O
meu nome é Lobulfo, chefe do clã dos Mamutin. Falo-vos do fundo dos
tempos, na vossa linguagem artificiosa, para que me entendais. Sou
filho de Ursácuo e de Bagulfa. Dela, mal me lembro, porque morreu
com um filho preso no ventre, ainda eu era criança. Sei que fiquei
muito triste. Construímos-lhe o útero de regresso com grandes
pedras, numa pequena elevação junto à aldeia de então e
completámos o ventre com muita terra a fazer um monte redondo. Fui
criado pelas Grandes Mães. Vivo com o meu povo no centro do mundo.
Seguimos as manadas de bisontes, auroques e cavalos e instalamos a
nossa aldeia de cabanas redondas junto aos vales onde pastam. Fazemos
um círculo largo com as cabanas dos caçadores. Dentro, erguemos as
das mulheres e crianças. Ao centro, perto do totem, a minha, que era
do meu pai antes de ele partir.
Lembro-me
dele muitas vezes. Ensinou-me tudo o que eu sei. Ou quase. Uma das
primeiras coisas de que me lembro foi de endurecer a ponta de uma
lança ou de uma azagaia, nas brasas de uma fogueira. Isto foi depois
de eu deixar de andar com as mulheres a apanhar bagas e raízes.
Passei a aprender a ser caçador. Ensinou-me como se prendem as
pequenas lascas de sílex às azagaias e como estas se preparam para
ficarem equilibradas. Nessa altura já caçava pássaros. Quando eu
já vivera tantas primaveras quantos os dedos de ambas as mãos,
ensinou-me a preparar uma lançadeira, escavando a ponta de modo a
que a cauda da azagaia lá fique bem apoiada e possa ser arremessada
com força, quando o braço descreve um arco veloz na manobra da
lançadeira. Depois, veio a parte delicada de separar finas lâminas
de um bloco de sílex, com pancadas precisas, para usar como
cortadores vários e pontas de lança. Finalmente, as artes da caça
grossa e os seus perigos. É um trabalho conjunto que o meu pai
liderava e que implica manobras de separação de dois ou três
animais da manada e uma perfeita coordenação, para que eles,
assustados pela algazarra dos caçadores, corram espavoridos e se
precipitem num barranco ou num fosso preparado com antecedência. É
um momento de grande alegria, em que agradecemos aos animais, com
danças, por nos darem a sua carne. Depois, desmanchamo-los, trazemos
os bocados para a aldeia, comemos o que queremos e pomos o resto na
cabana do fumo.
Quando
me sento sobre uma rocha a observar uma manada a pastar no vale, com
a montanha branca em fundo, sinto uma enorme gratidão ao Grande Pai
Sol, à Grande Mãe Terra, e aos seus filhos animais que nos dão a
força da vida. A cada primavera, chegam os cavalos e os auroques,
vindos do lado do sol. Quando as folhas começam a cair, vão-se
embora, e regressam as renas e os bisontes das terras geladas. Sempre
assim foi e sempre assim será.
Certa
vez, quando eu era novo, já os ventos havia muito sopravam glaciais
no vale vazio, o meu pai temeu que
não houvesse mais bisontes. Consultou o xamã e decidiram fecundar a
Terra para que nascessem novos bisontes.
O
xamã tem muita magia. Se uma mulher não emprenha, ele esculpe uma
pequena estatueta feminina de ventre pejado e seios repletos, em
madeira ou em pedra, e coloca-a na cabana dela, enquanto executa
danças e cantos propiciatórios. Quase sempre o ventre da mulher
acaba por crescer, como o da estatueta.
O
meu pai levou-me com eles. Na primeira noite, como o abrigo na rocha,
que o xamã tinha previsto, estava ocupado por um grande urso,
tivemos de dormir em cima de uma árvore. Foi a noite mais
difícil da minha vida. O frio era intenso e eu temia que,
adormecido, tombasse da árvore. Demorámos três sóis a chegar à
grande vulva da Terra, na base do ventre de uma montanha. Dela, saía
um riacho de águas frias. Penetrámos junto à margem e fomos
avançando para o interior, com a ajuda de um archote. Andámos por
largo tempo, tentando chegar ao mais fundo da montanha, receosos do
que nos pudesse acontecer. Finalmente, chegámos a um grande espaço,
como se fosse uma enorme cabana de pedra, de teto baixo e quase
plano, e que não tinha mais nenhuma ramificação. O xamã concluiu
que tínhamos chegado ao útero da Terra. Então, abriu os surrões
onde trazia terra vermelha, terra amarela, cinza de osso, e cornos
cheios de gordura de bisonte, e começou a misturar as terras e a
cinza com a gordura, fazendo mistelas coloridas. Depois, queimou
ervas especiais que trazia e começou a dançar, enquanto inalava o
fumo inspirador, até que se quedou, de costas no chão, mirando
alucinado o teto da grande cabana de rocha. Algum tempo depois,
começou a pintar dois bisontes, aproveitando as saliências da rocha
para fazer sobressair os bojos dos ventres e as massas musculares.
