10/10/2022

Atlântida era uma ilha

 



O continente de Atlântida era uma ilha

Que existia antes da grande inundação

Na área que agora chamamos Oceano Atlântico.

Donovan — Atlantis


Paulo estava a dar as primeiras chuveiradas no “Ruca”, quando recebeu uma chamada em tom de secretismo de Henrique, o seu ex-colega do secundário e companheiro esporádico de pesca no paredão de Paço d’Arcos.

Podes falar? — perguntou Henrique, encostado ao ancinho metálico, a um canto de um relvado de Odivelas que fora incumbido de varrer nessa manhã pelo chefe da brigada municipal de jardineiros.

Espera só um momento — pediu Paulo, a arranjar tempo para ligar o sistema de auricular ao telemóvel. — Diz lá!

Voltaste a saber mais alguma coisa da Andreia? A “Coca-bichinhos”!

Henrique referia-se a uma colega de ambos do secundário, morena e de oculinhos, que tinha sempre boas notas, especialmente a Estudo do Meio. Na altura, chegaram a fazer todos parte do mesmo grupo, mas a faculdade separara-os: Henrique fora para Antropologia, Paulo para Veterinária, e Andreia para Oceanografia.

Não, porquê? — respondeu Paulo, de novo a aspergir com a mangueira o cavalo de pelo avermelhado da escola de equitação de Fontanelas, em que trabalha a recibos verdes.

Encontrei uma publicação dela na Net, uma tese. Parece que está a fazer o mestrado em Paleoceanografia na Universidade do Algarve.

Ah, fixe! Conseguiste o contacto?

Não, na tese não tem nada. Nem encontro a página dela no facebook. Mas bem que gostava de lhe falar. Se calhar, um dia destes, ligo para a Universidade. Queria tirar umas dúvidas… A tese dela deu-me volta à cabeça — desabafou Henrique, também de auricular no ouvido e de novo a recolher a folhagem que as árvores largaram sobre a relva.

Então, porquê? Agora interessas-te por Oceanografia?

Lembras-te da nossa conversa sobre lendas, há quinze dias? — lançou Henrique, sem responder à pergunta. Falámos da Atlântida… Porque tínhamos estado a ouvir o velhinho Atlantis, do Donovan. Estive a pesquisar sobre esse mito e fui parar à tese da Andreia — esclareceu Henrique. — É por isto que te estou a ligar: ou o relato do Platão sobre a Atlântida reflete um acontecimento histórico, no sentido de verdadeiro, acontecido, ou a coincidência é inacreditável. Mas depois falamos melhor. Vamos lá no domingo?

— … Atlântida? Oh, pá, um continente no meio do Atlântico, com uma civilização avançadíssima, e que ainda ninguém encontrou… — gracejou Paulo, depois de uma hesitação, ao ouvir na mesma frase “Atlântida” e “acontecimento histórico”.

Sentindo que o ponto da conversa era crucial, Henrique encostou a vassoura ao carrinho de dois contentores cilíndricos em que tem acumulado os resíduos vegetais do jardim e acendeu um cigarro. Parece-lhe que o fumo o ajuda a pensar.

Ok, ok! Sabemos que os mitos são construções mentais em dívida com a realidade, mas, mesmo assim, tomamos alguns senão como verdades, pelo menos como conceções do mundo que estruturam as nossas vidas. Talvez por terem caráter inspirador e gerador de atração sobre as pessoas — nós. Olha os anjos-da-guarda, olha as fadas, olha as mouras encantadas! Ao longo dos séculos, temos vivido, e vivemos, embebidos e em boa harmonia com as mitologias da época, não é verdade?

Sim, sem dúvida — condescendeu Paulo, a espalhar espuma sobre o pelo do cavalo, que vai buscar a um balde com uma esponja. — Os mitos fazem parte da nossa cultura, formatam-nos, mas não passam de uma espécie de histórias de um universo maravilhoso, sem fundamento objetivo ou científico. Por isso é que lhes chamamos mitos, coisas pouco credíveis, crenças injustificadas.

Pois, mas, se calhar, alguns são sedimentações de algo real, mas cujos fundamentos se perderam — insistia Henrique.

Diz-me um!

Olha, por exemplo, o Adamastor dos Lusíadas é muito credível como hiperbolização das enormes vagas oceânicas! E as mouras encantadas como exorcização das tentações suscitadas pelas belas e enigmáticas mulheres berberes. E o dilúvio, que aparece na tradição oral de todas as culturas?

Tá bem, mas não me venhas falar da Atlântida! Só porque o Platão falou dela com tantos pormenores como se alguém a tivesse visitado, não quer dizer que não tenha inventado tudo!

Não! A descrição dele é realmente impressionante, mas qualquer escritor mediano consegue descrever um local com tal carga de pormenores que parece falar de coisas reais, que conhece. Não; eu falo de uma coincidência tal que leva a admitir que, se a Atlântida não existiu, há conclusões científicas indiretas que apontam causas para a sua destruição na data indicada por Platão.

Causas para a destruição do que se calhar não existiu? Que formulação mais bizarra! Que coincidência é essa? — interessou-se Paulo, a secar o cavalo com panos de feltro.

Assim à distância, é difícil explicar-te. Queria mostrar-te um gráfico das temperaturas médias do mar nesses tempos da Atlântida. Podemos falar disso no domingo? Apareces?

*

Claro que no domingo seguinte Paulo apareceu no paredão, munido de duas canas, um saquinho de isco e um balde. Atacou de imediato:

Então, mostra lá esse gráfico!

