10/12/2025

Enfrentar o mundo com uma bainha

 

Na sua câmara no gineceu do palácio, Penélope medita sobre a sua impotência perante as insistências desprezíveis dos pretendentes. Lá em baixo, na sala grande, banqueteiam-se com as olorosas carnes das rezes dos seus domínios, estrondeando júbilos alarves, sem respeito pela casa que os acolhe, nem pela sua anfitriã. A repulsa física que sente por aqueles brutos não é menor do que a ira pelo saque que impõem ao seu património. Tivesse ela uma espada e outro seria o festim e outras as carnes sacrificadas, mas Penélope não dispõe de mais do que de uma bainha.

Ulisses partiu há muitos anos, elevando em glória a sua espada fulgurante. À frente dos seus guerreiros, a espada de Ulisses prometia a vitória junto aos muros de Troia. Ele e os seus companheiros iriam enterrar as espadas de Marte em muitos corpos de opositores valorosos. Para trás ficaram as esposas, as mães, com a ambígua defesa das suas bainhas de Vénus. Como enfrentar o mundo com uma bainha?

Dez anos durou a guerra de Troia. Foram batalhas constantes ou só um tedioso cerco, como sussurrava o rumor? Em que atividades teriam os combatentes gastado esses dez anos? Conhecendo os homens e os seus valores, Penélope acredita que passaram os intermináveis dias de assédio a exibir e a comparar as suas espadas. E a afagá-las para lhes realçar o brilho. Muita vaidade têm os homens nas suas espadas. Na sua rigidez confiam, do seu brilho se orgulham, nelas se reveem, como símbolo excelso do esplendor da sua virilidade.

Passados esses dez anos, saqueada Troia, todos os combatentes regressaram aos seus lares, para maior ou menor fortuna, mas Ulisses não. Andará a saquear cidades, a depredar campos inimigos, a arrebatar manadas de gordos vitelos? Ou, objeto da ira dos deuses, terá sido desviado da sua rota para praias distantes, rochedos destruidores? Como poderá Penélope saber? Um viajante naufragado nas costas de Ítaca diz-lhe que viu Ulisses em Creta, recebido com louvores de herói; outro, que ouviu falar em desditas marítimas do navegador Ulisses.

Penélope espera. Que pode uma esposa amante do seu esposo fazer senão esperar? Sente saudades. Sente solidão. Aninhada no leito que partilhou com Ulisses, compadece-se da sua bainha, também ela ali abandonada, triste e chorosa, como criança perdida e faminta. Em desvelos maternais, enche-a de carinhos para que consiga adormecer.

Passaram já dezassete anos e Ulisses mantém-se ausente. O pai de Penélope insiste que é tempo demais para esperar; que ela deve voltar a casar. O mundo conspira contra as mulheres. Todos sentenciam que tem de haver uma espada naquela casa. O filho de Ulisses arvora naturalmente uma espada, mas tem apenas dezassete anos. É demasiado novo para defender um património como o de seu pai.

Penélope é ainda bastante jovem e bela e suscita claramente o interesse de muitos pretendentes da ilha e de fora dela, todos nobres e valorosos, como exige a nobreza da excelente requestada. Parece, no entanto, a Penélope que é maior o interesse dos pretendentes na riqueza imensa que o património de Ulisses representa. A todos vai negando o seu leito e os seus domínios, mas eles não arredam pé. Apoiados na sentença espatária do pai de Penélope, vão ficando, vão-se instalando, comendo e bebendo à conta dos bens de Ulisses, até que ela escolha um deles.

São muitos, fazem questão de exibir a evidência das suas espadas, não se pode combatê-los senão com astúcia. Penélope é a esposa de um homem conhecido como “Ulisses dos mil ardis”. Também ela medita em estratagemas para ganhar tempo.

Uma ajuda a Penélope é decidida pelos deuses, a pedido de Atena e por ela personificada. Casta como é, admira e quer recompensar a fidelidade conjugal de Penélope. Uma ideia é inspirada à mortal.

Declara que escolherá um pretendente depois de completar a mortalha fúnebre para o pai de Ulisses, que está entrado em anos. Pode ser que entretanto Ulisses chegue. Mas os meses passam e Ulisses não regressa. Penélope desfaz de noite a urdidura tecida durante o dia.

Penélope já não sabe que mais temer: a morte funesta do esposo em batalhas remotas ou a sedução de feiticeiras, ninfas e deusas invejosas. Em quem andará Ulisses a cravar a espada: em corpos de inimigos cruéis e desprezíveis ou em carnes mais delicadas e propícias? As costas dos mares irrequietos estão cheias de tentações e perigos.

Tecer, urdir uma teia, lidar com miríades de fios, juntar uns, separar outros, ajuda Penélope a meditar, a ter uma visão alargada da complexidade dos desafios que enfrenta. Apura-lhe a intuição, desvenda-lhe outros padrões, outras tecituras. Avalia possibilidades onde antes só encontrava entraves. Atena não a abandona.

Conferencia com o filho e com Mentor, o fiel amigo que Ulisses deixou a tomar conta dos seus domínios. Envia-os a pedir ajuda aos bravos heróis e companheiros de Ulisses em Troia, que há muito regressaram, mas também eles só vislumbram a solução matrimonial com um pretendente. A lógica da espada prevalece.

Seu pai e seus irmãos pressionam Penélope para que aceite Eurímaco, o pretendente que mais ricas prendas tem oferecido. Também a ela este parece o menos mau dos que a cortejam. Nunca Antínoo, o rude e agressivo líder da turba arrogante dos pretendentes. Disfarçadamente, vai avaliando os modos corteses de Eurímaco, o seu porte nobre, a elegância do seu gládio, bem mais admirável que as desprezíveis adagas ou as traiçoeiras cimitarras da maioria. Mas custa-lhe a imposição da escolha. Não é opção para uma rainha. Sobretudo sem a certeza da morte de Ulisses.

Se os pretendentes fossem dois ou três, facilmente poderia criar algumas intrigas, acicatar ciúmes e livrar-se de todos, mas com cento e oito…

Terrível dilema. É como se Hera, protetora das mulheres casadas, sentindo curiosidade pela extrema fidelidade de Penélope, bloqueasse outras ajudas dos deuses, propondo-se ver como conseguirá uma mortal desenvencilhar-se do aperto em que se encontra. Talvez a mortal encontre soluções para problemas tão complexos como os que por vezes ela própria enfrenta — as constantes traições de Zeus.

