Quando
o telemóvel emitiu o trinado de nova mensagem, Susana saltou para o
agarrar e sentiu o coração acelerar-se. Se este não a enganava, o
toque festivo prenunciava que iria ser a rapariga mais feliz da
turma.
Nessa
manhã, regressara à escola para iniciar o 8º ano. Longe de o
sentir como uma maçada, a perspetiva de rever as amigas fizera-a
pular da cama cheia de entusiasmo. Não foi preciso a mãe insistir para se
levantar. Tomou duche de um jato e vestiu-se a correr. Irritou-se por
não encontrar um soutien
completamente confortável. Estavam todos a ficar pequenos.
Escolheu um vestido rosa por sobre umas calças de ganga e os ténis
azuis. Deu um pouco mais de tempo ao cabelo, sempre solto sobre os
ombros. A mãe torceu o nariz à escolha da roupa, enquanto ela
engolia uma tigela de flocos. Pôs três cadernos e uma caixa de
esferográficas na mochila e desceu as escadas rapidamente. Gostou de
sentir no rosto, outra vez, o ar fresco da manhã. Vieram-lhe à
memória as recordações de sons e cheiros de outras manhãs de
outros anos escolares. Era bom voltar à escola.
Às
oito e dez, estava a cruzar o portão da escola. A Mariana já lá
estava. Quando chegou a Catarina, abraçaram-se as três, pulando e
gritando de alegria. Era tão bom revê-las, depois de quase três
meses sem se encontrarem. Só os diferentes planos dos pais as
separavam. As férias familiares levavam-nas sempre para sítios
díspares. Susana começara por ir à terra do pai, lá para as
Beiras e depois estivera em Armação de Pera quase um mês. Aí,
encontrou os amigos de outros anos e teve umas férias divertidas,
mas estas duas eram especiais. Já as tinha por amigas desde o
primeiro ano. Se uma se atrasava, as outras duas esperavam para
entrarem as três na sala de aula ao mesmo tempo. Iam juntas ao
centro comercial, ao cinema... E a um ou outro concerto, mas com o
apoio logístico dos pais.
Depois
das primeiras trocas de novidades de viva voz, que por telemóvel já tinham feito o resumo, passaram ao encontro com outros
colegas. Cada nova entrada era uma festa. Beijos, abraços e gritos.
O que mais surpreendeu Susana, neste regresso à escola, foi o ar tão
― como dizer? ― infantil dos colegas rapazes. Parecia que, em vez
de crescerem, ficavam mais pequenos. E continuavam com as conversas
parvas do costume. Felizmente que havia novos ingressantes. Um deles era
alto, cabelo preto e uma postura de grande autoconfiança. Riram-se
as três, nervosamente, quando ele olhou de longe para elas. Algumas
perguntas percorriam o íntimo de cada uma.
― De
que escola terá vindo? ― perguntou Mariana, sem esperar resposta.
«Que
idade terá?», pensou Susana.
Mais
nervosas ficaram quando confirmaram que o rapagão ficaria na mesma
turma que elas.
Nas
apresentações da aula de Português B, ficaram a saber que se
chamava Filipe e que tinha quinze anos. No intervalo seguinte,
ficaram a espiá-lo pelo canto do olho e quando ele se aproximou
puderam ver-lhe o dourado dos olhos cor de mel. Trocaram piadas e
números de telemóvel. Filipe era muito divertido, com um sentido de
humor estimulante. E já tinha mudado a voz, o que era um progresso
no timbre das conversas do grupo. Parecia que tinham passado de nível
neste jogo real.
Quando,
ao jantar, o telemóvel retiniu em tom festivo, Susana agarrou-o com
nervosismo e tão atabalhoadamente que se lhe escapou da mão e caiu,
separando-se a tampa e a bateria. Voltou a montá-lo e leu a nova
mensagem:
kurti
bue falar kntg kerx ir oh sinema sabado?
Reparando
na agitação da filha, a mãe perguntou-lhe:
― O
que é que se passa, Susana?
― Nada, mãe, foi a Catarina que nos arranjou bilhetes para ir ver A Saga de Thundor, no sábado. Posso ir?