Henrique puxou do telemóvel e mostrou ao amigo um gráfico que supostamente representava as temperaturas médias na Gronelândia entre há 80.000 anos e o presente. Parecia haver uma constância relativa muito grande entre o início do gráfico e a zona de há 15.000 anos, altura a partir da qual o gráfico mostrava várias enormes oscilações, encerrando com outro longo período de grande constância entre os 10.000 anos e o presente, mas de temperatura uns vinte graus mais elevada.

Antes de mais, como é que sabem isso? — perguntou Paulo, desconfiado e farto de teorias da conspiração.

Não acredito que comeces por uma pergunta dessas… — começou Henrique, mas achou por bem tentar explicar: — Também não te sei detalhar as técnicas; sei que os cientistas engendram os mais incríveis processos para conseguirem as respostas que precisam, ainda que por métodos indiretos. Para a temperatura da Gronelândia, extraem amostras cilíndricas verticais da capa gelada e analisam a composição dos vários estratos temporais em quantidade e tipo de micropartículas. Para determinarem a temperatura da superfície dos oceanos ancestrais, medem o volume e o tipo de micro-organismos mortos, contidos no estrato de lodo de cada período. Esses seres eram plâncton que vivia à superfície e cada espécie tinha a sua maior população a determinadas temperaturas. Conseguem assim aproximações muito fiáveis. Foi nessas medições que a Andreia trabalhou, para a tese.

Ok, acredito — avançou Paulo, a afastar a chateza do discurso técnico. — Mas o que é que a Atlântida tem que ver com micro-organismos?

Então, relembrando: Platão escreveu no Timeu e no Crítias que um sacerdote egípcio contou ao grande Sólon que, para lá das colunas de Hércules — o atual estreito de Gibraltar —, havia uma ilha enorme, em pleno Oceano Atlântico, com uma grande civilização e um grande poderio militar, mas que foi destruída por terramotos e se afundou 9.000 anos antes dele, Sólon, isto é, 9.600 anos antes de Cristo.

Hum, já não retinha esses pormenores. E então?

Então, olha para o gráfico e diz-me o que vês aqui, nos 9.600 anos antes de Cristo… — apontava Henrique.

Paulo olhava, mas não tinha a certeza do que o amigo queria mostrar. Henrique prosseguiu, apontando com o dedo:

Depois de um longuíssimo período glacial, iniciado mais ou menos há 80.000 anos, houve um violento aquecimento, aí há 14.500 anos. É este traço quase vertical. Voltou a arrefecer, aos solavancos, durante quase 3.000 anos e voltou a subir violentamente há… 11.600 anos. Ou seja, 9.600 anos antes de Cristo. É este traço que mostra um aumento “brusco” de temperatura de uns 12 graus. Depois, pesquisa “Younger Dryas”!

Henrique fez uma pausa, à espera de uma reação.

Não dizes nada? — acabou por perguntar.

Tá bem, aqueceu, e daí?

Não é fantástico? Não achas extraordinária esta coincidência de Platão indicar, com tanta precisão, uma data na qual a ciência atual afirma que realmente aconteceu algo dramático, como prova este gráfico — um brutal aumento de temperatura? E, como é lógico, há uma consequência intimamente relacionada com o aumento da temperatura global — o degelo das calotes polares e a subida dos oceanos. Agora, andamos preocupados em travar o aumento global da temperatura no planeta nos 2 graus desde a Revolução Industrial, mas as temperaturas deduzidas de amostras da capa gelada da Gronelândia indicam, para aquela época, uma subida de uns 10 ou 12 graus, em poucos anos, talvez menos de cem. E outros estudos são perentórios de que o nível do mar subiu entre 100 e 140 metros, desde então. Não é fantástico? Essa subida terrível das águas pode ter simplesmente submergido a Atlântida, ou o aumento avassalador e repentino do peso de tanta água pode ter provocado fraturas dos estratos submarinos, com os consequentes terramotos.

Eh, pá! Realmente! Incrível! Isso é muito interessante!

A crosta terrestre é uma casquinha maleável, mas quebradiça. Por essa altura — ouvi eu numa aula —, terão desaparecido um ou dois quilómetros de espessura de gelo na Escandinávia, o que teve como consequência a elevação dessas terras. O peso dos gelos deslocou-se lá de cima para os oceanos, em água. É fácil aceitar que esta basculação de enormes massas pode ter provocado reajustes das placas submarinas, com abatimentos das placas e tsunamis consequentes. Talvez tenha sido essa inundação avassaladora que deu origem às lendas diluvianas que atravessam todas as culturas.

Paulo manteve-se uns momentos calado, a digerir o que ouvira. Depois, reagiu:

Tudo isso até pode ser verdade, mas não prova a existência da Atlântida…

Claro, eu também não afirmo isso, mas temos de concordar que é de uma coincidência perturbadora.

Depois de iscarem os anzóis, lançaram-nos para bem dentro do rio e instalarem-se nas rochas próximas. Continuar a discorrer sobre o tema do dia era a conversa mais aliciante que podiam ter, enquanto esperavam que algum peixe picasse. Como seria o estuário do Tejo, quando o nível do mar estava 100 metros mais baixo? A quantos quilómetros estaria a costa? Seria fácil aos africanos atravessar o Mediterrâneo, para a Europa. Talvez de ilhota em ilhota, com a ajuda de troncos, como Henrique ouvira numa aula sobre a Arte do Paleolítico.