A situação é muito difícil, é um problema sem solução visível. Só os aedos vislumbraram e cantaram uma. Supostamente devida a um auxílio a Ulisses decidido pelos deuses. Homero cantará um regresso tumultuoso e arrasador de Ulisses. Com o auxílio de Atena, chegará a Ítaca disfarçado de mendigo, entrará no seu palácio ocupado, com a ajuda do filho e de um porqueiro, revelar-se-á a alguns servos indefetíveis e obterá o seu apoio. Arquitetará então um plano terrível que executará implacavelmente até à morte de todos os pretendentes. Sem perdoar um. E até de algumas servas que a eles se entregaram, por terem transformado em bordel a casa da sua senhora.

Que Ulisses implacável é este? Quão brutal e sanguinário se tornou um homem que, tendo já matado os principais e mais odiosos pretendentes, prossegue o massacre, mesmo depois de pedidos de perdão e declarações de pagamento de todos os depredações executadas na sua casa? E ter matado simples servas? Como desapareceu a sua lendária sensatez? Em que se transformou Ulisses? Ninguém o reconhece. A maioria só se deixa convencer ao lhe ser mostrada uma antiga cicatriz na perna. Será mesmo Ulisses que regressa? Ou um aventureiro que com ele privou e de quem foi confidente?

Outros aedos cantarão versões libidinosas de amores adúlteros de Penélope. Uma chegará ao extremo de pretender ter ela ido cedendo sucessivamente aos mais de cem pretendentes. Muito adulterada deverá estar a memória para admitir que tal seria concebível a uma princesa de Esparta, cidade por excelência das mulheres virtuosas.

Em nova conferência, Penélope, o filho e Mentor reveem as várias hipóteses. Dificilmente conseguirão livrar-se dos pretendentes pelos meios tradicionais. Eles dispõem da avassaladora vantagem da força, quer imediatamente, quer em retaliações futuras. Há que usar de criatividade, de astúcia, da força do espírito. Penélope fala em manobras de humilhação e do seu possível poder dissuasor. É uma arma poderosa, mas que pode gerar reações de grande brutalidade retaliatória.

Mentor sugere alternativas violentas. Poderia mandar as criadas envenenar-lhes a comida, mas os pais e outros familiares não entenderiam e viriam cobrar vingança. Poderia propor jogos de eliminatórias — corridas de carros, tiro de arco — até ao apuramento de um vencedor. Podiam ser torneios tão viris e violentos que os pretendentes se fossem eliminando fisicamente uns aos outros. Mas sempre restaria algum, talvez um que Penélope não quer ver nem dourado, talvez o odioso Antínoo...

Não; abdicar do poder da escolha está fora de questão. Bem bastara ter sido ela o prémio na corrida de carros que Ulisses vencera. Para acentuar que a escolha nupcial também fora sua, Penélope aceitara seguir Ulisses para Ítaca, em vez de se manter em Esparta, conforme os rogos do pai. Deixar que o acaso decida, seria um retrocesso no controlo do processo e isso é inaceitável.

Há anos que os pretendentes se fizeram presentes. Mais ou menos convincentes, cada um intenta ser o príncipe que a encantará. Aos poucos habituou-se à adulação subjacente. Cada um daqueles jovens almeja elevar em glória a espada no seu leito. A uma decisão sua, podia dar sentido à sua bainha. Mas não é da companhia de um jovem que Penépole sente falta. Ulisses nunca abandona o seu pensamento.

Passaram mais três anos. Completam-se em breve vinte, desde que Ulisses levantou a sua poderosa espada na proa da negra nau que rumava a Troia, encabeçando a flotilha de outras onze. O estratagema de desfazer a urdidura durante a noite foi desmascarado por uma escrava. Penélope é pressionada a escolher um pretendente, das muitas dezenas que todos os dias se fazem comensais nas mesas da sala grande. Que fazer? Adiar a escolha torna-se cada vez mais difícil. Atena cicia-lhe soluções.

Penélope tece, maneja os fios com destreza, medita, imagina que consegue prender um dos fios a um pretendente e comandá-lo. Outro fio a outro pretendente. Um fio para cada um. É uma urdidura ambiciosa, uma teia ampla, global. Cada fio cumpre uma função particular, e juntos completam o tecido. A este cumpre assegurar o resguardo, a proteção, o recato, o seu, de mulher casada, ou viúva, ou só mulher. Através da urdidura pode comandar o seu destino.

A queda de Troia desarticulou o equilíbrio da região. Hordas de desenraizados espreitam e saqueiam as costas mediterrânicas. Penélope toma consciência da força que, se unida, aquela centena de guardiões representa. Uma guarda de elite é a proteção mínima, mas suficiente que a livrará de depredações invasoras. O que consome à mesa é um preço irrisório, comparado com a proteção que oferece. É preciso que o espírito que moveu para ali cada um dos pretendentes se consolide em irmandade protetora.

Se antes, por cortesia, não hostilizava os pretendentes, cada vez os acarinha mais, apesar do deboche que alguns protagonizam. Incentiva e, não raras vezes, aceita honrar com a sua presença os jogos de adestramento bélico e os banquetes subsequentes. Evita que, cansados da espera, desistam, enviando-lhes mensagens personalizadas, sugerindo dias mais auspiciosos e insinuando que pode estar próximo o prémio que espera. Fazendo-o sentir-se especial, envolve cada pretendente num acordo tácito de proteção, Atrás do véu que brota do seu tear, vai conseguindo tecer uma teia coesa e protetora, para si e para Ítaca. Que talvez lhe permita esperar por Ulisses indefinidamente.

Joaquim Bispo

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Este conto foi selecionado para a 54ª edição (novembro/dezembro de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 81 a 85):

https://drive.google.com/file/d/1bfOCXN-t7jfyhFDgiptn9viPPOrV-Yhy/view

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Imagem: John William Waterhouse, Penélope e os Pretendentes, 1912.

