/d/1fh5hAeuUcF0jpteUKb1telH9wyr5Kh3g/view

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Imagem:

Bartolomé Murillo, Jacó põe as varas ao gado de Labão, c. 1660–1665.

Museu Meadows, Dallas, EUA.

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10/01/2025

Fugas

 


O velho repisa, uma a uma, as escadas exteriores do lar de idosos, agarrado ao corrimão e, em passos miudinhos e hesitantes, avança pelo passeio afora. Vejo-o da minha janela, onde costumo postar-me para ter uma ilusão de contacto com o mundo. Não é uma visão invulgar, mas geralmente os velhos saem em grupo acompanhados por duas ou três funcionárias. Vêm apanhar um pouco de ar e de sol na pequena praceta ajardinada onde a autarquia instalou dois bancos de jardim. Creio mesmo que o lar se instalou naquele prédio por causa do esboço de jardim. Bem vejo que a diretora o mostra, quando uma nova família chega à procura de um lugar onde largar o familiar. Constatar que o lar até dispõe de um jardim sempre deve evitar alguns pruridos de consciência.

«Não sei. Parece a nossa rua, mas não tenho a certeza. Ela é que deve saber. Tenho de a encontrar. Não sei se disse que ia à mercearia. Talvez esteja ali à frente.»

Ver um velho a abandonar o lar sozinho espicaça-me a pouca curiosidade que ainda tenho. Estará a fugir? Ou só a espairecer? Tem ar de mais de oitenta anos, está de pijama, com um certo volume na zona da bacia, provavelmente uma fralda de adulto. Pesada, pelo aspeto. No seu passinho miúdo, já percorreu uns cinquenta metros, sem ninguém o travar. Olha decididamente para o início da rua, como quem leva um destino consciente.

«Era ali. Era ali a mercearia. Mas agora não está lá. Como é que isto aconteceu? Se calhar é mais à frente.»

Vejo-o parar e olhar em volta. Andará à procura de alguma coisa? Não andamos todos? Afasto-me da vidraça, para ele não me ver. Pouco depois recomeça a andar. A sua figura um pouco curvada de riscas azuis e cinzentas verticais não suscita a atenção de ninguém. Não passam carros, não há mais pessoas na rua.

«Deve ter ido ao pão. Se lá for antes de almoço, talvez a ti Quitéria ainda tenha. Pão de verdade, de quilo, bem firme. Senão, traz papo-secos...»

Bem faz o velho — pirar-se dali. Imagino que tenha sido bancário, ou empregado de balcão. Há nele qualquer coisa de solicitude. Imagino como se deve sentir desfasado do mundo. Cá fora, todos de olhos metidos no telemóvel, sem respeitar nada, nem ninguém. Lá dentro, só velhos de olhar parado, afundados em recordações. E funcionárias ríspidas e mandonas. Pirar-se, ir por aí afora, encontrar um pouco de coerência no mundo, um pouco de compaixão. Se calhar era o que eu devia fazer também. Estou aqui a fazer o quê? A espreitar a rua, a olhar para as árvores, para os automóveis que não passam.

«Não encontro a mercearia. Acho que vou já para casa. Ela já lá deve estar. Vou-lhe pedir pão com azeitonas — pão de côdea escura, azeitonas grossas retalhadas, a saber a sal.»

Uma funcionária já veio à janela espreitar. Tinha um ar apreensivo. Se calhar já deram pela falta do velho. Como a rua encurva ligeiramente, não conseguiu vê-lo, que já vai lá à frente. Voltou para dentro. Hei-de avisá-las ou deixo o velho escapar? A minha solidariedade vai para o velho. Talvez consiga alcançar o que deseja. Ele que goze uma réstia de ilusão de liberdade! E eu?

«É já ali a nossa casa. Parece, mas não sei bem; está esquisita. Está tudo diferente. Gostava que ela já lá estivesse. Ah, se me tivesse arranjado um pratinho de requeijão morno, com açúcar… Parece que já não o como há tanto tempo.»