Se calhar, não morriam afogados aos milhares, como nos nossos tempos tão evoluídos… — considerou Paulo, amargo.

E imaginaram o drama de todos os grupos humanos — vivessem na lendária Atlântida ou tão só nas inúmeras costas da Europa Ocidental —, ao verem as águas invadirem em poucos anos as suas áreas de instalação, a cada ano um pouco mais acima. Refletiram em como estaremos em vias de viver tempos com problemas semelhantes — de que a subida das águas é só o mais evidente —, devido ao inquestionável aquecimento global.

Sabes que já se vão apanhando, nas nossas costas, peixes que antes só se encontravam em meios sub-tropicais? — adiantou Henrique. — Li há dias. Pescada do Senegal, sável africano, peixe-porco…

E questionaram a clarividência das respostas de agora, que não parecem muito diferentes das de então.

Nesses tempos, talvez se invocassem as divindades marinhas e se realizassem sacrifícios para que elas se tornassem propícias — conjeturou Paulo. — Agora vemos esforços igualmente inglórios e de aparência mágica, como é tentar travar o avanço do mar lançando para as praias ameaçadas milhares ou milhões de metros cúbicos de areia… Que o mar leva de seguida.

O Homem continua a não ter uma noção clara da sua pequenez, em face de forças desta amplitude. E se os oceanos subissem 100 metros em cinquenta anos? — dramatizou Henrique.

A conversa trouxera à tona da consciência alguma inquietação que habitualmente se mantinha submersa. Numa consulta ao smartphone, Henrique mostrou-se alarmado.

Está a acontecer. Olha para isto!

A notícia ecológica do dia era a separação de um iceberg de 6000 quilómetros quadrados, da placa antártica. Um vídeo aéreo mostrava uma falésia de gelo sobre o oceano, com uma extensão a perder de vista.

Diz aqui que é do tamanho do Algarve e que corresponde a mais de 1.100 quilómetros cúbicos de água — o cenho de Henrique carregou-se.

A conversa cessou. Mantiveram-se calados por muito tempo, olhos postos na água que até então sempre lhes parecera tão hospitaleira. A ténue sensação de estarem a prever o futuro — um futuro ameaçador — dava-lhes um aperto no peito.

Joaquim Bispo

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Imagem:

Luís Louro, Alice (na cidade das maravilhas), 2020.

Edição especial 25 anos. 

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10/09/2022

Semente

 


O mundo desabou para Cátia e Flávio quando souberam que não podiam ter filhos. O veredito dos testes de fertilidade, em que ambos tinham andado enredados nos últimos meses, foi o mais cruel: tinham de abdicar da aspiração de transmitir vida. E criá-la. De construir um homem ou uma mulher, desde o nada à vida adulta.

Casados havia oito anos, tinham vivido tranquilos quanto a esse aspeto. Quando o decidissem, o ventre de Cátia incharia, tinham por seguro. No ano em que ela fez 35, decidiram que era tempo de terem um filho. Não convinha adiar mais.

Foi o período de maior e mais livre intimidade do casal. Todos os anteriores constrangimentos de gravidezes indesejadas tinham ficado para trás. Já não era preciso usar preservativo, já não era preciso tomar a pílula. Ou interromper o coito, quando ela descansava da pílula e tinham acabado os preservativos. O desfrute mútuo fora profundo e total.

Passaram os meses, mas as tentativas mantiveram-se infrutíferas, no sentido literal do termo. Depois tornaram-se frenéticas e cada vez mais angustiadas. Pressentiam-lhes a inutilidade. Por fim, tinham entregado as suas dúvidas à ciência, que os desenganou de vez.

Não é uma notícia com que um casal, ainda na casa dos trinta, lide bem. Só uns dias depois começaram a recordar e a dar atenção ao que mal tinham ouvido da boca da médica: Flávio é que não podia ter filhos. A sociedade moderna, felizmente, já dispõe de “soluções” que permitem ultrapassar esta situação de esterilidade, quer pela inseminação artificial, com base num banco de esperma, quer pela adoção. E há tantas crianças à espera de um lar de verdade!

Durante semanas levantaram hipóteses e trocaram dúvidas. Era evidente para Flávio que Cátia deveria tentar ser mãe biológica, antes de enveredarem pela adoção. Ela só punha a reserva do dador que lhe calharia: podia ser muito feio, podia ter taras. E outros medos que a situação de ausência de controlo lhe levantava. A brincar, disse que, como o bebé não se ia parecer com o marido, o ideal era que fosse tão bonito como o seu ídolo musical Vicente del Cuore.

A ideia surgiu e fixou-se, como mancha de cereja em toalha de linho. Porque não? A ideia parecera absurda quando lançada, mas expressa por palavras passou a ter uma existência de possibilidade. Havia a possibilidade de Cátia obter o sémen de Vicente; porque não? Podia apiedar-se do problema de Cátia e doá-lo caridosamente. Ou podia agradar-se do corpo de Cátia, que era uma mulher bonita: corpo bem torneado, rosto oval, olhos azuis, cabelo castanho claro caído sobre o seio esquerdo. Assim Cátia conseguisse seduzi-lo. Quando a ideia ganhou vantagem sobre outras e as expulsou, Cátia passou mesmo a pôr a hipótese de sequestrá-lo e obter o sémen pela força do Viagra, caso outras soluções não resultassem. Flávio estava por tudo.