Coleção Aberdeen Art Gallery

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10/11/2025

A outra

 


Numa noite de início de primavera, Nely Flores enganava o tédio jogando nas slot-machines do casino do Estoril, quando avistou, por entre os rendilhados pintados dos vidros da sala, Galhardo e a esposa, que saíam de braço dado da sala de espetáculos. Todas as noites passava ali duas ou três horas, apostando moedas nas máquinas rigorosamente programadas para a derrotar. Quando o fim do mês se aproximava, tinha de se conter. Para fazer render, jogava a aposta mínima e introduzia as moedas, uma a uma, em vez de mandar carregar a máquina com um determinado valor. Por vezes, limitava-se a bebericar um Alexander no bar do foyer. Ao ver o seu amante com a legítima, gloriosa num vestido comprido rosado, suspendeu o gesto de carregar no botão da máquina, como se tivesse ficado paralisada. Uma profunda névoa de tristeza toldou-lhe o olhar, enquanto via o casal afastar-se. Com a dor na alma, recolheu as quatro ou cinco moedas da bandeja da máquina e dirigiu-se para o bar. Pensativa, desta vez pediu um uísque de malte, tentando atordoar a mágoa que a feria visceralmente.

Não havia direito! A si é que amargava a boca, com o amor de Galhardo, e a consorte é que desfrutava da sua companhia e se exibia a seu lado. A princípio, fora bom. Ele tinha sido generoso e subsidiara a publicação de autor do seu livro. Eram dezasseis contos inspirados na sua experiência de modelo de moda e tinha o título genérico de “Poodles amestrados”. Conseguira impingir uma trintena de exemplares a familiares e amigos, mas a saída em livrarias fora pouco mais que simbólica. Na verdade, não era grande coisa como literatura, admitia. Deixava transparecer um certo ressentimento de fim de carreira.

Envolvera-se com Galhardo nessa situação de dependência de gratidão que os poderosos sabem aproveitar tão bem. E era atento e gentil. Depois de ir a casa dela algumas vezes, e em vista das suas dificuldades para continuar a dedicar-se exclusivamente à escrita, oferecera-se para ser o seu mecenas e deixara um cheque de mil e quinhentos euros. Desde então, um cheque de valor semelhante era deixado na última semana de cada mês. Às vezes, havia um reforço, a meio do mês, sobretudo pelo vício das slot-machines, que entretanto adquirira. Porquê? Morava perto do casino, permitia-lhe sentir que saía e via gente, e, provavelmente, mantinha-lhe uma esperança mal assumida de voltar a ser independente, desta vez pela sorte.

No primeiro ano, ainda fora acompanhante de Galhardo à República Checa e à Polónia, mas, desde então — e já iam quatro anos — nunca mais o acompanhara nas suas viagens de negócios. O contacto que mantinham limitava-se à visita de Galhardo, uma ou duas vezes por semana, nas quais, quase sempre, ele se contentava com um felatio.

Nely andava perto dos quarenta anos e, se não fosse por usar cabelos lisos, em vez de armados, podia dizer-se que era uma réplica da mulher de Galhardo, mais nova. Na verdade, também tinha formas mais generosas, sobretudo o peito. Segundo se lembrava, só uma outra vez tinha visto Galhardo e a mulher juntos, ao vivo. Fora um ano atrás, nesta mesma situação de saída do casino. Também dessa vez, Nely tinha ficado muito perturbada e invejara, como símbolo legitimador, a gargantilha de pedras azuis que dona Matilde ostentava. Nely reconhecera a gargantilha, pelo que tinha dito, algum tempo antes, a sua amiga Gina, que era esteticista no hotel Palace:

Sabes quem esteve ontem lá no salão? — a legítima do teu homem. Ainda rompe meias solas, a socialite! Estava toda elegante, com um colar de ouro, incrustado de pedras azuis. Com um colar daqueles, até eu havia de parecer uma grã-fina!

Nely não gostara da apreciação positiva feita pela amiga, e alardeara uma influência que não sabia se tinha:

Não digas a ninguém, mas ele comprou aquele colar para mim. Eu é que não o quis, porque a pedra do meu signo é a esmeralda, que é verde. O que fazia eu com um colar de pedras azuis?

Essa conversa era uma parte da razão para nunca pôr a gargantilha de safiras que ele, depois de muito pressionado, lhe oferecera.

Igualzinha, querido, tem de ser igualzinha! Não quero sentir-me discriminada. Já passo tanto tempo sem te ter ao pé de mim…

Na verdade, não tinha muitas ocasiões para a usar. Nem achava que fizesse o seu estilo. Era um bocado pesada de mais para a sua idade. Apresentava-se-lhe com ela posta, isso sim, nalgumas das vezes que ele a visitava.

Quanto mais pensava em todas estas recordações, mais deprimida se sentia. E o sentimento por aquela mulher que ocupava, de pedra e cal, um lugar que podia ser seu, era uma dor cortante no âmago do seu ser.

Desculpe, não é a Nely? — ouviu perguntar.

Ao seu lado, estava um homem entroncado e olhar intenso. Quando ela se voltou suficientemente, Albano não teve dúvidas de que era a sua antiga namorada, de há uns doze anos.

Nely, há quanto tempo! O que é feito?

Olá! Por aqui? Albano, não é?

Nunca mais te vi, desde aquela vez…

Pois, deixaste-me a secar!

Atrasava-me sempre, mas daquela vez devo ter exagerado… Nem voltaste a atender o telefone!

Sei que estás bem, que tens uma empresa de segurança, não é? Vi-te na televisão, quando foi dos tiroteios no Porto.

Queriam saber como era em Lisboa. Eles lá matam-se uns aos outros, pelo controlo dos contratos das casas de diversão noturna. Nós aqui temos a coisa dividida por zonas. Eu não me meto na zona dos outros e eles não se metem na minha. Não temos problemas.

Nely não soube em que momento tremeluziu no seu espírito uma centelha inspiradora, certo é que, em certo ponto da conversa sobre seguranças, e sobre o difícil e delicado que é lidar com homens duros, alguns, ex-cadastrados, Nely entreviu uma possibilidade de alterar o rumo da sua vida.

Também tens ex-assassinos na tua empresa?

Tenho de tudo. Isso não é problema. Só me interessa se sabem impor-se fisicamente, em caso de alteração da ordem, na casa noturna onde estiverem a prestar serviço.

Nely baixou os olhos, pensativa. Albano reconheceu nessa posição a longínqua imagem da amiga, com quem nunca chegara a vias de facto. Nely, após reviver por momentos o rancor que sentira há pouco, ao ver a sua rival, resolveu arriscar e aproximou o rosto do ouvido do ex-namorado.

Achas que consegues arranjar-me um fulano para um trabalhinho realmente sujo?

Albano hesitou um momento.