Susana
ficou sem saber se o calor que lhe queimava a face era por ter
mentido à mãe, se por perceber que este ano escolar iria ser muito
diferente dos anteriores.
Com
o pretexto de organizar os cadernos, foi para o quarto logo a seguir
ao jantar e deitou-se em cima da cama a imaginar como seria o sábado:
o que levaria vestido, se ele lhe pegaria na mão, se trocariam algum
beijinho. Ele seria atrevido ou tímido?
Hesitava
na resposta a dar-lhe: dizer que sim, sem mais, ou dizer que ainda
não sabia se podia ir, para ter tempo de o avaliar melhor? Até
podia dizer que no dia seguinte falariam sobre a ida ao cinema.
O
telemóvel retiniu de novo e Susana, de novo, saltou a apanhá-lo.
Tinha a certeza de que era o Filipe, já impaciente. Mas não. Era a
Mariana. Feliz da vida, porque o Filipe lhe tinha enviado uma
mensagem a convidá-la para ir ao cinema.
― Que
bom, Mariana! E o que lhe vais dizer? ― fingiu interessar-se Susana,
tentando aparentar o tom mais natural do mundo.
― O
que já disse. Que sim, claro! Achas que eu ia dizer que não? Vamos ao centro comercial ver A Saga de Thundor ou outra cena assim.
Susana
desculpou-se dizendo que tinha de ajudar a mãe e acabou rapidamente
a conversa radiosa da amiga. Virou-se de barriga para baixo e deixou
as lágrimas escorrer para a colcha. Sentia-se a rapariga mais
infeliz do mundo. Logo agora, que pensava que iria viver um romance
bonito. E magoava-a que tivesse sido a própria amiga a traí-la,
mesmo sem o saber.
Revoltada,
pegou no telemóvel, alterou a identidade para “anónimo”, e
escreveu:
Veja
por onde anda a sua filha. Sabe aonde ela vai sabado?
Selecionou
o número de telemóvel da mãe da Mariana, mas hesitou antes de
enviar. Não podia fazer esta maldade à amiga. Ela não tinha culpa
nenhuma e, mesmo que tivesse, era uma amiga de muitos anos. Apagou a
mensagem, pensativa.
Passado
um bocado e aceite o fracasso, começou a sentir que, vistas bem as
coisas, até tinha sido útil não ter respondido logo ao Filipe e
ter, assim, percebido que tipo de rapaz ele era. Uma ideia mazinha
começou a germinar na sua cabeça. Para alguma coisa haviam de
servir as telenovelas. Pegou no telemóvel e escreveu:
Eu
ate gostava Filipe mas tenho de ficar em casa porque os meus pais vao
para fora e eu tenho que tomar conta dos caes. Não queres vir tu ca
a casa? Vamos para o meu quarto e vemos a saga de thundor que eu
saquei da net. Sim? Mas não digas nada as colegas.
Com
um convite destes, não duvidava que Filipe arranjaria uma desculpa
para cancelar a sessão de cinema com a Mariana. E quando ele ali
chegasse no sábado, a imaginar uma tarde de “marmelada”, havia
de as encontrar às três, a rir da cara dele, pelo logro em que
caíra, e tudo acabaria em galhofa. Ou não...
Mais
uma vez, hesitou antes de enviar a mensagem. Voltou a cabeça e
encarou-se no espelho do roupeiro. Viu uma miúda, apenas, a querer
brincar aos crescidos. E não estava a gostar de se ver nestes papéis
mesquinhos de adultos encornados. Uma coisa eram as histórias das
telenovelas, outra, as situações com pessoas reais. Apagou a
mensagem e escreveu:
Sabado
nao posso desculpa
Enviou
a mensagem para o Filipe, desligou o som do telemóvel e deitou-se,
que no dia seguinte era mais um dia de escola e queria chegar cedo
para estar com os amigos. Todos.
Joaquim
Bispo
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(Este
conto obteve uma menção honrosa nos
IX Jogos Florais de Avis, de 2011, e foi
publicado no número 10 da revista literária virtual Samizdat, de
novembro de 2008, com o título “Toque de saída”.)
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