Como primeiro passo, Cátia definiu a inscrição no clube de fãs de Vicente del Cuore. Depois, aproximou-se do grupo que acompanhava o cantor a todos os espetáculos. Ficou logo um pouco desanimada quando soube que, daquele enorme grupo de trinta ou quarenta mulheres em que metade queria meter-se na cama com o ídolo, apenas duas se vangloriavam disso. E que del Cuore devia ser muito cuidadoso, pois usara preservativo em ambos os casos. Não valia a pena pedir-lhe ajuda procriadora. Nem iria ser fácil roubar-lhe o sémen.

Soube, no entanto, que o cantor, embora esquivo nos contactos de intimidade total, era pródigo em proximidades de prazer assimétrico: oito admitiram, com relutância envergonhada, que já tinham aceitado na boca do rosto a semente do irresistível ídolo pela qual a sedenta boca do corpo ansiava.

Por aí enveredou o seu plano. Pois que fosse na boca. Andaria sempre prevenida com um frasquinho de plástico. Se algum dia conseguisse o que antevia — e então isso parecia-lhe bem ao seu alcance —, disfarçadamente o verteria no frasquinho e de seguida, na casa de banho ou no carro, o introduziria em si, com um longo aplicador de plástico. Resultaria? Porque não?

Iniciou o jogo de sedução com olhares e sorrisos de coqueteria, na receção coletiva que o cantor sempre concedia às fãs depois de cada espetáculo. A que só ia em período de ovulação. Não queria desperdiçar a oportunidade, que provavelmente surgiria.

Uns sete meses depois, o artista deu pela flor que ela empunhava:

Minha querida, por si, pela beleza dessa flor que me quer oferecer, vou recebê-la a sós. Para me explicar por onde andou toda a minha vida essa sua beleza que suplanta a da flor.

O narrador dispensa aqui os pormenores sórdidos das técnicas e das manobras que um artista idolatrado usa de modo a transferir a veneração idealista de uma admiradora para práticas de submissão à sua vontade lúbrica. Neste caso, era um cordeiro que ingenuamente tencionava “comer” o lobo. Só que os lobos têm mais experiência que os cordeiros e antecipam as frágeis manhas das presas. Quando Vicente del Cuore percebeu que Cátia executava movimentos inesperados, logo após o orgasmo dele, deu-lhe um safanão que fez saltar o frasquinho e o seu precioso conteúdo para debaixo de uma cadeira. Levantou-se brusco e irado, abriu a porta do camarim e gritou pelo segurança:

Luís, tira-me já esta gaja daqui!

Cátia nem teve tempo de cobrir o peito. O segurança, entroncado e de braços tatuados, agarrou-a pelos cabelos, empurrou-a para outra divisão e obrigou-a a ajoelhar-se e a abocanhar o seu membro. Quando atingiu alguma excitação, forçou-a a dobrar-se sobre o tampo de uma mesa e penetrou-a brutalmente. A dor foi fina e cortante. Cátia gritou, mas levou um murro na cara, de través. Dois minutos depois foi abandonada no chão, ensanguentada, em lágrimas silenciosas.

Flávio levou muito tempo a conseguir que a mulher lhe explicasse o que tinha acontecido. Sentados no leito onde já tinham vivido tantas euforias, ela quase só chorava. Sentia-se humilhada e traída por todos, até pelo marido. Fora a sua infertilidade que a levara ali. Flávio mostrou-se revoltado e queria arranjar um grupo para dar uma sova no segurança de del Cuore. A não ser que ela fizesse queixa à Polícia. Cátia só tentava dormir. Não queria nem lembrar-se daquele animal.

O fisiológico, no entanto, segue o seu próprio caminho, sem cuidar das alegrias ou dos sofrimentos que pode desencadear no emocional. Um mês depois, Cátia soube que estava grávida.

Flávio ficou dividido: no fim de contas, era uma oportunidade de ela ser mãe. Que podia não se repetir. Cátia não via o lado útil da situação. Sentia-se magoada e atraiçoada até pelo seu corpo. Não era assim que imaginara ter um filho. Fruto de uma violação, como acontece nos cenários de guerra. Conseguiria amar e criar uma criança gerada naquelas circunstâncias? O que estava verdadeiramente em causa? Precisava de meditar profundamente.

Durante uma semana ouviu o seu íntimo, atenta e honestamente. Depois tomou a sua decisão.


Joaquim Bispo


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Com o título Sémen, este conto integra — páginas 128 a 131 — a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de junho de 2018: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__oEste conto integra — páginas 128 a 131 — a 10ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de junho de 2018:

https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_-_10__edi__o

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Imagem: A. Grancho, Transmutação, 2017.

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10/08/2022

A selva

 


Há muito que os homens saíram da selva. Não lhes servia tanta incerteza, tanto perigo de vida. Aos poucos, com avanços e recuos, organizaram-se para autodefesa, assistência mútua, caça. Criaram normas de funcionamento coletivo do grupo, muitas vezes tácitas, outras bem expressas. Para evitar aproveitamentos egoístas. Para que o grupo fosse o lar de cada um. E afastaram-se da selva e das suas práticas ferozes.

Sem que o percebessem, os animais observavam-nos, curiosos, e acabaram por conseguir copiar o Conselho da Tribo. Pelo menos em alguns dos seus aspetos formais. Chamaram-lhe o Conselho da Selva e funciona desde então. Reúne-se uma vez por ano, ou a qualquer momento, em sessão extraordinária, a pedido de algum grupo. Geralmente, é apresentado um problema, levantada uma questão, feita uma queixa ou uma reivindicação. Segue-se alguma troca de ideias, muita algazarra, mas por fim o Conselho costuma concluir com uma declaração por maioria absoluta.