Sujo, como? Dar uma coça, partir as perninhas?

Apagar uma certa pessoa.

Albano quedou-se um pouco a contemplar o rosto decidido de Nely. Como estava diferente da jovem suave e um pouco tímida que conhecera anos atrás!

Caramba, Nely, não estou a reconhecer-te! Mas arranjo-te o que precisares. Deixa-me pensar! Olha, depois de amanhã, às onze, encontra-te comigo no miradouro da Boca do Inferno. Talvez já tenha alguma coisa para ti.


À hora combinada, chegou Albano. Nely, encostada à amurada do miradouro, fingia contemplar o infinito. Na verdade, controlava, discretamente, o acesso pedonal, um pouco insegura sobre quem apareceria. Albano cumprimentou-a e sugeriu o aconchego discreto de um banco de namorados incrustado na rocha. Foi direto ao assunto.

Nely, não chegámos a falar a sério sobre o que pretendes. Tens consciência de que é uma coisa muito grave e que deve ser rodeada de todas as cautelas?

Sim. O que queres dizer?

Sabes, não há operações perfeitas. Há sempre alguma coisa que corre mal, algum imprevisto. Tens consciência disto?

Nely acenou fracamente, sem dizer nada. Albano continuou.

Estás disposta a avançar, sabendo que, se der para o torto, somos todos envolvidos e presos, incluindo tu?

Estou — respondeu, endireitando o tronco e adotando uma expressão voluntariosa.

Ok! Então, é assim: há dois gajos que fazem isso, mas querem dois mil contos cada um. Vinte mil euros pelos dois. Estavas a contar com este valor?

Bem, sim! Eu não tenho esse dinheiro, mas tenho uma coisa que o vale. Uma gargantilha de safiras. Olha! — sugeriu, virando a abertura da mala de mão para ele. — Vale bem mais que isso.

Ok, talvez. Lembra-te que um recetador não dá o dinheiro que isso custou na loja. Mas vamos ver. Depois digo-te se chega. Agora, preciso de saber quem é o “feliz contemplado”.

Estás a ver o Galhardo dos vinhos? A mulher! — informou, estendendo uma revista do social a Albano. — É esta das fotografias.

Fihu! — assobiou Albano. — Não sei se os gajos vão querer. Logo se vê. Como é que ela se chama?

Matilde. Vive numa quinta em Sintra e dorme sozinha num quarto no rés-do-chão da casa. É fácil.

Tens pressa nisso? Tens algum método preferido?

Nely evocou a imagem da rival, radiosa, de colar a rodear o pescoço.

Enforcada! Pendurada por aquele pescocinho flácido. Assim que puderem.


Ainda nessa noite, Albano chamou ao seu gabinete os dois homens que tinham aceitado fazer o trabalho. Fora uma escolha acertada, à primeira.

Zezé; Bruno; já tenho os elementos que vocês vão precisar. É esta gaja — apontou, mostrando uma revista, em que avultavam fotografias de dona Matilde em várias divisões da sua casa de Sintra. — Vejam bem a gaja e as fotografias da casa, e estudem a localização aqui no Google Earth — adiantou, mostrando o ecrã do computador.

Chefe, já tem a “narta”? — quis saber Zezé.

Já! Tenho isto — asseverou, mostrando a gargantilha. — São pedras verdadeiras. Se levarem isto a Espanha, de certeza que conseguem mais de trinta mil euros. Vou cortá-la ao meio. Se aceitarem o trabalho, levam já metade. Quando acabarem, vêm buscar o resto. Pode ser assim?

Conte connosco, Chefe! — confirmou Zezé.

Se conseguirem sacar mais alguma coisa de valor lá da casa da gaja, é convosco. Até convinha, para parecer um assalto que se descontrolou. Mas, se trouxerem de lá alguma coisa, isso é material que queima. Tenham cuidado com ele. Não é como este.

Esteja descansado! Nós sabemos o que fazemos.

Claro. Era só para lembrar. Agora, queria ter uma conversinha muito séria convosco — explicou Albano. — A ti, Zezé, já te conheço desde os Fuzileiros. Sabes que um camarada nunca lixa outro. Se alguma coisa correr mal — e nestas coisas nunca se sabe o que pode acontecer — lembrem-se que é muito mais útil um amigo que possa fazer alguma coisa por nós, que um que esteja tão tramado como nós. O que eu quero dizer é o seguinte: se algum de vocês for preso, não lixe mais ninguém. Por um lado, eu ia negar tudo; depois, comigo cá fora, sempre vos posso contratar um advogado que valha alguma coisa. Fui claro?


No dia seguinte, Albano voltou a encontrar-se com Nely, para lhe dar conta da evolução do processo.

Está tudo tratado, Nely. Eles aceitaram o trabalho e o pagamento. Agora, é só esperar. Estou convencido de que vai correr tudo bem, que eles são homens de confiança. Por ti, deves fazer uma vida completamente normal, sem qualquer alteração, quer até ao dia D, quer depois. Nós próprios não devemos voltar a ver-nos, pelo menos sem deixar passar muito tempo e deixar arrefecer o caso.

És um querido! — regozijou-se Nely, dando um beijo na face de Albano. — Não sei como te agradecer!

Uma mulher bonita encontra sempre uma maneira de pagar um favor, se quiser — sentenciou Albano, com voz maliciosa.

Maroto! — protestou Nely, sorrindo.


Joaquim Bispo

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Este conto integra a coletânea Tempo de Vilões — resultante de concurso literário —, disponível na Amazon, em formato eBook Kindle. https://www.amazon.com.br/gp/product/B0BB52VNKX?fbclid=IwAR1GOZxMaC6Ka3Ae6NUGvQej0wTpM_UQ6ZN7bn8bpvBykJkP0XeUIn7nJr8

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Imagem:

Édouard Manet, Nana, 1877.

Coleção Hamburger Kunsthalle, Hamburgo, Alemanha.

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10/10/2025

Vocação de mabeco

 


Ruffy era um dobermann preto, nascido no Zimbabué em casa de um vigário inglês. Ao fim de uns anos, o inglês, “farto de aturar pretos”, voltou para a Europa, abandonando o animal, que não teve outro remédio senão desenrascar-se sozinho. Nas primeiras semanas, Ruffy sobreviveu a virar caixotes em Lupane, a sua pequena cidade das margens do Gwayi; depois, decidiu que não era um coitadinho qualquer, como alguns que ele via a mendigar comida, e aventurou-se pelos matos.

