Todos
sabemos que os mortos não voltam; por uma razão muito simples —
morreram. No entanto, uma inaptidão para lidar com a interrupção
do devir leva-nos a imaginar os nossos mortos em forma carnal
incorrupta, como quando os conhecemos. Aliás, a aventura humana, com
as suas contínuas “entregas de testemunho cultural”, é muito
eficaz a fazer-nos proceder como se houvesse um devir contínuo. E um
contínuo progresso. Esta nossa capacidade de abstração e de
idealização permite-nos imaginar os cenários mais inverosímeis
com a naturalidade das coisas quotidianas.
Um
avô meu morreu em 1950, quando eu tinha dois anos. Uma lembrança
que tenho dele é, provavelmente, falsa. Era um agricultor que tinha
vivido sempre na aldeia — exceto a passagem por França, na I
Guerra Mundial — e cuja informação se fazia nos mercados, nas
conversas de vizinhos e, talvez, num jornal mensal. O mundo dele era
calmo, duro, equilibrado. Vivia ao ritmo das estações. A
curiosidade de o conhecer é natural. Como seria se o encontrasse
hoje, ele parado nos cinquenta e tal anos da fotografia da parede,
bem mais novo do que eu agora? Como nos relacionaríamos, se
convivêssemos durante, digamos, um mês? Como camaradas? A sua
ascendência prevaleceria, ou a minha maior idade fá-lo-ia
reverente, vindo ele dum tempo em que o respeito pelos mais velhos
era sagrado?
Se
bem o vislumbrei, melhor o fantasiei. O meu avô esteve connosco um
mês. Acompanhou a minha família em todos os momentos, desde os de
lazer caseiro, aos de afobamento de afazeres citadinos. Mostrei-lhe
as maravilhas do meu tempo e indaguei-o sobre muitos aspetos do dele.
Levei-o velozmente pelos lisos tapetes das autoestradas do país,
mostrei-lhe a ponte de dezassete quilómetros sobre o Tejo,
mergulhámos de metro no ventre da cidade em hora de ponta, guiei-o
pelas avenidas dos grandes centros comerciais e outros formigueiros.
Ele mostrava-se um pouco confuso, mas muito adaptável. Gostou
especialmente da televisão por cabo. Devorava sobretudo as notícias.
Embora se admirasse com os telemóveis, o computador e a internet,
ficava particularmente desconfiado com o microondas e divertido com a
máquina elétrica de barbear. Achava piada às roupas deste tempo e
às pessoas nos ginásios. Ver-me a pedalar em seco levava-o às
lágrimas. Gostou de encontrar roupa pronta a vestir e de conhecer as
várias utilizações dos plásticos. Apreciou o serviço de
aconselhamento médico pelo telefone, a que tive de recorrer.
Admirava a utilidade de conservação do frigorífico e a frescura
das bebidas e da fruta, embora achasse esta insípida, apesar das
cores fortes e dos tamanhos surpreendentes.
Finalmente,
chegou o dia em que o prazo planeado acabava. Chamou-me de lado e —
cito de memória — disse-me:
«Amaro,
meu homónimo, meu velho neto, gostei muito de conhecer a tua família
e o teu mundo. É um mundo admirável, mas difícil de compreender
para um homem do meu tempo. Custa-me a crer que os homens foram à
Lua, que desvendaram as entranhas da vida, que criaram certas
maravilhas tecnológicas. Talvez tenham feito tudo isso, mas
continuam a não ser solidários; nem sequer conseguem viver juntos.
As guerras são permanentes, e em inúmeros pontos do planeta há
milhares de pessoas a morrer de fome — que conceito abominável —,
enquanto nos países ricos se destroem milhares de toneladas de
alimentos, para não deixar baixar os preços. As cidades estão
cheias de fumo e sobrepovoadas. As pessoas amontoam-se em pequenos
espaços, trabalham toda a vida para pagar a casa, quase não veem os
filhos. Toda a gente tira cursos superiores, mas poucos conseguem
exercer uma profissão na sua área de estudos. Os jovens apenas
arranjam trabalhos precários, às vezes, escravatura encapotada, com
nomes pomposos como “estágio não-remunerado”.