Muitas e muitas reuniões do Conselho já aconteceram ao longo dos milénios. Da maioria não restou memória, mas de outras foram guardados registos, geralmente em cascas de árvores ou numa escrita indecifrável em campos pedregosos. Por exemplo, há uns sessenta anos, foi realizada uma reunião a pedido dos castores. Decorreu numa mata contígua a um rio nórdico. Dado o início, um castor barbado com ar envelhecido, tomou a palavra:

— Caros companheiros silvícolas, estamos fartos de cortar e transportar árvores de sol a sol, sem a ajuda de ninguém. Há milénios que o fazemos, sem lamúrias da nossa parte, nem razão de queixa, da vossa. As barragens vão-se construindo, com esforço nosso, que ninguém reconhece, mas com grande beneficio para todos. Continuaríamos a fazê-lo sem queixumes, se as condições não estivessem a mudar. Mas estão. Os nossos filhos precisam de acompanhamento, as nossas famílias precisam de atenção. Os tempos são de cuidados e apoio ao desenvolvimento dos jovens e de maior convívio familiar. Não podemos, não queremos, chegar a casa tão tarde e de ânimo derrubado por tanto trabalho. Daí, que chegámos a esta situação limite, em que temos de ser bem claros. Das duas, uma: ou alguns dos excelentíssimos grupos aqui presentes se comprometem a ajudar-nos a construir as barragens, ou não as tomem como certas; porque não cortaremos nem mais um galho depois do entardecer. Gostaria que refletissem bem se querem os rios represados, de modo a servirem todos, ou se querem deixar a água ir-se embora.

Gerou-se um burburinho, mas que era habitual em cada Conselho. Algumas poucas vozes manifestaram-se a favor dos castores, mas a grande maioria estava até escandalizada com a desfaçatez daquela reivindicação. Ao fim de pouco mais de meia hora, estava o consenso formado. Um gato gordo e lanudo foi o encarregado de resumir a superior posição conjunta do Conselho:

— Oiçam lá, amigos dentolas — declarou ele —, não venham para aqui com essa moda dos homens, das oito horas de trabalho, que aqui não há regras nem regulações; aqui é a selva!

A reunião foi dada por encerrada e não se falou mais nisso.

Há quarenta e tal anos, foi a vez da passarada granívora pedir a reunião do Conselho. Decorreu num campo de restolho ressequido de centeio. Um pardal empertigado, mas nervoso, explicou a reivindicação da classe:

— Como sabem, recentes acontecimentos da área humana e suas decorrências provocaram uma grave rutura na já enfraquecida produção agrícola. Semeou-se muito menos, pelo que houve poucas searas. Temos estado a viver à míngua. Esquadrinhamos campos e mais campos, mas, entre grãos soltos e respigos, não conseguimos enganar a fome. O que reivindicamos é uma mesada, um papo mínimo de grãos, para podermos viver com dignidade, sem andar a pedir nem a roubar.

Como sempre, muito burburinho, alguma discussão e a sábia decisão do Conselho.

— Ó companheiros dos bicos curtigrossos — explicou o falcão encarregado de divulgar a determinação —, vocês até podem ter muita razão, mas não se percebe quem iria buscar tanto grão, nem aonde, ou onde se iria armazenar, e quem iria administrá-lo… Um tal pacto social obrigaria à criação de uma organização enorme, que iria agravar o problema. Além disso, vêm aqui fazer reivindicações, mas nenhum ser que viva na selva pode reivindicar quaisquer direitos. Isso de salários mínimos são modas dos homens. Aqui, cada um que trate de si; é a selva. Quem não aguenta arreia… Porque não se tornam carnívoros?

A reunião terminou com muitos piados tristes e outros irados, mas a vida na selva prosseguiu como antes.

Outras vezes se reuniu entretanto o Conselho da Selva, mas o plenário de há uns cinco anos foi especialmente participado e demorado. Fora solicitado por um amplo conjunto de animais, com as seguintes queixas:

— Tem havido muitos incêndios, há zonas em que o pasto, com a seca, desapareceu, mas há outras que se mantêm férteis — expôs um coelho. Seria sensato que se reservasse uma parte do pasto das zonas fartas, para apoiar as que o não têm.

Antes que houvesse oportunidade de se iniciar a vozearia, o presidente da mesa — um javali —, mandou avançar o segundo orador.

— Há muitos rios poluídos — alegou um sável —, os nossos irmãos têm de se deslocar para águas não poluídas, mas onde a comida não dá para todos — os que estão e os que chegam. Seria inteligente criar uma bolsa de comida para distribuir pelos carenciados.

Novo gesto rápido do javali, novo orador.

— A população cresceu, mas cada vez são menos as zonas livres de pesticidas, que envenenam larvas, insetos e minhocas — explicou um melro. — Os recursos, como estão distribuídos, não dão para todos. Deveríamos encontrar uma solução que permitisse que todos pudéssemos viver. Não faz sentido, nos tempos tão civilizados em que estamos, que uns vivam bem, sem dificuldades, sem preocupações de aonde ir buscar a comida, e que outros sobrevivam cada dia na angústia da fome.