Percebeu rapidamente que, na savana, era onde podia encontrar muita comida, com o contratempo de ser ligeira a fugir. A princípio, teve de se contentar com restos de carcaças, algumas já com um cheiro pouco apetitoso. E muitas vezes teve de ser ele ligeiro, para escapar de bocas que não se importavam de comer carne de cão.

Tomar contacto com os mabecos foi inspirador. Viu-os de longe, caracteristicamente malhados, em matilha, a perseguir zebras ou antílopes ou tudo o que não fosse demasiado grande. Eram incansáveis. Podiam correr quase uma hora, até cansar a presa, que era sucessivamente mordida em corrida e ia perdendo vigor. Por fim, rodeavam-na, despedaçavam-na em poucos minutos, ingeriam quanta carne podiam, alguma da qual era depois regurgitada para as crias ou para outros membros que não tinham podido acompanhar a caçada.

Não eram flor que se cheirasse, bem o percebeu. Naqueles contactos visuais, sentiu apreensão. Em numerosas ocasiões, pensou voltar para as ruas dos homens. Se estes cães selvagens o vissem, não teria qualquer hipótese. Passou a ter cuidados redobrados, não atravessando espaços abertos, mas, quando se sentia seguro, passou a tentar a caça à maneira dos mabecos.

Muitas corridas não deram em nada, mas, uma vez por outra, conseguiu abater presas pequenas. Começou a ganhar autoconfiança. Um dia abalançou-se a perseguir um javali, mas, depois de uma pequena corrida, o javardo virou-se a ele. Surpreendido, levou uma naifada que lhe atingiu o flanco e a coxa esquerda. Conseguiu escapar e escondeu-se nuns arbustos espinhosos, a lamber as feridas.

Ruffy pensou que era o fim. Sem conseguir correr, iria morrer de fome, se não morresse dos ferimentos. Ao fim de dois dias, um grupo de mabecos deu com ele. Então, não teve dúvidas do que o esperava. Os primos selvagens rosnaram-lhe, foram-se aproximando de cabeça baixa e dentes arreganhados, mas, inesperadamente, cheiraram-no, devem ter encontrado afinidades canídeas, perceberam que estava ferido, pareceram ficar indecisos.

Depois de umas idas e vindas, para dentro e para fora dos arbustos, com cuidado, por causa dos espinhos, um macho com aspeto soberbo, regurgitou uma massa carnosa junto ao focinho de Ruffy. O dobermann não pensou em mais nada; só que podia matar a fome imediatamente. A massa, vagamente acastanhada, demorou menos tempo a chegar ao estômago do cão, do que a sair da goela do mabeco. E, no dia seguinte, o grupo voltou. E, novamente, o alimentou. Afinal, era malta de bem. Ao fim de três dias, o cão seguiu os seus salvadores.

Alvo de curiosidade do bando, mostrou-se sempre humilde, prostrando-se e ganindo a cada aproximação mais desconfiada. Aos poucos, começou a acompanhar a matilha nas caçadas. Não tinha a velocidade nem a técnica dos mabecos, mas ajudava nas estratégias de separação de uma presa de um grupo. Depois corria, enquanto conseguia. A princípio, quando chegava ao local do abate, a presa já tinha sido esfacelada e os líderes do grupo já se tinham alimentado. Mas sobrava sempre alguma coisa. Aquando da primeira zebra, abandonaram quase um quarto da carcaça aos abutres.

Ao fim de uns meses, já tinha o seu lugar no grupo, em posição subalterna, é certo, mas participava em todas as caçadas com grande entusiasmo e mesmo alegria. Surpreender a presa incauta, lançar-lhe um latido «Eu vou atrás de ti», perceber-lhe o medo, persegui-la implacavelmente, integrado na matilha de uma dúzia de mabecos, conseguir mordiscar-lhe o ventre ou uma pata, participar no derrube final, ferrar-lhe os caninos na goela, senti-la a esvair-se, a desistir de lutar, exaltava-o até ao uivo.

Depois do ardor e da alegria da perseguição, a festa das carnes, das vísceras arrancadas, engolidas a correr, uma e outra vez. Como estava contente por se ter decidido pela savana, em vez de andar aos caixotes na cidade, a catar restos azedos, a morrer de vergonha alheia pelo comportamento de outros cães!

Mas a vida na savana não é só vitórias. Come-se e é-se comido. Talvez dois anos depois de chegar à savana, enquanto estava emboscada a observar a movimentação de uma manada de gnus-de-cauda-preta, a matilha foi rodeada por várias leoas caçadoras. Também elas tinham estudado a matilha e concentraram o ataque no elemento mais fraco: o cão da cidade.

Separado do resto da matilha em fuga, correu quanto pôde, mas a velocidade não era comparável. Não ouviu nenhum “Eu vou atrás de ti”, das leoas, mas o terror que o invadiu não tinha paralelo com qualquer outro medo que já tivesse sentido, nem mesmo quando fora encontrado ferido pelos mabecos. Parecia que os músculos não respondiam como esperava. Sentiu-se perdido.

No auge do cansaço, enfrentou as leoas. “Porquê eu?”, ganiu. “É muito injusto!” Ruffy era um animal pequeno, comparado com tantos outros que dali se avistavam; não percebia porque o tinham escolhido a ele. “Com tantos gnus e zebras, porquê eu?”, ululou. “Agora vão ter que ouvir: Aqueles não perseguem vocês... Vergonha! Eu não sou nenhum coitadinho; eu enfrentei sozinho um javali; vocês vão ver!”, ameaçava.

Os dentes que mostrava eram temíveis, mas as leoas eram três. Rodearam-no, num jogo que os predadores em grupo sabem jogar. Quando a presa investe contra um, os outros atacam-no por detrás. O confronto desigual terminou rapidamente.

As primícias da carcaça foram para o macho alfa, que se aproximou sem pressas. Depois de se saciar, o leão estendeu-se por perto, a ver as leoas dividir o restante sem lutas, em cedências tácitas, consumindo-o totalmente no local. Na savana, fora do grupo, não havia justiça, nem contemplação com os pequenos e os coitadinhos; vigorava uma desapaixonada luta pela sobrevivência em que até os predadores podiam tornar-se presas.

