Fernando
Nunes tinha a certeza de que as forças encobertas não deixariam
passar aquela ocasião, não iriam ignorar aquele descuido fatal da
sua segurança. Morreria nesse dia e sabia como, só não sabia de
onde surgiria o golpe decisivo.
Não
era supersticioso. Ou, pelo menos, achava que não era. Aliás, fazia
questão de mostrar que não ligava a gatos pretos, nem se inibia de
abrir guarda-chuvas em casa ou de passar por baixo de escadas. É
certo que o fazia com algum acinte e esforço de racionalização.
Sabia perfeitamente que certas superstições radicavam em sabedoria
prática, que tinha degenerado em norma dogmática de difícil
justificação e muito pouco questionamento. Usava, no entanto, de um
cuidado redobrado nessas situações potencialmente nefastas. Agora,
o caso era perigoso.
Esse
esforço de racionalização vinha já da infância e da juventude.
Então, muitas vezes se sentia compelido a contar os passos entre
dois pontos da rua. Se errasse por muito, sentia-se ameaçado. Como
se sentia em transgressão, se pisasse alguma separação dos blocos
de pedra de alguns passeios mais nobres. Tinha de fazer um esforço
para decidir que nenhum perigo advinha se errasse o cálculo ou se
pisasse alguma dessas separações, mas continuava o jogo mental, ao
mesmo tempo lúdico e sinistro, com as entidades que tudo veriam e
estariam certamente atentas às suas falhas. Era uma ameaça mais
intuída que percebida, com origem indeterminada, mas obviamente
sobrenatural. Nunca as vira, mas sabia que estavam sempre lá, a
espiar-lhe os movimentos, a julgá-lo.
Certa
vez, num teste vocacional da adolescência, um psicólogo
apontara-lhe uma personalidade esquizotípica. O relatório falava em
crenças estranhas e pensamento mágico influenciando o
comportamento, fuga da realidade e ruminações sem resistência
interna, mas não ligou muito nem ficou preocupado, porque pressentia
que tudo correria bem se fosse cuidadoso.
Naquele
dia, Fernando fora descuidado. E os descuidos podem ser ciladas das
forças obscuras. Sabia-o e temia o que aí vinha, necessariamente.
Os apaziguamentos de racionalidade chocavam com o perigo da situação.
Que parecia simples e prosaica. E, no entanto, continha um alto grau
de ameaça.
Qual
era a situação? Não tendo encontrado em qualquer estância de
materiais, em Lisboa, as placas de fibra de madeira, da largura que
necessitava para construir o interior de um roupeiro, na sua casa na
terra, mandou cortá-las numa grande superfície de Santarém.
A
satisfação por ter conseguido encontrar o que necessitava deu lugar
a uma grande apreensão, ao perceber que não conseguia acomodar as
placas maiores na bagageira do seu carro, mesmo dobrando os bancos
traseiros. Como bom suburbano, resolveu alojá-las no lugar do
“pendura”, com o banco um pouco reclinado.
Percebeu
logo o perigo que tais placas, à solta no habitáculo do carro,
representavam, em caso de acidente. Com as suas massa e inércia,
deslocando-se abruptamente no mesmo espaço que ele, seriam como
cutelos cortando carne num talho. A decapitação seria o resultado
mais piedoso.
Sentiu-se
ridículo, ao apertar o cinto de segurança ao grupo das quatro
placas de um metro e setenta. Imaginou o sarcasmo das forças
emboscadas nos meandros das subtilezas sobrenaturais: tesas, as
placas lembravam um esqueleto a seu lado.
Tomou
a A1, a caminho da Mealhada, com o coração apertado. Havia que
fazer um plano, para minimizar as hipóteses de intervenção das
forças obscuras. Havia que manter uma velocidade moderada, para
baixar as possibilidades de acidente, por pneu rebentado ou despiste.
Havia que evitar uma velocidade demasiado baixa, para não ser
abalroado. Muito tenso, mas atento, ia tomando consciência dos
quilómetros percorridos ― perigo passado ―, mas apreensivo pela
enorme distância a percorrer.
Olhando
pelo retrovisor, a dezena de carros que avistava pareciam-lhe uma
matilha em sua perseguição. Algum deles podia estar tomado pelo
inimigo. Podia embater no seu carro, violentamente. Ou podia,
simplesmente, dar-lhe um pequeno toque lateral. Seria o suficiente
para o carro entrar em descontrolo e dar meia dúzia de cambalhotas.