— Sabem o que ouço dizer aos homens? — interveio um cão. — Como é público, eles inventaram máquinas para tudo, de modo que muitos serviços são feitos por elas, e os trabalhos que exigem mão humana já não chegam para todos. Não se trata de não quererem trabalhar; é que ora uns, ora outros, muitos são obrigados a ficar sem trabalho. E os subsídios de desemprego, que deviam tapar os buracos no sistema, afunilam e deixam muitos homens de fora. Em risco de fome. Como nós. Ouço-os discutir e dizer que as sociedades humanas e organizadas não deviam ser tão ferozes com os seus desempregados; que têm a obrigação humanitária e racional de criar condições de vida para todos; que deviam inventar um sistema em que cada ser humano tivesse acesso a uma distribuição mínima, só por estar vivo. Para se manter vivo. Quer tivesse trabalho ou não. Posso garantir-vos que eles estão a pensar seriamente nisso. Mas, é claro, eles são inteligentes.

Gerou-se uma algazarra diluvial. O caso não era para menos e suscitava o desagrado, quando não a revolta, de grande parte do auditório. Foi precisa a intervenção áspera do presidente, para trazer alguma contenção à reunião.

— Tanto quanto sei — continuou o cão —, essa distribuição mínima, a que chamam Rendimento Básico Incondicional, será uma prestação atribuída a cada pessoa, independentemente da sua situação financeira, familiar ou profissional, e suficiente para permitir uma vida simples, mas com dignidade. Para evitar a penúria extrema, raiz de todas as indignidades. Os homens querem mesmo aplicar essa solução, que só não avançou ainda porque estão a tentar encontrar um equilíbrio entre um contributo doador, que não seja desmotivador, e um envolvimento recebedor suficiente, mas que não gere ganância.

— Isso não faz nenhum sentido, na selva! — adiantou-se um lobo. — Nós nascemos na selva e nela queremos continuar a viver. É na selva que desenvolvemos o nosso estado natural. Alimentamo-nos, procriamos, sobrevivemos. Conhecemos os nossos amigos, conhecemos os nossos inimigos, sabemos aonde procurar comida, sabemos onde nos esconder. Nós devemos manter impoluta a nossa natureza. Leis, direitos, proteções especiais só viriam desvirtuar-nos. A nossa lei é a da sobrevivência, que não é uma lei; é um estado. Os mais fortes comem os mais fracos, os mais espertalhões sobrevivem melhor do que os menos astutos. Com genuinidade, com luta pela vida, com ferocidade e esperteza. E é assim que deve ser.

Esta intervenção provocou um ribombar de aplausos e clamores de entusiasmo, perante os olhares desanimados dos queixosos, e praticamente determinou o parecer final do Conselho.

— Meus amigos — leu o bufo real, muito compenetrado —, todos sabemos que a vida é difícil para quem vive na selva e que por isso muitos gostariam de experimentar soluções abstrusas, que lhes parecem boas, mas sabemos que é o idealismo a falar. Sempre assim vivemos, sempre preferimos a selva às malucas derivas dos homens. Não há nenhum homem que goste de viver na selva mais do que nós. A selva é um ambiente natural. Não tem leis. A preocupação que temos com os outros é se pertencem à nossa cadeia alimentar. E se os comemos é sem rebates de consciência, sem hesitações, sem rancor. E ninguém fica incomodado com isso. Cada um faz o que quer, se puder. Cada um tenta sobreviver como pode. É o nosso amado modo de vida. Sabemos que pode parecer cruel, mas tem a beleza inigualável da autorregulação. Nem todos vivem bem, nem todos sobrevivem, mas é assim; é a selva.

Desde então, não tem havido reuniões extraordinárias do Conselho.


Joaquim Bispo

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Imagem:

Alberto Giacometti, O cão, 1951.

Museu de Arte de Seattle, USA.

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10/07/2022

O incendiário


«Tudo menos troça!» Mauro pediu mais uma cerveja. Mantinha na retina a imagem da jovem, na véspera, a cochichar com as amigas, e nos ouvidos o som atroz dos risinhos.

É claro que era um falhado, toda a gente sabia isso, mas troça é que não. Para a menina do papá, era muito fácil rir-se dele. Não tivera de passar pela experiência de dormir debaixo de um viaduto, na vila; não tinha de aceitar os biscates que aparecessem, fosse ajudante de trolha, fosse auxiliar de cargas, na serração. Com 19 anos, não tinha um telemóvel de jeito, não tinha carro, não tinha namorada, não tinha nada. Vivia com a mãe viúva, que se esforçava, mas não lhe podia dar o que um rapaz dos tempos atuais precisa. Se estivesse muito tempo sem arranjar trabalho, nem dinheiro para tabaco lhe dava. Talvez uns trocos, para poder pedir um café ou uma mini. E sempre com recomendações. Revoltado com a sua vida sem futuro, muitas vezes optava por ficar a ver televisão em casa; mundos magníficos, tão diferentes da sua aldeia encravada entre montes cobertos de pinheiros e eucaliptos.

Saiu do café e acendeu um cigarro. Caminhou na direção oposta da sua casa, ao longo da estrada iluminada por alguns candeeiros esparsos, que ladeava a pequena ribeira que atravessava Lage Fundeira. Passou em frente da vivenda de Carla. Imaginou-a em frente a um computador, a trocar piadas com amigas e amigos. Voltou a lembrar-se do riso dela. Um incómodo voltou a atravessá-lo. Prosseguiu até as casas acabarem e sentou-se numa pedra a ouvir a ribeira. Aquele enorme silêncio, em vez de o acalmar, trouxe-lhe uma visão clara do seu exílio. Só, abandonado, miserável, esmagado debaixo de toneladas de pasmaceira.