Usava a mistura negra para fazer os contornos dos animais. Fazia-o
com toda a atenção, avaliando se cada traço correspondia ao
desenho geral que o espírito da Grande Mãe lhe sugeria. Pintava sem
pressa, porque o tempo tinha parado. De quando em quando, comíamos
carne seca. Eu entretinha-me a admirar a magia do xamã, que fazia
nascer e crescer os bisontes, e a imitá-lo. Lembro-me de espalhar um
resto de vermelho em volta da minha mão, que ficou marcada contra a
parede de rocha. Por fim, os bisontes pintados estavam vivos e
moviam-se de acordo com a luz oscilante do archote. A Terra estava
fecundada.
Voltámos,
seguindo as nossas anteriores pegadas. Quando saímos da grande vulva
da montanha, o Sol ia alto, e parecia sorrir para nós. Olhámos o
vale e ficámos extasiados: uma enorme manada de bisontes pastava
calmamente, iluminada pelos raios vibrantes de luz. Nunca um vale me
pareceu tão bonito. Erguemos os braços, gritando o nosso louvor ao
Grande Pai Sol e à Grande Mãe Terra. Nesse momento, confirmei a
eficácia da magia do xamã e o poder das forças que nos protegem.
Isso
foi há muito tempo. Nessa altura considerava o meu pai o chefe mais
forte e sábio. Depois, houve períodos de pouca caça que, além
disso, era disputada por outras aldeias que iam proliferando. As
caçadas eram fracas. Passámos a viver quase só de frutos, raízes,
ovos, bivalves e algum peixe. O meu pai parecia resignado e
enredava-se na tristeza. As mais velhas das minhas irmãs foram-se
mudando quase todas para outras aldeias. Até os meus irmãos, que se
juntavam com raparigas na grande festa das tribos da primavera,
partiam com elas, em vez de as trazerem para a nossa aldeia, que
estava a ficar perigosamente pequena. Eu fui dos poucos que decidiram
voltar, quando escolhi Mejila, uma filha do chefe do clã dos
Garranin, para minha companheira.
Nessa
altura, como mais velho, interpelei o meu pai e comuniquei-lhe a
minha preocupação, que era também a dos outros, e a minha intenção
de assumir a chefia da aldeia. Usei palavras, talvez demasiado duras,
fazendo-o ver que ele estava velho e que a aldeia precisava de uma
liderança forte, como outrora fora a sua. Ouviu-me com atenção e
um pouco de tristeza no olhar. Falou-me com muita serenidade,
medindo bem as palavras. Disse que não era fácil assistir às
dificuldades dos que dele dependiam e que, na verdade, há muito
ansiava que eu revelasse maturidade e manifestasse a decisão de
guiar a aldeia, pois só deve liderar o povo quem sente esse
imperativo.
Reuniu-nos
todos em frente à sua cabana, olhou-nos longamente, com grande
bondade no olhar, e disse que era o momento de dar lugar a outro
chefe. Afirmou a certeza de que eu seria o condutor que a aldeia
precisava e entregou-me a Grande Lança dos Mamutin. Nenhum apelo
conseguiu demovê-lo da decisão que tomara: partir. A perspetiva
parecia animar-lhe tanto o espírito, como as caçadas de outrora.
Embrulhou-se na sua pele de bisonte, recomendou que respeitássemos
sempre o bisonte e o cavalo, e partiu com os olhos cheios de
infinito. Todo o povo ficou em silêncio a vê-lo afastar-se. Nesse
momento, vivi a minha segunda orfandade.
Joaquim
Bispo
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Imagem: Cavalo
e Caprídeos, gravuras rupestres do
Parque Arqueológico do Vale do Côa com
cerca de 25 mil a 28 mil anos.
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