Por
mais estranho que pareça, o futebol tem-se revelado muito
importante para mim, culturalmente.
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Há
dias, à hora das notícias, liguei o televisor para a RTP-1, com
a preocupação de saber se vai aumentar o orçamento para a
Defesa e diminuir para a Educação. Em vão: estava a transmitir
um jogo de um dos inúmeros torneios oficiais, semioficiais e de
preparação que o mundo do futebol promove para corresponder à
procura do público condicionado e arrecadar mais uns milhões em
direitos televisivos.
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Gosto
de ver uma ou outra partida que envolva a seleção, desde que o
desempenho seja leal, pujante e criativo, mas daí a engolir todos
os produtos que a sobre-produção descarrega...
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Mudei
para a SIC, com vontade de perceber porque se começou a falar
tanto e tão de repente em comboios e transporte ferroviário.
Será
que vem
aí mais uma conta para pagarmos? Em vão: estava a falar o
treinador do Benfica, talvez tentando distrair os adeptos das más
notícias recentes...
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Lembrei-me do orgulho benfiquista da década de 60, por não ter jogadores estrangeiros. Era sentido como uma espécie de brio
bairrista, mas nacional, de ganhar com a prata da casa, sem ajudas, nem truques, nem jogadas menos claras de qualquer tipo.
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Mudei
para a TVI, resignado a ouvir mais algum caso pungente de pequenez
e corrupção, dos
muitos
que vão atingindo tantas
instituições insuspeitas. Em vão: estava a falar o novo
presidente do Sporting.
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Não
sem que eu vislumbrasse, de memória recente, um espetáculo medonho de autocratas, bandos de
arruaceiros, tumultos, agressões, alarme social.
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Mudei
para a SIC-Notícias, disposto a espantar-me, como habitualmente,
com a criatividade das manipulações, dos esquemas e das
subversões que os intervenientes do sistema vão
usando
para desresponsabilizar, descriminalizar, libertar, e talvez
indemnizar o corrupto do dia. Em vão: um painel de peritos
discutia compenetradamente um duvidoso fora-de-jogo que um árbitro
validara, certamente por incumbência de quem lhe pagou, dizia
um.
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O
futebol é um espetáculo visual, cujos bons lances são, para
alguns, objetos estéticos. Para mim, é como o sexo: é para
praticar ou
para
ver,
mas não para discutir o desempenho dos intervenientes.
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Mudei para a TVI-24 para ver com os meus olhos as ameaças do regime de Trump aos juízes do Tribunal Penal Internacional, por estes tentarem julgar os criminosos de guerra americanos. Em vão: um painel de entendidos altercava, aos
gritos, sobre a gravidade e as consequências a tirar do caso da
espionagem à Justiça, feita por membros do Benfica.
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Acho
divertido, mas dramático, que os desgraçados
que ganham o salário mínimo, ou menos, acicatados por máquinas de radicalização de que estas trupes são os testas de ponte, se esfarrapem a vitoriar, acéfala e infundadamente, bandeiras, símbolos e panteões risíveis, mas pior, vão aos estádios pagar bilhetes de preço proibitivo, que alimentam uma engrenagem financeira com aspetos obscenos de anti-desportivismo por parte de dirigentes, e de desigualdade social, em relação aos seus milionários ídolos.
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Mudei para a RTP-3 só para confirmar que as potências em conflito na Síria continuam a declarar fazê-lo para defender o povo sírio, enquanto continuam a tentar travar a chegada à Europa da vaga de desesperados migrantes resultante. Em vão: um painel de especialistas perorava sonolentamente sobre as tarefas do Sporting para ultrapassar a crise em curso.
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É
inacreditável a quantidade de horas que variados painéis
de comentadores
gastam
a falar de futebol, às vezes de um jogo ou de uma jogada apenas.
Acreditem ou não, às vezes relatam
um jogo que só eles estão a ver, mas não mostram… Com certeza
que têm espectadores, mas tenho dificuldade em imaginar milhares
de pessoas em suas casas a prestar atenção a uns tipos que
falam, apenas
falam, de um espetáculo que é eminentemente visual.
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Já
sem grandes esperanças de escapar ao futebol e aos seus
tentáculos, mudei para a RTP-2.
Foi aí que, após ter
percorrido
o longo e
estreito carreiro atrás descrito,
tive
oportunidade de assistir a um programa sobre “endocrinologia e
ambiente” e os efeitos nefastos que um meio-ambiente
cada vez mais poluído
tem para a saúde. Muito interessante e pedagógico, e certamente
mais
enriquecedor para cada um dos outros espectadores, se
não estivessem
presos à mesmice do chuto na bola. Por
mim, pelo contrário, se
não fosse a
omnipresença televisiva do
futebol tê-lo-ia perdido. Só lhe posso estar agradecido!
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Joaquim
Bispo
*
Imagem:
Jan Vermeer, O astrónomo,
1668.
*
* *
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10/09/2018
10/08/2018
A primeira refeição do dia
Em 10.8.18
por joaquim bispo
A
primeira refeição do dia é a mais importante.
(Dos
sites nutricionistas)
Acabei
de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita — belos
panoramas, excelentes museus —, mas do que não me esqueço é dos
pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia
passava a noite em sonhos salivados. No hotel em que estive, serviam
fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo em cascatas
de fatias finíssimas. E doces, frutas, bacon, ovos mexidos,
pratos quentes.
Acho
que havia hóspedes que só tinham ido a Budapeste pelos
pequenos-almoços. Enchiam a chávena de café com leite, e o prato
com queijo e carnes frias, iam para a mesa esvaziá-los, voltavam a
recarregá-los, uma e outra vez. Abarrotavam tigelas com flocos de
milho, de amêndoa, com fibras, com mel, chocolate e fruta. Juntavam
leite, iogurte, café, sumos de frutas. Equilibravam pirâmides de
fatias de Emmental,
chaminés de Chèvre,
com a ajuda de morros de Roquefort,
acompanhados por arquipélagos de ovos quentes, salsichas fritas e
barris de sumo de laranja para empurrar.