E,
no entanto, tens razoáveis condições para ter uma vida boa: já
não trabalhas, recebes o suficiente para viver, tens tempo e saúde,
podes fazer o que quiseres. E o que fazes tu? Agora brincas aos
cronistas, como tens brincado aos bloguistas e aos contistas. Passas
demasiado tempo ao computador. Tens mais amigos na internet do que na
“vida real”. As novidades tecnológicas vêm, envolvem-te e
passam. Tens centenas de DVD que nunca vês, dezenas de CD que nunca
ouves, rádios, cento e tal canais de televisão, dos quais vês meia
dúzia. A oferta é avassaladora, dispersa-te. Era um mundo assim que
idealizavas? Parece-me que estás esquecido dos sonhos da
adolescência. Diz-me: és feliz?»
Antes
que eu tivesse tempo de responder, deu-me um abraço e foi-se embora.
Melodramático, este meu avô, mas interessante. Gostava de ter
estado mais tempo com ele!
Joaquim
Bispo
*
Imagem:
Adriano Sousa Lopes (1879-1944) (Artista oficial do Corpo
Expedicionário Português durante a Iª. Guerra Mundial), Aprés
une Attaque de Gaz (Depois de um ataque de gás), Musée
de la Grande Guerre du pays de Meaux.
*
(Esta
crónica integra a coletânea resultante da edição de 2013 do
Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil.)
*
* *
Estranha mas interessante visão.É feliz?
ResponderEliminarObrigado! Hum, podia dizer que, como não tive tempo de responder ao meu avô, também não ia responder…, mas acho que disponho de um conjunto de características da minha vida que me permitem dizer que, não havendo ambições a mais, esta vida é “levável”. Até porque mantenho um razoável interesse pelo mundo e pelas suas manifestações.
ResponderEliminarBem , a felicidade não existe...mas cada ser humano terá os seus momentos de felicidade.
ResponderEliminarMuitos momentos vividos pelo teu avô fora do seu tempo , foram momentos felizes...outros não.
Nem mais. A tua filosofia do quotidiano é imbatível.
ResponderEliminarAbraço!
Boa tarde. Também gostei deste seu imaginário. está certo. seu avô teve de, num relâmpago, compreender as diferenças entre o tempo dele e o seu. Eu tenho setenta e oito anos e, sou licenciada em História, penso que, do que conheço do tempo, não houve nenhuma geração com tantas novidades. Eu conheci, perto dos vinte anos, o primeiro objeto feito de plástico. Morava em Lisboa, acrescento isto para não pensarem que viveria em algum lugar perdido do país onde o tempo tinha parado. Conheci uns garrafões de vidro que vinham do estrangeiro cheios de pedacinhos minúsculos de qualquer coisa e com muitas cores. quando perguntei o que era aquilo, disseram-me que era para fazer plástico. Conhecia o termo "plástico" em arte ou em qualquer coisa passível de se manipular em várias formas, por isso perguntei "o que é plástico?" A pessoa respondeu-me, um tanto atrapalhada: "não sei, só sei que vai para Leiria para fazer coisas de plástico". Não tardou muito a ficar inteirada do que se tratava, mas tantos anos depois, andamos todos aflitos com tanto plástico que envenena o planeta. Como é que em tão poucas décadas o plástico envenenou o planeta?. Como é que se criou tanta tecnologia que levou à mudança total da vida de toda a gente, pobre ou rica? Uma criança que vem ao mundo hoje já já vem equipada com neurónios de ouro enquanto os nossos eram de ferro, e sujeitos a corrosão. É incrível!!! om os meu cumprimentos Maria Emília Neves
ResponderEliminarTambém me lembro de não haver plásticos. Lembro-me de, aos poucos, terem substituído, lá em casa, muitos dos utensílios domésticos até aí feitos de zinco, alumínio, esmalte, barro, ferro. Leves, baratos, “amigáveis”. Chegamos agora a um ponto de saturação e ameaça à vida.
ResponderEliminarMuito obrigado pela leitura e por estas palavras, Maria Emília!