E se fazem mal ao velho? É perigoso andar por aí. Não deve ter nada para roubar, mas nunca fiando. Há por aí muita malandragem. Maltratam só pelo prazer de ver sofrer. Se calhar ele ficava mais seguro no lar. Aonde é que ele vai, nesta idade? Agora foi abordado por dois tipos. Espero que não… Não; parece que estão só a conversar. A esta distância, não consigo perceber o que dizem.

O senhor precisa de ajuda? — pergunta um dos rapazes, estranhando as roupas e o ar atarantado do velho.

Simão Cordeiro dá pelo jovem, os seus olhos castanhos orlados de cinzento completam um rosto de desorientação e angústia. A voz sai-lhe sumida:

Quero a minha mãe!

Joaquim Bispo

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Este texto obteve o 1º lugar na modalidade Prosa em âmbito Internacional, no concurso Professor Mário Clímaco / 2019, da ALEPON — Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova — Brasil.

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Imagem: Fernando Namora, Árvores, 1964.

Coleção Casa-Museu Fernando Namora, Condeixa-a-Nova.

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10/12/2024

Uma nova casa para o Homem

 


A comunidade era constituída por doze vizinhos. Habitavam uma encosta suave e viviam de vegetais e de alguma criação. A água era a grande riqueza de que todos careciam. Em estações húmidas, uma única nascente alimentava a várzea. Escorria para uma charca a céu aberto e represava, enquanto a escuridão era vagamente atenuada pela luminosidade espetral que se escapava da imensa bola do planeta vizinho. Em tempos secos, era preciso pôr bestas potentes a puxá-la da fundura do poço adjacente à presa. Quando o Sol se fazia ver, a temperatura subia um pouco e era tempo de libertar a água retida. Seguia por uma levada ao longo de sete ou oito nek, onde se bifurcava. Como se bifurcava em cada um destes ramais secundários e nos seguintes, até atingir as doze leiras dos moradores.

A água era pouca, era sempre pouca. Nunca passou pela cabeça de ninguém um sistema de rega automática — um fluxo contínuo de água para todos ao mesmo tempo. Havia que compartilhá-la à vez. Um único vizinho recebia toda a água que a represa vertia e conduzia-a para a sua plantação. Durante uma lonk completa. Não eram precisos mecanismos complicados para medir o tempo; uma rocha a pique com doze furos fazia a medição com o rigor desejado. Cada vizinho sabia que, quando a luz solar batesse no fundo do seu buraco, era tempo de cortar a água ao vizinho anterior e conduzi-la para o seu campo. Quando a sua vez estava próxima, postava-se a vigiar a pedra da rega. Depois, partia em corrida até ao ponto de corte. Cada gota perdida para o vizinho constituía uma perda para as suas plantas.

Goji andava desconfiado. As tufae de Andi cresciam mais e com mais vigor que as suas. Goji suspeitava que o vizinho trapaceava o sistema. Talvez abrisse a água para si, em período de defeso comum. É certo que, mesmo que não houvesse sol, quando o olho vermelho do grande planeta Zois se mostrava, havia luminosidade suficiente para trabalhar no campo. Embora esse fosse um interdito aceite por todos. Mas há sempre pecadores. Eram conhecidos casos antigos de vizinhos que tinham violado a proibição e tinham sido violentamente sancionados. Talvez houvesse novo pecador na comunidade.

No período carmim seguinte, Goji saiu para os campos. A várzea de Andi estava deserta, mas esplêndida de viço, naquele lusco-fusco rosado. E que bem organizada estava! Talvez a rega nem precisasse de acompanhamento. Goji calculou que aquelas tufae teriam quase o dobro de altura das suas. Admiráveis. Lindas. Pareciam ter sido regadas há poucas lonk. Dirigiu-se para a distante pedra da rega ao longo da vala que abastecia Andi. Umas passadas dadas, percebeu que o rego parecia bem mais seco que a várzea. Voltou atrás e, aguçando o olhar, pôs-se a sondar todo o perímetro do campo de Andi. Nessa altura, uma sombra escureceu por momentos o solo. Voltou-se e avistou uma massa escura e arredondada que cruzava lentamente o céu em frente do olho de Zois, mas que desapareceu daí a pouco. Goji não conseguiu dizer-se o que seria. Sentiu um arrepio. Tinha as suas superstições. Mas o empenho em descobrir o que se passava com a várzea de Andi era mais forte. Pouco depois, descobriu um indício prometedor: um estreito buraco no chão, no limite do campo. Podia chegar água por ali. Mas de onde vinha? E quando?