Joaquim Bispo

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Este conto foi selecionado para a 53ª edição (setembro/outubro de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 81 a 83):

https://drive.google.com/file/d/1MkUxqXzC849GS9J_mgt8t5clM6smyLbm/view

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Ilustração de @rodolfo.bispo.77

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10/09/2025

Sexta-feira na luta de classes

 


Ao princípio da tarde, D. Matilde pediu a Ramiro:

Prepare o carro e leve-me a Cascais, a casa da Tatá Menezes, se faz favor.

Durante a viagem, a senhora parecia apreensiva, ao contrário de outras ocasiões em que se encontrara com a amiga, e quase não falou. Já nas alamedas do bairro chique da Gandarinha, alterou:

A Tatá mandou-me agora uma mensagem a dizer que está no bar do Hotel do Cabo. Vamos para lá, está bem?

Perto do hotel, Ramiro ouviu um sinal de chegada de mensagem. Entraram no estacionamento subterrâneo, mas D. Matilde manteve-se sentada. Pelo espelho, Ramiro percebeu alguma perturbação no rosto da patroa. Parecia claramente abatida. Após uns momentos que lhe pareceram longos, quebrou o silêncio.

Esperamos um pouco, Sra. D. Matilde?

Sim, deixe-me descansar cinco minutos.

A passageira cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Mantinha o telemóvel na mão, como se se tivesse esquecido dele. Por pudor profissional, Ramiro passou a olhar ostensivamente para fora, após perceber um esgar ténue no rosto da patroa. Uns dez minutos depois, D. Matilde abriu a porta do carro:

Ajude-me a levar a minha nécessaire, Ramiro, se faz favor. Preciso de me estender um pouco.

Tomaram o elevador para o segundo andar e, aí, D. Matilde entregou a Ramiro uma chave eletrónica marcada 202. Da janela larga da suíte avistava-se uma ampla mancha verde de pinhal. Depois, o azul profundo do Atlântico. D. Matilde tirou o elegante bolero de cetim e sentou-se no sofá da zona de convívio.

Sente-se aqui, Ramiro; faça-me um pouco de companhia! Traga um martini para mim, aí do bar, e uma bebida para si.

O motorista escolheu um maple fronteiro ao sofá, receoso de impor familiaridade não desejada.

Há quanto tempo está connosco, Ramiro?

Vai fazer treze anos em outubro, minha senhora. Quando o Sr. Conselheiro comprou os vinhos de Bucelas, eu vim no pacote — ironizou. — Eu era lá motorista do patrão.

Ah, eu lembro-me de si, muito jovem, ainda com o cabelo todo preto.

Sim, a idade não perdoa.

Bons tempos! Naquela altura, eu ainda nem tinha cinquenta, ainda estava bem viçosa. Agora, é o que se vê!

Ó Sra. D. Matilde, por amor de Deus, a senhora está igual! — protestou Ramiro. — Parece que os anos não passam pela senhora.

Não diga isso, Ramiro, que eu tenho espelhos. E o espelho mais cruel são os olhos dos outros. Dantes, os homens comiam-me com o olhar; agora… Se soubesse o que me aconteceu hoje!

A sério, minha senhora. Acho-a muito bonita; sempre achei.

Nesta idade ganha-se muita insegurança. Gasto fortunas em tratamentos para a pele. O rosto tem este aspeto, que engana, mas o corpo… nem tudo está bem. — Levantou-se e rodou lentamente à frente de Ramiro. — Acha que ainda sou atraente? Sinceramente!

D. Matilde era alta e um pouco magra. Tinha olhos azulados e pescoço esguio. Usava cabelo louro sempre bem armado, toaletes caras e, quase sempre, delicados perfumes florais. As suas formas mostravam alguma alteração pela idade, que as roupas disfarçavam. As ancas estavam um pouco menos arredondadas e a cintura um pouco mais cheia, mas o rosto apresentava-se bastante liso e os seios eram mantidos no ponto correto. Ramiro lembrava-se dela como uma mulher deslumbrante e ainda era fácil reconhecer o seu aspeto de então.

Acho-a muito atraente, Sra. D. Matilde. Sempre achei.

Ah! Ó Ramiro, você é tão cavalheiro. Eu pedi que fosse sincero!

A sério, minha senhora; acho-a muito… desejável, se me permite.

O que lhe agrada em mim?

A elegância, os olhos, o rosto. Os lábios.

Só?!

Ramiro não respondeu logo.

Os seios. Sempre gostei dos seus seios — atreveu-se, perante o silêncio expectante e recetivo da patroa. — Não leve a mal. Às vezes, tinha que fazer um grande esforço para conter o meu olhar de fugir para eles.

D. Matilde manteve-se silenciosa a fitar Ramiro, como que a certificar-se da sua sinceridade. No passado, embora suspeitasse que ele a admirava furtivamente, nunca lhe notara o menor sinal desrespeitoso. O rosto dele denotava uma genuína dedicação pessoal que ultrapassava o mero empenho profissional. Naquele momento, D. Matilde experimentou um sentimento de reconhecimento e um apelo de generosidade.

Gostava de vê-los, Ramiro?

Este levantou-se surpreendido e visivelmente pouco à vontade:

Ó minha senhora, de maneira nenhuma; quero dizer, não me atrevo a dizer que sim.

D. Matilde desapertou lentamente os botões da blusa de seda branca sem mangas que trazia e deixou-a solta. Pela abertura generosa, o volume bojudo e sedoso dos seios revelou-se saliente por sobre as copas alvas e delicadas do sutiã. Ramiro, apesar de ser homem vivido, não pôde evitar uma aceleração cardíaca que a respiração denunciava. D. Matilde aproximou-se:

Toque-lhes! Pode tocar-lhes.

Ramiro estendeu devagar a mão esquerda aberta, enchendo-a de seio e copa. Apertou delicadamente, enquanto semicerrava os olhos. D. Matilde rodou o corpo, oferecendo as costas e o fecho da peça íntima. Ramiro abraçou-a por detrás. Os seus braços cruzaram-se no peito de D. Matilde, penetrando por sob a base do sutiã e enchendo ambas as mãos com os frutos desejados. Manteve-se uns momentos a desfrutar a suavidade tensa das carnes, até que D. Matilde abriu o fecho do sutiã e o retirou. Ficou de frente para Ramiro, que parecia aparvalhado de desejo a mirar o par de seios, relativamente pequenos, suspensos no tronco estreito da sua senhora.

