10/08/2024

O riso escarninho

 


Na altura, a incriminação não era opção. O meu desejo mais profundo era mesmo matar Estêvão Arunhos, um antigo mestre de obras e meu vizinho do rés-do-chão. A antipatia vinha de há muito, logo desde os primeiros encontros, quando me mudara para aquele condomínio. O seu ar boçal e desdenhoso manifestava-se em comentários mordazes ao meu modo de vestir, nos olhares irónicos, nos risos alarves, quando me via acompanhado. Não havia razões de reparo, a não ser a sua mentalidade retrógrada e fascista.

Durante mais de dois anos, revesti-me de compreensão e paciência, acreditando que o tempo acabaria por levá-lo a perceber que o meu modo de estar e de viver em nada perturbaria o sossego do prédio e o bem estar dos seus moradores. Cheguei mesmo a falar com ele de maneira cordata, apelando para a sua humanidade e para a paz no prédio. Em vão. Até me pareceu que tinha redobrado as provocações e os insultos, quase sempre de maneira indireta, de tal modo que eu não poderia, legalmente, afirmar que me insultara.

Então, um dia, depois de mais uma gargalhada escarninha que muito incomodou o meu novo companheiro, eu, Emanuel Crispim, resolvi abatê-lo. Uma pessoa daquela índole não tinha correção possível, não tinha um suficiente verniz civilizacional que lhe permitisse conviver com os seus semelhantes.

Depois da decisão tomada, comecei por obrigar-me a tomar consciência profunda de que nada podia revelar a ninguém desta minha decisão e das ações que me exigiria. Sabia bem que um segredo mal guardado já levou à prisão e ao cadafalso mais justiceiros pelas próprias mãos do que as investigações policiais. Em seguida, passei a matutar no modo e na arma para o abater. Tinha de ser longe do prédio para, tanto quanto possível, me manter insuspeito. Convinha até que eu arranjasse um álibi, por exemplo, que fosse visto longe do local da execução, na data e hora calculadas.

Ocorreu-me, naturalmente, o óbvio: uma pistola, um local isolado, um tiro à queima-roupa. Tudo isto constituía obstáculos. Teria de comprar a pistola, mas a quem e onde? E o local deserto... Como, se o homem estava reformado e não se afastava de casa mais do que ir ao café e às outras lojas do bairro?

Ao vê-lo entrar na loja de obras e ferragens tive a revelação de qual seria a arma — uma pistola de rebites industrial que comprara um ano antes numa feira de velharias, na rua, só porque engraçara com o potencial concetual da maquineta. Estava guardada na arrecadação, desde então, e ninguém sabia que eu a tinha.

Desde esse momento, tudo começou a encadear-se. A arma, como ferramenta de operários e industriais da construção civil, era a ideal, se eu quisesse simular um suicídio ou uma vingança antiga de algum trabalhador enganado pelo contratador. Então, ouvi uma conversa no café, que me fez perceber que um vizinho de outro prédio fora operário da construção e que também não engraçava com o malfadado Estêvão das obras. Dizia que este lhe ficara a dever umas horas extraordinárias.

Esta nova informação caiu como sopa no mel. A desavença entre eles era conhecida e, melhor que tudo, o antigo operário amanhava uma horta clandestina numa zona próxima, mas bastante escondida pela vegetação local. Uma aproximação furtiva seria fácil para mim. Foi esta diferente exposição a olhares que me determinou a trocar de alvo. Matar este hortelão não me trazia qualquer alívio da vingança, mas permitia-me incriminar o Estêvão, tanto pelo conflito conhecido como, sobretudo, pela tão específica arma do crime. A pistola de rebites era a cara do antigo mestre de obras… E nada me ligava à vítima, nem um prédio comum. Não mataria quem me atormentava, mas ele haveria de bater com os costados na prisão por muitos anos!

A partir daí, a preparação tornou-se bem mais rápida. Escolhi um período em que o antigo operário ainda labutasse na horta — as horas do fim do dia, que, além disso, proporcionavam um lusco-fusco cúmplice — e o Estêvão não pudesse provar que estivera com alguém — costumava recolher antes das seis da tarde e já não saía.

A execução não foi bonita, nem digna de maior descrição. No dia marcado, meti-me pelo arvoredo, bem longe da horta do sacrificado, aproximei-me pelas costas tão silenciosamente quanto possível e, quando já estava a poucos metros, saltei para junto dele e disparei-lhe o rebite na parte de trás da nuca. O homem caiu desamparado sem um ai e eu afastei-me rapidamente, indo sair do arvoredo outra vez lá longe. Mas antes, limpei a arma do crime e atirei-a para um silvado, com a esperança de que fosse facilmente encontrada pela Polícia.