Daí a várias lonk voltou o sol. Goji batucou fortemente o pote sonante — uma enorme talha de barro seco —, a pedir reunião da comunidade. Iniciada a assembleia, expôs as suas suspeitas e as razões para elas. Começou por ver censuradas as suspeitas e foi acusado de má vizinhança. Convencido dos seus motivos, reafirmou e enfatizou a questão. O grupo acedeu por fim a visitar a várzea de Andi e a verificar o buraco suspeito. O caso revelou-se grave. Depois de sondagens e escavações, ficou a perceber-se qual o esquema fraudulento de Andi: um tubo captava furtivamente um diminuto fio de água no início da levada, de cada vez que a represa abria, e era armazenado numa cisterna subterrânea. Quando se iniciava o período de escuridão e ninguém andava pelos campos, Andi abria essa cisterna para a sua várzea, que estava preparada para uma distribuição uniforme automática.

A descoberta gerou uma violenta resposta do grupo defraudado. O visado ficou lívido ao perceber que tinha sido exposto e as consequências que daí adviriam. Logo ali lhe tolheram os membros e arrastaram-o para a pedra da rega. Um julgamento sumário ditou ser a ela amarrado e açoitado com doze vergastadas de cada um.


A expedição a Europa não era a primeira. Várias outras tinham explorado os satélites de Júpiter, com especial atenção para os que apresentavam água. A de 1989 tinha sido especialmente fértil em dados geológicos, mas agora — 2032 — as preocupações eram de outro tipo: avaliar as condições de habitabilidade, quer de Europa, quer de Io, Ganimedes e Calisto, e iniciar a instalação da primeira colónia terrestre. Os outros satélites não pareciam ter dimensão nem características propícias para uma colonização em massa.

Seis cientistas rumaram a Júpiter — viagem dura, nunca tentada por missões tripuladas. Cinco anos durou a viagem, com rotação de períodos de semi-hibernação induzida. Por fim, à aproximação ao gigante gasoso, todos assumiram a vigília. Depois de umas semanas de órbitas a Júpiter, quatro partiram num módulo intermédio para orbitar Europa e só depois três fizeram a descida numa sonda independente. Todo o cuidado era pouco.

Pousaram a sonda numa zona predefinida, cujos registos indicavam presença de água. Havia esperança que essa provável água tivesse criado condições para o aparecimento de vida, ainda que apenas vegetal ou pré-vegetal. A zona situava-se na face sempre voltada para o planeta gigante, mas que naquela altura não estava iluminada pelo sol. Em coordenação com o membro que ficara em órbita do satélite, os cientistas iniciaram medições e registos. As condições apresentavam-se prometedoras: alguma água, sim, temperaturas baixas, mas não impeditivas de vida, algum oxigénio não biológico. Uns dias jovianos depois, decidiram a primeira saída.