Quer que tire mais alguma coisa, Ramiro? — incitou D. Matilde, inclinando a cabeça em trejeito insinuante.

Deixe só a gargantilha, minha senhora! — pediu Ramiro, num sussurro rouco.

A azáfama que se seguiu podia presumir-se de sexo louco e desvairado, mas o corpo de Ramiro, que num primeiro momento parecia ir rebentar, mostrava-se preguiçoso e refratário.

Desculpe, minha senhora, deve ter sido da cerveja do almoço.

Deixa lá o “minha senhora”, Ramiro, pelo menos agora — sorria-se D. Matilde. — E olha que eu não sou de cristal; podes ser mais bruto, se quiseres.

E dava o exemplo com palmadas rijas no rabo de Ramiro. Este incremento de intimidade pareceu desinibi-lo. Seguiu o conselho e retaliou longamente, o que pareceu restaurar o seu desempenho e resultou em nádegas vermelhas em D. Matilde. Mais tarde, reconheceu para si próprio que grande parte do prazer adveio dos açoites dados. Além da alegria da sua parte solar por fornicar uma mulher ainda bonita, a sua parte escura, até aí inibida, rejubilara também por espancar a patroa. A gratificação era completa. D. Matilde parecia também muito distendida. Os gritos que dera tinham sido a consequência inevitável da mistura sofisticada de prazer e dor. Acendeu um cigarro longo e fino e contou:

Uma vez fiquei assim com as nádegas por ter dito ao meu pai que ele era um assassino sem coração. Eu devia ter uns treze anos quando começaram os massacres de colonos em Angola. Nós tínhamos uma roça de café. Vieram os turras e mataram três empregados brancos nossos. Os meus pais tinham ido levar-me a Nova Lisboa, para a escola. Estava num colégio interno. Quando voltaram e o meu pai se deparou com aqueles corpos mutilados, juntou um grupo de homens, foram a uma aldeia que diziam que apoiava os turras, e enforcaram nove homens, pretos, claro. Foi muito falado o caso dos nove corpos pendurados dum embondeiro. Durante muito tempo tive medo que os amigos e familiares retaliassem, que entrassem pela roça adentro e nos matassem a todos. Talvez por isso, casei cedo.

O meu marido — continuou — nunca me tocou com um dedo. Sempre nos demos bem. Talvez porque sempre fomos muito independentes. Sabes que até dormimos em quartos separados? — gracejou — mas é mais por causa dos ressonos. Quando ele andou metido naquela coisa dos negócios com a UILA — armas para lá, diamantes para cá — passava meses sem o ver. Depois, as idas à Lunda ficaram muito perigosas e ele optou por ficar cá definitivamente e investir em vinhos e bancos. Agora tramou-se com o BNN. Também não nos metemos muito na vida um do outro. Eu vou sabendo de um ou outro encantamento dele, mas vale a pena proibir as ondas de enrolar na areia? Isso também me deixa à vontade para algum devaneio que me apeteça. Não sei se ele já soube de algum, mas prefiro que não saiba. Apesar de sermos um casal mais ou menos aberto, não sei como iria reagir. A propósito, sabes o que me fez hoje o… — tu conheces — tinha combinado encontrar-me aqui com ele, mas sabes o que o sabujo me fez?: mandou uma mensagem — uma mensagem, vê bem! — a dizer que não conseguia trair o amigo e que, de qualquer modo, tinha uma reunião de trabalho. Detesto sedutores mal assumidos.

Para D. Matilde, este episódio que começara mal, acabara por ter um desfecho gratificante. Já vestidos, D. Matilde, num impulso de mulher abastada, e em gesto teatral, desapertou a gargantilha de pedras azuis e estendeu-a a Ramiro.

Ramiro, quero que fique com esta gargantilha. Tome!

Oh, Sra. D. Matilde, por amor de Deus; não posso aceitar.

Aceite! Quando a olhar, lembre-se de mim só com ela em cima do corpo. Espero que seja uma recordação aprazível.

Claro que é, minha senhora! Sem dúvida! Não a vou esquecer nunca mais. Mas, esta joia não foi uma prenda do Sr. Galhardo?

Foi, mas era melhor que não ma tivesse dado. Acho que ele a comprou para a amante do Estoril e ma deu porque ela não gostou. Soou-me. Ele esqueceu-se que a pedra do signo dela é a esmeralda! Bem, vamos embora. Não é preciso dizer que este é um segredo nosso; que não seria bom para mim se alguém o soubesse, muito menos para o Ramiro!

Joaquim Bispo

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Este conto foi selecionado para a 52ª edição (julho/agosto de 2025) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 86 a 90):

https://drive.google.com/file/d/1gWrCTkOKrEO8xjuGwnWx8Nep72Uo98q2/view

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Imagem: Lucian Freud, E o noivo, 1993.

Coleção privada.

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10/08/2025

O Livro de Labrão

 


Por aqueles tempos, Labrão subiu ao Monte Scopus e postou-se no monumental miradouro de onde se avistava uma grande fatia da cidade velha de Jerusalém. Daquela posição dominante, gostava de contemplar a que tinha sido a grande capital dos Hebreus e que um dia voltaria a ser. Ali se erguera o templo de Salomão, destruído pelos Babilónios, primeiro, e pelos Romanos, depois.

Quando se voltou, viu três homens parados, a fitá-lo, magníficos no seu esplendor, e logo reconheceu que o Senhor estava entre eles. Quis prostrar-se de rosto no chão, mas eles não o permitiram.

Deixa-te disso. Estou farto de mesuras hipócritas.

Vinde a minha casa, para que Vos prepare uma refeição. Comprarei o carneiro mais gordo do talho kosher.

Agora não tenho tempo. Enquanto te banqueteias com as sementes de todas as ervas, os frutos de todas as árvores, todos os peixes do mar, todas as aves dos céus e todos os animais que se movem na terra, que Eu te dei, há milhares de irmãos teus que tu matas à fome.

Labrão engoliu em seco. Agora também o Senhor vinha com o discurso de ódio dos inimigos de Israel.

Todos os meus irmãos têm o que comer e Vos estão agradecidos. Os meus inimigos que se danem!

E o que te leva a pensar que os teus inimigos não são teus irmãos e não têm direito ao banquete que Eu prometi a todos os Homens?

Vós sempre dissestes que nós éramos o povo escolhido.