Cheirou-lhe a fumo. Mais uma vez. Na véspera, o fogo andara numa serra não longe dali. Tinham lá estado os bombeiros e a televisão. Uma animação enorme. Se tivesse carro, tinha lá ido ver. Acendeu outro cigarro e observou o insinuante bruxulear da chama do isqueiro. Baixou a cabeça, pensativo.

Quando os bombeiros chegaram, três quartos de hora depois, Mauro observava da janela de casa o fogo a alastrar pelo mato próximo da zona onde o incêndio tinha começado — uma pequena várzea de feno seco do pai de Carla. Um autotanque e um carro de transporte com 8 bombeiros, num alvoroço de sirenes, postaram-se na estrada contígua ao fogo. Com grande agilidade e rapidez, os homens desenrolaram mangueiras, puxaram-nas, avançaram em direção ao fogo, e lançaram jatos de água sobre o mato em chamas. Era belo e empolgante. Mauro chamou a mãe e saiu de casa a correr. Para ver de perto o ataque às chamas e ajudar aqueles homens esforçados. Pouco depois chegaram mais dois autotanques e outros carros e em menos de meia hora estava o fogo dominado. Ainda andaram por ali um bocado, para assegurar o rescaldo; a Guarda alvitrou que devia ter sido uma ponta de cigarro acesa atirada de um carro, mas depois foram-se todos embora e Lage Fundeira voltou ao sossego característico. Fora tudo tão rápido, que nem apareceu a televisão.


Mauro não gostou de tanta eficácia. Esperava que o incêndio durasse pelo menos um dia, mas nem sequer pôde ver um helicóptero a lançar água sobre nuvens de fumo e chamas. Tinha de ser mais esperto, planear minimamente, executar sem ser de impulso.

Na segunda-feira seguinte, ao lusco fusco com e uma brisa de feição, Mauro desceu à azenha velha, depois tomou o antigo trilho dos moleiros, serra acima. Meia hora depois, chegou a um barrocal, a que chamam Fraga do Mocho, que agora está envolvido por uma mata de urzes e giestas. Escolheu uma área bem densa e seca e instalou o seu engenho — uma cana oca cheia de musgo seco, com uns vinte fósforos na ponta. Junto a essa ponta, três acendalhas e uma boa dose de caruma, e gravetos de giesta. Depois de confirmar que tudo estava estável e aplicado conforme tinha pensado, acendeu a ponta inicial da cana e subiu para um ponto da serra afastado mais de cem metros, de onde podia assistir ao eclodir do fogo.

O engenho não o desiludiu, nem o resultado. Assim que o musgo em brasa atingiu os fósforos, foi tudo muito rápido: chamas surgiram, os gravetos incendiaram-se, em breve a giesta a que estavam ligados começou a arder e depois outras giestas em todas as direções, até o fogo atingir o eucaliptal anexo, onde as línguas de fogo começaram a trepar por dezenas de metros. Em pouco tempo, o incêndio tinha uma frente de quase cem metros e uma altura de vinte ou trinta. A salvo e com a retirada planeada, Mauro deliciou-se com a magnificência e a sofisticação daquele espetáculo admirável. A potência e o fulgor das labaredas impressionavam. Os múltiplos tons de laranja, amarelo e vermelho, enquadrados por auras cinzentas de fumo, sobre o fundo já escuro do céu criavam um quadro vivo e arrebatador. As chamas dançavam e insinuavam-se, lascivas, por entre troncos, ramos e folhagem. O calor começava também a atingi-lo, a impregnar-lhe o corpo, através da roupa. Envolvido por aquele ambiente de volúpia, abriu as calças e começou a masturbar-se. A excitação crescia à medida que o lume saltava com rapidez de árvore para árvore e as línguas de fogo lambiam os indefesos troncos eretos. O orgasmo intenso, com o seu efeito de alheamento, quase o deixou à mercê das chamas. Após um momento, para voltar à realidade e recuperar o controlo, recuou e desatou a correr pela vereda que contornava o monte, apanhou mais abaixo o trilho que trouxera e em vinte minutos estava em casa.

Essa foi uma noite em que Mauro não dormiu. Nem Mauro, nem os outros habitantes da aldeia. Em poucas horas, o fogo ganhou três quilómetros de frente. Pela manhã, o horizonte estava escondido por rolos de fumo negro e surgiram dois pequenos aviões de ataque a fogos a lançar grandes jorros de água sobre as chamas. Levantavam-se enormes nuvens de fumo branco. Parecia um cenário de guerra, ou, pelo menos, dos filmes de guerra. Pelo meio-dia, temeu-se que as chamas chegassem à aldeia. Houve ordem de evacuação, mas Mauro conhecia a região — foi instalar-se junto da ermida da Senhora do Alto, de onde podia continuar a presenciar o espetáculo das chamas e de todo o aparato para as combater. À tardinha, o fogo tinha ultrapassado a serra e mudado de concelho e, finalmente, toda a gente pôde voltar a casa e contabilizar as perdas: quatro ou cinco palheiros ardidos, gados tresmalhados, muitos hectares de floresta queimados.

O Telejornal mostrou uma reportagem do incêndio e, pela primeira vez, Lage Fundeira apareceu na televisão. O orgulho de Mauro foi difícil de conter. Apetecia-lhe abordar Carla, olhá-la de frente e contar-lhe: «Fui eu!» Mas com certeza que ela, como sempre, não daria valor a isso e talvez até o denunciasse.