Um casal de cientistas saiu, rodeado de cautelas. A gravidade é baixa, exigiu alguma adaptação. Durante uns dias, fizeram pequenas explorações locais, limitadas em tempo e extensão. Parecia possível a existência de vida. Redobraram cuidados, para perturbarem ao mínimo o que quer que pudessem encontrar. Aos poucos, alargaram a extensão da área explorada. Então, certa vez, ao atingirem o limiar de um vale, confirmaram emocionados o que constituía o objetivo daquela viagem: a existência de vida em Europa. Pequenas áreas planas mostravam-se cobertas do que parecia uma viçosa penugem vegetal. Claramente com acesso a água. Naquele momento de aperto na garganta, só os olhares brilharam, no isolamento relativo dos estanques fatos de exploração. Como conseguiram, comunicaram o achado à cientista, que, na sonda, atenta a uma miríade de pequenos ecrãs, já tinha intuído o que os companheiros tinham encontrado. Logo depois — quase os pisaram —, acreditaram estar perante uma incipiente forma de vida animal: uma dúzia do que pareciam minúsculos pulgões movimentava-se em volta de uma pedrinha pontiaguda, à qual um deles parecia amarrado. Cautelosamente, efetuaram registos visuais, bioquímicos e físicos preliminares, cientes do momento histórico que viviam. Umas horas depois, já a bordo da sonda, lançaram, solenes e orgulhosos, a novidade em direção ao Sol.

Hoje é um grande dia para a Humanidade! — proclamou a bióloga Jennifer, enfaticamente. Depois de uma pausa adequada ao momento, continuou: — Europa possui vestígios de água e revela-se propício à vida. Não devemos esperar encontrar formas de vida inteligente, mas registámos formas vegetais e animais, claramente, elementares... — nova pausa. — A colonização está ao nosso alcance! Um pequeno satélite nos confins do Sistema Solar, uma nova casa para o Homem!

A resposta da Terra, a mais de setecentos milhões de quilómetros, chegou hora e meia depois: um grito em uníssono da enorme equipa em rede protegida por máscaras. Em direto para todos os meios de comunicação mundiais. A ecoar em todos os lares em confinamento social. Um mesmo sentimento de comunhão fraterna e de esperança unia todos os homens. Não havia tempo a perder.

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos 22 selecionados para compor a coletânea “O Espantoso Mundo da Antecipação” da Elemental Editoração, Brasil, 2020.

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https://pt.scribd.com/book/464486683/O-Espantoso-Mundo-da-Antecipacao

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Imagem: Henri Matisse, O ramalhete, 1953.

Museu Hammer (Universidade da Califórnia), Los Angeles.

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10/11/2024

Cadeias

 

Em todos os tempos, ostentar ouro concedia estatuto, demonstrava sofisticação. O ouro de uma mulher do interior há 80, 70, 60 anos valorizava-lhe a beleza, conferia-lhe estatuto social, dava-lhe segurança, como a outra de qualquer época, mas também concedia a quase sempre ignorada liberdade económica da própria. O ouro de uma mulher, sobretudo aquele que ela trouxe de dote, era dela, era um bem a que podia recorrer, em último caso, para um desígnio pessoal. Um cordão podia ajudar um filho, às escondidas do marido; uns brincos de que já não gostasse podiam comprar uma peça de vestuário para levar a um casamento.

O ouro acompanhava-a, compondo uma imagem de si. Tendo-o por testemunha, vinham os filhos, vinha a labuta, passavam os bons e os maus momentos. O cabelo branqueava, vinham os netos, chegavam as doenças. Por fim, já nada interessava, nem o ouro. Só a viagem sem retorno ganhava o centro da angústia conformada.

Passam dias, passam meses, os filhos fazem as partilhas. Tentam equilibrar os valores, mesmo nas pequenas coisas. Dividem-se as roupas aproveitáveis, as loiças, os bibelôs. Muita coisa não tem préstimo, muita coisa se guarda por valor sentimental. A vida vai-se recompondo, sem a ausente. Ainda vem muitas vezes à ideia, enquanto viva; lembram-se os tempos penosos do hospital; quem foi prestável e atento, a tia mais nova que foi lá todos os dias e até ajudava a dar-lhe o jantar. Um deles põe a hipótese de presenteá-la com algo que pertenceu à morta, algo de algum valor, mas que seja sobretudo evocativo. Aquela pulseira dela, que lhe era característica, que aparece nas fotografias de solteira? Sim, sem dúvida; parece bem, parece mais que justo; resolvem dar-lha.

