10/06/2022

A angústia do dirigente na iminência do embate

 

Estou ansioso, Lampreia! Achas que vamos conseguir mostrar um bom jogo no domingo?

Presidente, estou convencido de que vai ser dos melhores da temporada.

Ah, ótimo! Adoro desfrutar de uma partida de futebol, no seu conceito mais puro: o embate vigoroso entre duas equipas de garbosos mancebos, virtuosos no tratamento de uma bola com os pés, envolvidos numa sã competição inspirada no lazer varonil, e comandados por duas mentes altamente estratégicas que analisam ao pormenor as forças e as fraquezas da equipa adversária.

Felizmente, nisso, somos dos melhores.

O adversário é difícil, hem!?

Muito difícil! Tive de chegar aos oitenta mil.

Então, quer dizer que estamos com força anímica para vencer!

Com tendência para 3–1. É o que está combinado.

1?

Presidente, fica sempre bem um golo de honra, para abrilhantar a nossa vitória.

Mas, atenção; a forma física deles parece estar em alta.

Sim, mas a preparação física de véspera vai incluir uma jantarada bem regada. Só para alegrar um pouco a noite.

Jantarada é uma boa solução. E os nossos, estão motivados?

Muito! Já lhes lembrei que a claque ficaria muito aborrecida se eles não se esforçassem.

Ah, pois ficaria! E não é para brincadeiras…

Para nenhum se esquecer disso, já marquei uma conferência de balneário para a próxima sexta.

Conferência de balneário parece-me bem. E os árbitros?

O costume: nevadas ou bombons, conforme os gostos. Nevadas russas e chocolatinhos de Cabo-Verde.

Não há nenhum com gostos menos exóticos?

Um preferiu doces de São Gonçalo de Amarante.

Muito bem, Lampreia! Gosto de ver tudo bem encaminhado, mas, sabes, às vezes, temo que este desporto transmita, aos mais novos, uma imagem de competição desregrada; que se perguntem onde fica o desporto pelo desporto, o prazer do esforço físico, o ideal de que o importante não é a vitória, mas sim a participação.

O clube tem sempre a participação como lema. Queremos que as claques compareçam massivamente no estádio, com todos e com tudo — cornetões, matracas, very lights —, sobretudo quando a bancada adversária for poderosa. A bola é redonda e o nosso clube não tem proteção celeste, digamos assim.

Muito bem, Lampreia! E a pedagogia social, o fair play, a gentileza para com o adversário? Não nos esqueçamos de que os jovens copiam, na vida de todos os dias, o que observam em campo!

Se o Paulinho Quebra-ossos tiver que meter os pitões na fronha do Juvenal Gazela… é chato, mas é a vida. Às vezes, é a única maneira de acalmar um espírito demasiado fogoso e impedir um golo certo. Aí, é altura de o Juvenal mostrar o seu fair play e dar a outra face, não é?

Isso mesmo. Aprecio o espírito cristão.

Os espectadores gostam sempre de ver uma boa metáfora bíblica. Estamos à espera de quarenta mil.

Como é isso, Lampreia? Pensei que o estádio só comportasse trinta e três mil!

É! Mas não pude suportar a imagem de sete mil rostos juvenis, chorosos por não conseguirem ingresso.

Ah! Muito bem, Lampreia!; vejo que tens bom coração.

Obrigado! O desporto sadio toca-me fundo. Acredito que é o melhor sustentáculo de mentes saudáveis e um formidável gerador de cidadania responsável.

Estou absolutamente de acordo. Isso e uma imprensa livre que o promova e o valorize.

Sim, sai amanhã mais uma dose das escutas aos nossos adversários, que enviei aos jornais de referência: Offside, Penalty e Hat-trick.

É isso que precisamos: jornalismo desportivo de investigação.

Já avisei os repórteres que a avença está a pagamento.

Perfeito, Lampreia! O desporto deste país nem sabe quanto te deve. Nem o clube de todos nós.

Cerca de seis milhões. Já fiz as contas. Mas não se preocupe; o perdão do empréstimo bancário do Banco de Benemerência Nacional ao clube já está assegurado.

Nem sei como te agradecer, Lampreia!

Sugiro um apoio vigoroso do clube à minha candidatura autárquica!

Podes contar com ele, Lampreia! Um amigo na Câmara é bom para o clube e é bom para o desporto. Bola para a frente!


Joaquim Bispo


Imagem:

Caravaggio, Os batoteiros, c. 1594.

Museu de Arte Kimbell, Fort Worth, Texas, EUA.

*

Este texto foi um dos selecionados para a 33ª edição (maio/junho de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 89 a 90).

https://drive.google.com/file/d/1lA0AUETjL28cvRL6G5_y6G6Ltk2Aqk1g/view

* * *

5 comentários:

  1. O futebol é um mundo à parte , assunto que eu nunca quis entender , nunca tive muito jeito para desporto e dicussão adjacente , Mas vendo bem ,sempre achei , que era politica , mas mais assanhada , e para o demonstrar basta encontrar 2 adeptos , fanàticos a seguir a um jogo . O que eles discutem , alguns ficam zangados para o resto da vida. VIVA O PENÁFIEL CARAGO.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Na minha opinião, o futebol não é um mundo à parte, Exibe os valores de cada um, talvez os amplifique, mas são os mesmos das outras áreas da vida pessoal, social e política.
      E se a política fosse encarada e vivida pelo que é ( a procura e defesa do BEM COMUM), e não pelo que compactuamos, nunca nos ocorreria metê-la no mesmo saco da corrupção e do cinismo que o conto escancara. Por isso observo que os valores do futebol são os valores maioritariamente aceites e validados na sociedade,

      Eliminar
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  3. Obrigado, Anónimo de 17/6.
    O futebol parece ter a capacidade de que nos identifiquemos com algum dos pequenos bairrismos em luta e com os seus personagens, como se fossemos nós os protagonistas. Mas, como ferramenta de enriquecimento e poder, vê-se atulhada de vilões difíceis de afastar.
    O que se passa com alguns dos seus aspetos deveria merecer-nos um olímpica indiferença, já que não parece possível obter hombridade e sensatez.

    ResponderEliminar
  4. Curioso comentário, Anónimo de 20/6.
    Claro que as atividades da sociedade começam por ter valores admiráveis (e continuam a tê-los e a merecê-los por muita gente que as pratica), mas há sempre tentações de obter vantagens sem o esforço exigido palas regras do jogo. E, segundo parece, não só por este texto crítico, mas pelas mais variadas crónicas críticas sobre o fenómeno, não parece “maioritariamente aceite e validado na sociedade”. Parece é que quem corrompe o fenómeno até parecer uma atividade de “bas fond” vai conseguindo prosseguir esse caminho, apesar do clamor que a atividade batoteira suscita.
    Não quero ser exemplo, mas, se o futebol tentasse viver da minha contribuição voluntária, já teria morrido à fome há muito.
    Abraço!

    ResponderEliminar