Um ano depois, Mauro continua sem carro, sem namorada e sem trabalho certo. No entanto, não tenciona voltar a incendiar a serra. Sente até algum arrependimento. A encosta negra está longe de lhe transmitir os apelos lúbricos que a floresta viva e verde tantas vezes lhe proporcionara.

Joaquim Bispo


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Este conto integra — páginas 91 a 93 — a 9ª edição da Revista LiteraLivre, em formato e-book, resultante de concurso literário de abril de 2018: https://issuu.com/revistaliteralivre/docs/revista_literalivre_9__edi__o

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Imagem:

Henri Matisse, Prazer de viver, 1905–1906.

Fundação Barnes, Philadelphia, USA.

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10/06/2022

A angústia do dirigente na iminência do embate

 

Estou ansioso, Lampreia! Achas que vamos conseguir mostrar um bom jogo no domingo?

Presidente, estou convencido de que vai ser dos melhores da temporada.

Ah, ótimo! Adoro desfrutar de uma partida de futebol, no seu conceito mais puro: o embate vigoroso entre duas equipas de garbosos mancebos, virtuosos no tratamento de uma bola com os pés, envolvidos numa sã competição inspirada no lazer varonil, e comandados por duas mentes altamente estratégicas que analisam ao pormenor as forças e as fraquezas da equipa adversária.

Felizmente, nisso, somos dos melhores.

O adversário é difícil, hem!?

Muito difícil! Tive de chegar aos oitenta mil.

Então, quer dizer que estamos com força anímica para vencer!

Com tendência para 3–1. É o que está combinado.

1?

Presidente, fica sempre bem um golo de honra, para abrilhantar a nossa vitória.

Mas, atenção; a forma física deles parece estar em alta.

Sim, mas a preparação física de véspera vai incluir uma jantarada bem regada. Só para alegrar um pouco a noite.

Jantarada é uma boa solução. E os nossos, estão motivados?

Muito! Já lhes lembrei que a claque ficaria muito aborrecida se eles não se esforçassem.

Ah, pois ficaria! E não é para brincadeiras…

Para nenhum se esquecer disso, já marquei uma conferência de balneário para a próxima sexta.

Conferência de balneário parece-me bem. E os árbitros?

O costume: nevadas ou bombons, conforme os gostos. Nevadas russas e chocolatinhos de Cabo-Verde.

Não há nenhum com gostos menos exóticos?

Um preferiu doces de São Gonçalo de Amarante.

Muito bem, Lampreia! Gosto de ver tudo bem encaminhado, mas, sabes, às vezes, temo que este desporto transmita, aos mais novos, uma imagem de competição desregrada; que se perguntem onde fica o desporto pelo desporto, o prazer do esforço físico, o ideal de que o importante não é a vitória, mas sim a participação.

O clube tem sempre a participação como lema. Queremos que as claques compareçam massivamente no estádio, com todos e com tudo — cornetões, matracas, very lights —, sobretudo quando a bancada adversária for poderosa. A bola é redonda e o nosso clube não tem proteção celeste, digamos assim.

Muito bem, Lampreia! E a pedagogia social, o fair play, a gentileza para com o adversário? Não nos esqueçamos de que os jovens copiam, na vida de todos os dias, o que observam em campo!

Se o Paulinho Quebra-ossos tiver que meter os pitões na fronha do Juvenal Gazela… é chato, mas é a vida. Às vezes, é a única maneira de acalmar um espírito demasiado fogoso e impedir um golo certo. Aí, é altura de o Juvenal mostrar o seu fair play e dar a outra face, não é?

Isso mesmo. Aprecio o espírito cristão.

Os espectadores gostam sempre de ver uma boa metáfora bíblica. Estamos à espera de quarenta mil.

Como é isso, Lampreia? Pensei que o estádio só comportasse trinta e três mil!

É! Mas não pude suportar a imagem de sete mil rostos juvenis, chorosos por não conseguirem ingresso.

Ah! Muito bem, Lampreia!; vejo que tens bom coração.

Obrigado! O desporto sadio toca-me fundo. Acredito que é o melhor sustentáculo de mentes saudáveis e um formidável gerador de cidadania responsável.

Estou absolutamente de acordo. Isso e uma imprensa livre que o promova e o valorize.

Sim, sai amanhã mais uma dose das escutas aos nossos adversários, que enviei aos jornais de referência: Offside, Penalty e Hat-trick.

É isso que precisamos: jornalismo desportivo de investigação.

Já avisei os repórteres que a avença está a pagamento.

Perfeito, Lampreia! O desporto deste país nem sabe quanto te deve. Nem o clube de todos nós.

Cerca de seis milhões. Já fiz as contas. Mas não se preocupe; o perdão do empréstimo bancário do Banco de Benemerência Nacional ao clube já está assegurado.

Nem sei como te agradecer, Lampreia!

Sugiro um apoio vigoroso do clube à minha candidatura autárquica!

Podes contar com ele, Lampreia! Um amigo na Câmara é bom para o clube e é bom para o desporto. Bola para a frente!


Joaquim Bispo


Imagem:

Caravaggio, Os batoteiros, c. 1594.

Museu de Arte Kimbell, Fort Worth, Texas, EUA.

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Este texto foi um dos selecionados para a 33ª edição (maio/junho de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 89 a 90).

https://drive.google.com/file/d/1lA0AUETjL28cvRL6G5_y6G6Ltk2Aqk1g/view

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