Inesperadamente, a tia não quer a pulseira, faz muita resistência a recebê-la. Começa a parecer exagerada tanta cortesia, a parecer estranho não querer ficar com uma lembrança da irmã. Finalmente, explica-se, conta uma história; a pulseira tem uma história secreta.

Não te lembras que eu era muito enfermiça desde pequena? Qualquer corrente de ar me deitava à cama. Desde a minha terceira classe até ser já quase adulta, eu era muito fraca dos brônquios. Quase que não podia sair de casa. Então a tua mãe, a ver-me assim, e a ver a tua avó a ficar cada vez mais velha — algum dia a não poder dar-me proteção —, acho que fez uma promessa a Nossa Senhora: que, se eu ficasse boa, lhe dava uma pulseira de ouro, esta mesma.

O sobrinho surpreende-se, não sabe desta história. Parece-lhe que tem um resquício de memória, uma miragem incerta, mas foi há muito tempo: a maior parte das recordações desvaneceu-se. Quer saber mais, os “quandos”, os “comos” e os porquês. A tia não se retrai:

Não sei que idade é que eu tinha quando ela fez a promessa, mas o que é certo é que aí pelos dezanove anos passei a andar sempre boa, tanto que fui fazer o segundo ano, nas freiras, e depois o Liceu, quase sempre dois anos num. Então a tua mãe, vendo que eu estava boa de vez, dispôs-se a pagar a promessa. E deve ter falado disso numa matança do porco. Então a tia Ana disse que o ouro é do melhor que uma mulher tem e que não deve desfazer-se dele. Que, se calhar, a tua mãe podia pagar a promessa em dinheiro. «Vais ao ourives, perguntas-lhe quanto é que vale a pulseira — podes mesmo explicar-lhe o caso — e dás esse valor à Nossa Senhora.» Ora a tua mãe ficou a pensar naquilo, mas tinha medo que a promessa não ficasse paga. Então foi-se confessar e perguntou ao padre se podia fazer assim, como a tia Ana tinha dito. E o padre disse que sim, que o que contava era o valor da promessa e a vontade de a pagar. E foi isso que a tua mãe fez. Portanto, estás a ver, eu não posso ficar com esta pulseira, não quero.

Mas porquê, tia? A promessa foi paga; é como se tivesse sido dada a própria pulseira. Outra como esta.

Mas eu sei que esta é que foi prometida. É como se eu estivesse a aceitar o pagamento devido à Nossa Senhora.

O sobrinho calcula que ela terá medo de voltar a ter os achaques da juventude, por via da pulseira recebida: ela tinha sido beneficiária uma vez; ser beneficiária duas vezes deve parecer-lhe um abuso, quase uma blasfémia ou um pecado.

Tia, não é como se estivesse a usar o que lhe não pertence; seria antes honrar a memória da sua irmã — argumenta.

Ela acaba por aceitá-la, mas passados uns dois anos volta a tentar devolvê-la. Com tanta veemência que o sobrinho a recebe de volta.

Que fará ele com aquela pulseira, aquele objeto mediador do amor fraternal de sua mãe pela irmã dela? Não precisa do dinheiro, felizmente, mas, mesmo que precisasse… Pergunta-se qual o significado profundo da pulseira de ouro. Lembra-se, então, da ideia tradicional: o ouro de uma mulher é a sua liberdade económica pessoal. Pensa: “a pulseira é da mãe, sempre foi; ela que decida qual o caso ou o momento adequado para ser usada. E por quem”.

Manda escavar um estreito sulco na parte posterior da moldura com o retrato da mãe, que tem na sala, e esconde lá a pulseira. Um dia, ele ou alguém decidirá retirá-la. Para o que decidir. Ou que pensar que decidiu.

Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados no concurso literário da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (Bunkyo) de 2018 para integrar uma coletânea literária.

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Imagem:

Topa Topera (Tiago Estrelinha), Mural dedicado à mulher da Nazaré, 2022.

in Jornal das Caldas, 24 de Fevereiro, 2022.