Nem queria pensar no que aconteceria dentro do habitáculo.
Depois
de Fátima, um camião lá à frente em marcha mais lenta podia ser a
barreira contra a qual seria encurralado por aquela carrinha compacta
que vinha lá atrás, em alta velocidade; mas passou. Ao ultrapassar
o camião, Fernando viu os cilindros metálicos. Podia ser agora: os
tubos soltarem-se e invadirem a estrada ou mesmo caírem-lhe em cima.
Passou. Pareceu-lhe ouvir um zumbido na zona do pneu dianteiro
direito. Um rebentamento seria fatal. Era agora? Abrandou um pouco.
Perto
de Pombal, tentou fazer um exame de consciência: afinal, como tinha
conduzido a sua vida?; merecia ser castigado? Claro que sim! Tantas
vezes fora reles e perverso, tantas vezes tratara mal as outras
pessoas, tantas vezes fora pouco honesto. Sim, certamente seria
castigado. Mas, morto? Sentiu pena de deixar de viver já. Tinha
ainda tantos planos, tantas coisas mal resolvidas. Viver era tão
bom. Gaita! Sempre suspeitara de que era demasiado bom para durar.
Deve haver sistemas de reequilíbrio no Universo.
Apesar
do veredito, decidiu ir à luta. Iria continuar com a condução
defensiva e estar atento a todos os tipos que mudassem de direção,
sem fazer piscas.
Como
que reagindo ao seu desafio, um nevoeiro progressivamente mais
compacto formou-se, ao passar nos vales baixos próximos de Condeixa.
Agora nenhuma precaução podia salvá-lo. Ligou máximos, ligou
luzes de nevoeiro e os quatro piscas, tentando fazer-se ver, já que
não enxergava mais do que uns quinze metros à sua frente. As mãos
ferravam-se-lhe no volante, os olhos no nada da estrada, e sempre
controlando o retrovisor. Em vão. Sem referências de nenhum tipo,
parecia ter passado para outra dimensão, uma dimensão que não era
deste mundo. Esperava o embate a qualquer momento. De que é que
estavam à espera? Uma enorme tristeza invadiu-o. Sentiu que não
podia nada contra estes inimigos.
Uma
dezena de quilómetros depois, o nevoeiro esfumou-se de um momento
para o outro. Passou Coimbra e começava a acreditar que talvez se
safasse. Se calhar, os traiçoeiros tinham mudado de ideias. Ou
estariam a fazê-lo acreditar que estava a salvo, para então lhe
aplicarem o golpe fatal e se comprazerem com a surpresa no seu rosto?
Já
depois da Mealhada, teve de tomar as estreitas e sinuosas estradas
para a sua Antã da Serra, no meio da serra do Buçaco. Ali, as
velocidades eram diminutas, mas a probabilidade de um choque ou uma
saída de estrada era bem maior. Devia ser agora. Pareceu-lhe que as
tábuas já se moviam nas curvas. Sentia outra vez uma nostalgia do
que ia deixar. Como era belo o mundo. Aquela serra era gloriosa. Que
pena ir embora agora. Se calhar, tinha de ser.
Mas
não. Para grande espanto seu, chegou a casa sem qualquer percalço,
sem qualquer mazela. Manteve-se ao volante, no carro parado,
envolvido pelo silêncio local, tentando equacionar a situação.
Como era possível? Tanta tensão, tanta concentração nas últimas
duas horas e o terrível clímax não surgira. Obviamente, tinha sido
agraciado com mais uma vida. Agradeceu mentalmente, por descargo de
consciência, não sabia a quem. Só o zumbido nos ouvidos e alguns
estalos do motor a arrefecer lhe responderam. Aliviado,
racionalizando o caso, concluiu que não havia razão para ser
supersticioso. Mas tinha de ter mais cuidado.
Joaquim
Bispo
*
Por
seleção em concurso literário, este conto integra — páginas 192 a 194 — a antologia “Adentre-me – O Almanaque do Suspense” da
Editora Jogo de Palavras, em 2019: https://www.jogodepalavras.com/antologias
*
Imagem:
Agesandro, Atenodoro e Polidoro (cópia atribuída), Grupo de
Laocoonte, c. 27 dC.
Museus
do Vaticano, Roma.
*
* *