Arrependo-me amargamente dessa declaração. Fiados nela, criastes um sentimento etnocêntrico de exclusão de todos os outros povos. Uma xenofobia repelente. Que vos levou a uma incapacidade de manter boas relações com os vossos vizinhos, ao longo dos tempos. Enganei-me terrivelmente. Vou escolher outro povo.

Não pareciam palavras do Senhor. Labrão tentou recordá-lo das antigas promessas.

Vós prometestes-nos a terra de Canaã, mas quando voltámos da grande diáspora, encontrámo-la ocupada por homens de um povo que não Vos adora. Por isso os expulsámos das suas casas, que nos pertenciam por dádiva Vossa. E os vamos matando de todas as maneiras e empurrando para o deserto, para que pereçam.

O clamor de sofrimento que Me chega das terras da Palestina e de todas as terras em volta não é mais tolerável. Afinal, transformastes-vos nos mais hediondos seres da Criação. E por isso vou ter de destruir-vos. Vou destruir Israel. O genocídio só a Mim pertence.

Labrão ficou uns momentos calado, os olhos muito abertos. Dominando o pânico, tentou apelar à compaixão do Senhor.

Mas nós somos justos, Senhor, seguimos a Vossa palavra e os Vossos ditames; nem todos são como dizeis. Se houver um milhão de justos em Israel, destruireis o justo com o culpado?

Se encontrar em Israel um milhão de justos, perdoarei a nação por causa deles.

Pode ser que não haja em Israel mais de cem mil justos. Ainda assim destruireis a nação e matareis cem mil justos?

Não; se encontrar cem mil justos em Israel, não o destruirei.

Talvez muitos justos estejam temporariamente tomados pelo espírito do mal e não encontreis em Israel mais de dez mil justos — regateava Labrão, até ao limite. — Destruireis Israel por noventa mil justos temporariamente confusos?

Não. Pouparei Israel se encontrar dez mil justos no país.

Os três homens afastaram-se e entre eles ia o Senhor. Labrão voltou para casa, com o coração apertado. Não tinha a certeza que o Senhor encontrasse dez mil justos em Israel, segundo este entendimento inesperado Dele.

Na manhã seguinte, Labrão voltou ao miradouro do monte Scopus. Ia tão ou mais angustiado que no dia anterior, porque, bem cedo, sentira convulsões da terra e ruídos tão profundamente graves, como nunca tinha ouvido. Olhou. Do ocidente, lá onde ficava Telavive, levantavam-se grandes rolos de fumo negro irisado. Mas também a noroeste e a sudoeste. Rasgou as vestes e prostrou-se por terra. Agora que Israel estava tão próximo de dominar todos os territórios de Canaã, acontecia uma catástrofe destas. Maldição!

Soube depois que ao alvorecer tinha chovido enxofre e fogo sobre as principais cidades de Israel, onde se localizavam as estruturas militares e administrativas do país, que ficaram reduzidas a cinzas brilhantes e fumegantes, sem que se conseguisse determinar a origem do bombardeamento.

Os sobreviventes dos colonatos e das pequenas localidades que não tinham sido atingidas, pareciam ter caído num estupor paralisante e mostravam-se incapazes de resistir à terrível reação dos palestinianos, que, armados de paus e pedras, se vingavam de dezenas de anos de espoliações, humilhações, agressões e mortes, chacinando quantos judeus encontravam. Toda a Cisjordânia foi limpa de colonatos, ainda nesse dia. Os Estados Unidos apressaram-se a enviar tropas paraquedistas, tentando estancar a matança e manter a presença americana na sua bem-amada colónia.

A seguir, apoiados em declarações antigas do Paquistão, atribuíram o ataque a esse país islâmico, possuidor de armas nucleares, e, verberando o seu “espírito antissemita”, bombardearam-no intensa e extensivamente, fazendo-o recuar, tecnologicamente à Idade da Pedra.

A comunidade internacional declarou, pouco depois, a criação de dois estados desmilitarizados no espaço global da Palestina e de Israel, pelas fronteiras definidas pela ONU em 1948, mas, desta vez, asseguradas por forças de manutenção da paz, e empenhou-se a reconstruir Gaza, terraplanada por Israel, e Israel, pulverizado sabe-se lá por quem.

Mas o espaço do antigo estado de Israel não era apelativo para os judeus do mundo inteiro, como fora antes. E os vários milhões de palestinianos, que tinham passado dezenas de anos em campos de refugiados nos países adjacentes, voltavam à Palestina à procura da casa dos seus antepassados e eram agora uma mole ameaçadora para qualquer veleidade judaica de reocupação.

Em sonhos, o Senhor apareceu de novo a Labrão. Este prostrou-se de imediato, de rosto no chão e implorou:

Senhor Deus, Criador do Universo, tende compaixão do vosso servo que muito Vos ama.

Não sejas palerma. Tens de saber distinguir uma mentira caridosa, de uma declaração de probabilidade razoável. Abraão e os teus outros antepassados aceitavam essa minha declaração, mas eram pastores e criadores de gado. Agora tu… Tu que já tens consciência do tamanho do Universo, diz-me: achas possível que um hipotético “Senhor Deus do Universo” prestasse atenção a um grupúsculo étnico, de uma espécie irrelevante, e o convencesse que é o suprassumo dos viventes?

Mas, Senhor, se não sois quem nos dissestes, quem sois Vós?

Aos teus antepassados rústicos disse que fora Eu o Criador do Universo — era o que estavam preparados para ouvir; a ti digo que sou um visitante vindo do futuro. É a explicação para que estás preparado.

Labrão abriu muito os olhos.

Nunca tinha pensado nessa hipótese…

A minha natureza é complexa. Talvez outros homens venham a estar preparados para outra explicação…

Labrão acordou, alagado em suor. O quarto estava vazio, mas sentiu um cheiro a metal aquecido. Talvez fosse apenas mais um miasma da nuvem nauseabunda que cobria os céus de Israel. Levantou-se, fez as abluções rituais e depois prostrou-se em oração, tentando reprimir uma animosidade por este Deus que não reconhecia. Em vão.

«Visitante do futuro? Aldrabão! Um dia, o verdadeiro Deus voltará. Que pena os serviços de espionagem não terem detetado a entrada no país deste terrorista. Deviam tê-lo bombardeado antes que atacasse Israel!»

Joaquim Bispo

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Imagem: O Senhor aparece a Abraão perto de Sodoma (ícone). Título, autor, data e localização da obra não encontrados.

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