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10/10/2024

O desconhecido

 

As nuvens adensam-se, o céu escurece, corre uma brisa fria e desagradável. É meio da tarde, o grupo prossegue pelo caminho rural em passo apressado. A cavaqueira de há bocado deu lugar ao silêncio; só o farfalhar da areia a ser esmagada pelas pisadas enche o ar. Mário segue no fim do grupo de seis pessoas, embrenhado nos seus pensamentos. Está a caminho de Fátima, nem sabe dizer porquê. Talvez porque se sente perdido num mundo que já não reconhece, talvez porque os vizinhos o desafiaram. Lá à frente, a uns trinta metros, segue Adelina, a líder, mulher de uns sessenta anos, rude e vigorosa. Já fez esta viagem muitas vezes; é quase uma rotina sazonal. Desta vez arrastou a sobrinha Vanessa, que anda com problemas com o namorado, e Beatriz, outra vizinha da sua geração, cujo homem está para a França e há quatro meses que não dá notícias. Partiram pelas 5 da manhã da sua aldeia da zona do pinhal, perto de Oleiros. Já devem ter andado mais de trinta quilómetros e começam a dar sinais de cansaço. É muito para o primeiro dia.

Há uns quilómetros que Mário pressente uma névoa no trilho ao lado do seu. Não é uma sombra, só a incerteza de uma miragem. Pouco depois torna-se mais densa e acaba por se materializar, inteira, caminhando. Parece um ancião, de cara esquálida enquadrada por um capuz branco. Será mais um peregrino que alcançou o grupo? Mário repara que todo ele veste de branco. Sem sombra, sem ruído.

Mário já viu muita coisa, está muito recetivo a visões, a ilusões. Caminha e espera. Caminhar, naquele ponto da viagem, já é automático; não se deixa perturbar pelos pensamentos. Os pés caminham, arrastando pó e areia. O desconhecido parece agora uma pessoa como as que o precedem, mas Mário pressente que não. Pressentir, intuir, é uma forma de conhecimento.

Já? — lançou, em tom dorido, ao desconhecido.

Este olhou-o no fundo dos olhos, com um olhar quase meigo.

Em breve!

Lá à frente, Adelina começou a puxar pelo grupo com uma canção de hossanas à virgem. Mário caminhou ainda um quilómetro, antes de ripostar ao estranho:

Podes dizer-me antes o que há do lado de lá?

Nada te posso dizer; sou apenas um arauto, um mensageiro.

Não sabes ou não queres dizer?

Eu nada sei.

Se nada sabes, porque apareceste agora? — impacientou-se o humano.

Eu não sou exterior a ti. Convivo contigo desde sempre.

Mário calou-se a ruminar na resposta. Estava cansado. Nem sequer lhe interessava falar agora. Em breve chegariam à Sertã e poderia descansar.


O trajeto está todo apalavrado. A pensão da Sertã é limpa e agradável. Mário atirou-se para cima da cama e ferrou logo no sono, mas o companheiro de quarto, um madeireiro de uns cinquenta anos, chamou-o e convenceu-o a tomar um banho e a comer qualquer coisa antes de se deitar.

Depois de um jantar ligeiro, o grupo reuniu-se numa pequena sala de convívio, com televisão. Os ânimos tinham melhorado, com o tratamento de bolhas em alguns pés e a previsão de umas horas de sono descansado.

Queres jogar xadrez? — perguntou o desconhecido de branco, ao seu lado, frente a uma mesinha com um tabuleiro e as peças alinhadas.

Não me apetece! — respondeu Mário, sincero. — Não tenho cabeça para isso. Preciso de mais tempo para saber mais. Se tu não me dizes o que há do lado de lá… Ou é só uma escuridão vazia? Existe lá uma entidade que justifique os preceitos éticos e morais que nos são exigidos e faça a triagem lógica entre bons e maus, algo que torne o sistema entendível e aceitável pela nossa mente? Porque se nesse desconhecido não existe mais que o nada, a vida redundou num absurdo trágico. Agora só consigo pensar que preciso de mais tempo.