A morte foi descoberta no dia seguinte. A Polícia andou por aí a perguntar informações aos vizinhos, mas não vieram a minha casa. O Estêvão foi interrogado, mas, inexplicavelmente, não foi preso. Os vizinhos foram perentórios a afirmar a profunda inimizade dele com o morto, o que configurava um indício mais do que suficiente para o funesto desfecho, mas a Polícia não pareceu ter ficado convencida.

Durante semanas, nada mais se soube da investigação. Aparentemente, a Polícia tinha dado o caso como “sem pistas” e, provavelmente, arquivaria o processo, mais tarde. O Estêvão continuou a passear-se pelo bairro, para alguma irritação dos vizinhos, e, talvez por isso, deixou de ser provocatório para comigo.

Já andava a ponderar avançar dessa vez mesmo contra ele, embora sem grandes ideias, quando, certa madrugada, a Polícia me entrou porta adentro e me levou preso.

Eu não cabia em mim de perplexidade e acabei por confessar tudo. Mais do que a surpresa da situação, havia perguntas que martelavam na minha cabeça: por que não tinham prendido o Estêvão, mas tinham vindo a minha casa com tal certeza? Tentei que o inspetor que tratara do caso esclarecesse as minhas perguntas, sem sucesso.

Foi por alturas do julgamento que percebi o que tinha acontecido, através dos jornais sensacionalistas: o Estêvão apresentara um álibi — tinha obtido testemunhos pessoais e provas informáticas, com registos de imagem, de que nessa tarde estivera muitas horas num site de encontros masculinos; e eu fora apanhado por uma denúncia: a mais recente visita secreta de casa do Estêvão tinha sido meu companheiro tempos atrás e, coscuvilheiro e metediço, tinha andado a meter o nariz nas minhas coisas e visto a pistola de rebites. O julgamento foi rápido e nem sequer estranhei a dureza da pena de prisão: 25 anos.

Joaquim Bispo

*

Por seleção em concurso literário, este conto integra a coletânea Procurados — “policial do ponto de vista do criminoso” — publicada pela editora brasileira Illuminare, em novembro de 2019.

*

Imagem:

Peter Paul Rubens, Dois Sátiros, 1618-1619.

Alte Pinakothek, Munique.

* * *

9 comentários:

  1. Excelente, como costuma ser. O ambiente é tão descritivo da vizinhança de aldeia, e de algumas zonas de cidades: o controlo, o mal-dizer da diferença, a necessidade de aparência social, o pôr fora o que vai mal dentro, etc., etc. E a surpresa final que é sempre uma delícia :)
    Obrigada, Lia

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado eu, Lia, por esta apreciação extensa e atenta.
      Descrever a rua em que se vive pode refletir muitas outras.
      Joaquim Bispo

      Eliminar
  2. Delicioso um pouco de humor negro à mistura. Mande mais. Abraço. Guinha

    ResponderEliminar
  3. Quando a cabeça pensa mal….. mais tarde ou mais cedo o corpo é que paga. Mas gosto mesmo muito do desenrolar da narrativa. Abraço PARABÉNS

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, Gervásio.
      As prisões estão cheias de executores de crimes “perfeitos”.
      Abraço!

      Eliminar
  4. No regresso de um Cruzeiro que fiz com a família mais próxima pelo mar Adriático e Jónico desde Veneza até à Grécia e particularmente a Atenas, foi com muito prazer que saboreei mais uma história do meu ex-colega e amigo a quem dou mais uma vez os parabéns. Só que preferia ter refletido em mensagens e notícias mais assertivas e motivantes.
    Crimes reais ou inventados não me seduzem. Prefiro ler coisas mais cativantes e elucidativas que em vez de conduzirem os criminosos à cadeia nos levem a aplaudi-los como heróis quando sobem ao pódio que ambicionam, como acontece nos Jogos Olímpicos que este ano aconteceram e acontecem ainda em Paris em ambiente de grande esplendor, e como era com os Gregos de outrora.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado, Dr. Moutinho. Agrada-me que continue a ler-me, mesmo quando os assuntos são cínicos e negativos.
      Seria luminoso, mas muito sensaborão ler as histórias dos vencedores, acredito. Quem conta a história dos que ficam em 2º, em 6º, em último? Que dramas aí se vivem?
      As histórias da competição estão cheias de zonas escuras, muita frustração e pouca solidariedade. Mas só nos mostram o brilho dos metais, mais ou menos nobres.

      Eliminar
    2. Por isso mesmo é que os escritores e humoristas como o nosso Bispo deveriam aproveitar os momentos altos em que se exibem os famosos para difundir mensagens que levem a Humanidade a ser cada vez mais sustentável, solidária e próspera, e não esquecermos nunca a importância e valor de termos amigos de peito, verdadeiros sinceros.

      Eliminar