O tempo não está marcado, mas tem de ser cumprido. Ouve, tenho uma proposta: se me venceres, prorrogamos a concessão por uns dias. Se perderes...

Por uns dias… Isso é de uma grande injustiça! Porque és irrevogável? Porque é que ninguém consegue um prolongamento dos seus anos, ninguém pode acabar o que deixa inacabado, ninguém consegue esconder-se ou furtar-se deste encontro funesto? Porque é que não se pode saber se há algo para lá dessa fronteira? Porque é que ninguém tem respostas, ninguém regressa para contar?

Fazes tantas perguntas...

Porque é que velhos e novos, ricos e pobres, humildes e poderosos, todos são obrigados a submeterem-se a ti? Porque é que nenhum vivente te escapa?

Também se chama mortais aos viventes…


A noite de Mário não foi das melhores. Estava cansado, mas agora não conseguia dormir. Passavam-lhe pela lembrança alguns achaques recentes: incómodos abdominais frequentes, dores de cabeça intensas que duravam pouco, taquicardias e sensações de morte iminente durante a noite. Mário concluiu que já não devia durar muito. Nem os seus 83 anos auguravam outra coisa. Costumava convencer-se de que já não tinha pena de morrer — já cá andava há muito tempo, já tinha o papinho cheio de boas e más experiências, de vida. Custava-lhe, de qualquer modo, não saber muitas coisas do mundo. E, de cada vez que pensava nisso, sempre achava que era uma enorme injustiça. Tantos anos a aprender o funcionamento do mundo e das pessoas e agora… Porquê? Para quê? Que lógica é que havia nisto tudo? Haveria alguma entidade a tomar conta da máquina do mundo? Ou tudo não passava de acaso?

Na outra cama, o seu companheiro de viagem roncava, a sono solto.


A alvorada foi às seis. Os olhos de Mário mantinham-se papudos, mal refeitos com as três ou quatro horas em que o cansaço vencera a sua mente agitada. Daí a meia hora, depois de um pequeno almoço apressado, todo o grupo estava em marcha, agora por estrada de alcatrão. Caminhavam em fila, pelo lado esquerdo da via, por causa dos carros. Mário continuava atrás. Daí a um bocado juntou-se-lhe o peregrino de branco.

Pode ser hoje? — indagou, cortês.

Mário não respondeu logo. Havia um turbilhão de perguntas em disputa.

Deixa-me chegar a Fátima. Talvez a nossa senhora interceda por mim. — Pareceu-lhe que tinha transparecido medo e corou. — Há deus, não há?

Faz diferença?

Deve haver; senão, porque se mantém ele como realidade desconcertante no nosso íntimo, apesar de todos os esforços para o extirparmos em nós?

Eu nunca o vi.

Será possível que esta indelével impressão íntima não passe de um mecanismo mental gerado pela evolução, que se revelou vantajoso, por nos tornar a vida suportável, ao fazer-nos acreditar que uma entidade toda-poderosa comanda o mundo e que a vida tem um sentido?

É possível...

É uma grande ironia, se não há deus. E uma grande maldade se há. A maldade começa com o facto de ele se esconder num misto de promessas meio-formuladas e recompensas improvadas. E de não responder. Se o único juiz que pode ou não confirmar o acerto das nossas escolhas, das nossas ações, não responde, instala-se a dúvida, a suspeita de que pode ser tudo uma gigantesca farsa. Qual seria então a razão disto tudo?

Essa lógica é humana — querer que tudo tenha um sentido.

Como é que pode ser de outra maneira? As pessoas têm de encontrar um sentido no que fazem. É da sua natureza. Esforçam-se por acreditar em deus, mesmo nunca o vendo, nem obtendo qualquer resposta às suas tentativas de comunicação. Sabem por experiência que não é possível acreditar, não acreditando. E mesmo acreditar não satisfaz o nosso entendimento. Gera uma indessedentável vontade de verdade que formule as questões e dê as respostas de maneira leal, sem subterfúgios, sem falsidades. Nessa demanda se vive. Por que não responde ele às nossas perguntas?

Talvez seja surdo ou mudo; talvez esteja noutro lado. Talvez não exista.

Oh, deixa-te de evasivas! Queres fazer-me acreditar que toda esta máquina de ilusão funciona e que tu és a única entidade real nela?

Eu, pelo menos, sou evidente e incontornável.

E se eu não acreditar em ti? Talvez deixes de existir. Alguns velhos teimosos gostam de dizer que nada ainda lhes provou que não são imortais.

Até que nos encontremos…

Oh! Não se pode falar contigo.

Mário sentiu-se, mais uma vez, por sua conta, exclusivamente. Sem apoios físicos, sem bordões ideológicos. Vasculhar os limites das grandes questões do ser e só encontrar silêncio e incerteza trouxe-lhe a mesma angústia da criança que acorda e se encontra só no negrume da noite.


A dureza das jornadas parece que vai deitar abaixo os que se atrevem a enfrentar tantos quilómetros, mas o corpo tem essa capacidade de reação, de adaptação, que o enrijece e o leva a suportar com mais facilidade o esforço. O grupo manteve-se unido e motivado nos dois dias que ainda durou a caminhada.

Então, ti Mário, aguenta-se até Fátima? — brincou Adelina, logo à saída de Ferreira do Zêzere. — Hoje a estrada é melhor!

Então, não havia de aguentar, Adelina? Antes de ser professor primário, fui carteiro. Calcorreei muitos quilómetros de serra.

Vejo-o tão calado...

Também nunca fui muito reinadio!

O velho de branco não deixou de comparecer ao encontro, mas Mário não se atemorizou com a ameaça implícita e o seu corpo enviava-lhe mensagens de satisfação física, cada vez mais encorajadoras. Parecia-lhe que quanto mais andava menos debilitado ficava. Se o desconhecido quisesse apunhalá-lo à traição, era com ele, mas Mário acreditava que até uma entidade destas tem alguma ética.

Os últimos quilómetros foram de andamento frenético. Toda a gente ansiava por concluir a jornada o quanto antes. Só se ouvia o arfar da respiração apressada. O estranho parecia apresentar algumas dificuldades para acompanhar o grupo. O primeiro indício foi um atraso tão ténue como o de uma passada, mas um quilómetro mais à frente já se atrasara uns dez metros. Ao aperceber-se disto, Mário esboçou um sorriso de tal maneira contido que o desconhecido não se teria apercebido dele, mesmo que ainda caminhasse ao seu lado. Quando mais à frente olhou para trás, só vislumbrou uma esparsa névoa, em vez de um ancião esquálido de branco.


A entrada no recinto principal do santuário gerou no grupo um clima de euforia e exaltação. Tinham conseguido, tinham-se superado. Abraçaram-se emocionados, improvisaram mesmo uma dança de roda, num estado potenciado pela grandiosidade do espaço e pela desmesurada multidão ali presente. Até Mário se manifestou falador e sorridente. Sentia-se revigorado e tão confiante como se tivesse ganhado uma segunda vida.

A poucos quilómetros, uma névoa esbranquiçada de forma humana, parecendo sentada sobre uma pedra da berma da estrada, resolvia mentalmente um problema de xadrez, enquanto esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Joaquim Bispo

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Este conto foi apresentado pela primeira vez na Festa do Livro do Centro Artístico Albicastrense uma organização conjunta com a Alma Azul , em 26 de julho de 2018, pela voz de alunas da USALBI (Universidade Sénior Albicastrense).

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Uma versão reduzida do mesmo foi selecionada para a 46ª edição (julho/agosto de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 85 a 88):

https://drive.google.com/file/d/1UQGefU6vzogEa772pS6q2EiAiDTRlSfX/view

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Imagem: André Dinis, Muzinga (capa de livro de banda desenhada), 2024.

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