Filas
de empregados afadigavam-se a repor as provisões nas mesas do
bufete. Dezenas de pares de olhos espiavam a sua chegada à porta da
copa. Hordas de pretensos esfomeados escudados em pratos vazios preparavam-lhes emboscadas no primeiro ângulo de mesa. Homens da Michelin em banha lançavam-se sobre os
acepipes, como gaivotas sobre sobras de peixe, engolindo fatias de
salmão fumado enquanto bicavam os adversários mais próximos. Por
vezes disputavam a mesma tira de bacon frito ou, em gesto
rápido, surripiavam a tosta mista que o vizinho se atrasara a
retirar da bateria de tosteiras. Rebatiam com saladas de tomate, de
couve roxa, de beterraba. Ou com travessas de ananás, pêssego,
melão e maçã.
Ai
do que não fosse ligeiro e audaz. Quando chegasse à mesa das carnes
frias, já só encontrava um ou outro grão de pimenta; quando
chegasse à mesa dos queijos já só sentia o cheiro. O seu empenho
incidia então no desenvolvimento de táticas mais eficazes de
captura de víveres no fornecimento seguinte.
Por
fim, mitigavam a fraqueza com uns doces: potes de compotas, salvas de
bolo-mármore, taças de tiramisu, tigelas de mousse de
chocolate, travessas de leite-creme.
Quando
pareciam saciados, começava a fase de aprovisionamento, porque o dia
de visitas turísticas na capital e arredores se adivinhava longo e
desgastante. Fileiras de sanduíches recheadas de salpicão, queijo
flamengo, pasta de atum, ovo mexido e picles — para
desenjoar — alinhavam-se obedientes em camadas sobrepostas no fundo
das malas de mão e das mochilas. Alguns convivas preparavam tantas
que se esperava encontrá-los a vendê-las nos pontos turísticos
mais frequentados, para pagar a viagem. As que sobrassem ainda deviam
dar para acabar com a fome em algum país do corno de África.
Budapeste
é bonita, mas o melhor são os pequenos-almoços. Inolvidáveis. Ainda esta noite voltei
a sonhar que me deliciava com almôndegas
à húngara que apanhava às mancheias. Acordei mesmo
a tempo de evitar aquela parte desagradável dos garfos espetados nas costas da
mão…
Joaquim
Bispo
*
Imagem:
Josefa de Óbidos,
Cesto com bolos e toalha,
1660.
*
* *
10/07/2018
A Estátua sem Rosto
Em 10.7.18
por joaquim bispo
O
que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus
pés era apenas «(…) mingo,
5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)»,
mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a
proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em
tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos,
apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam
inaugurações.
Ribeira
de Velas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do
avesso havia dois meses. Máquinas
e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento,
repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a
todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido
anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D.
Moniz — de que falava o folheto — na praça com o nome do
monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado
no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Velas, o que constitui um
motivo de orgulho para a cidade.
Alertado
pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que
ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia
de inauguração, estava presente uma representação da Câmara
Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a
vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano
e ao que ele representou para Ribeira de Velas. A seguir, falou a
presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça
ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns
dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente,
alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem
alta: «Senhora
presidente, o povo não está contente; el-rei
D. Moniz não tem cara nem nariz»,
o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso,
estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava
uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada
e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas
uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A
situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do
autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se,
talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um
esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas
considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz,
e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o
manto majestático;
a cruz da ordem de Cristo, por ele
fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto
pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e
trinta poemas; além de
uma
mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na
instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no
refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A
cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos
jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista.
Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
— Mestre
Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
— Tem
um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora — explicou o
escultor. — Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito
da estilização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os
outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra,
não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a
essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu
significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou
temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que
representam. Não sei se me fiz entender.
— A
opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de
não existirem imagens do rei? — insistiu o repórter.
— Não
— continuou o artista —, há imagens que, sem serem da época,
são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há
o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e
os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos.
Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a
estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor
que fez parte do júri de seleção dos vários projetos
apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha
do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que
retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão
de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador
da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a
representação realista dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que
admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de
representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a
cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação
naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo
quando pensamos que está morta, extinta
e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados,
como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí,
não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A
imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na
Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível,
a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de
cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A
sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação
realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida
pelas pessoas — como parece que as vossas reticências ilustram —
cavou fundo no grupo de decisão.
— Mas,
afinal, ganhou? — interveio o repórter.
— Não
ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante,
em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o
celebrado David
de Miguel
Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos —
uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para
liquidar Golias — e que vivemos rodeados de significantes, desde a
linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é
muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de
pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino
ingénuo e sonhador — que é o que na verdade foi — do que o
combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés
podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em
repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta
vez os mouros de Marrocos. Não podia ser
mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
— Então,
quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o
caracteriza
está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
— Exatamente!
Estes são os caracteres
com que se pronuncia D. Moniz.
Não
sei se o repórter ficou convencido, mas isso também não se lhe
exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e
se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao
grosso da população que não tinha estado presente.
Na
verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas
surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho
que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma
opinião sobre o assunto.
— Mas
você diz que aquilo está bem feito? — protestava agastado o Sr.
Albano.
— Um
espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está
porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem
nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores.
Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de
Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus,
os das flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix,
que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por
“pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi
a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um
grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr.
Albano?
Joaquim
Bispo
*
(Esta
ficção baseada em esculturas reais foi publicada no número 38 da
revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2013.)
*
Escultura:
Luís LaRoche, Rei D. Dinis, 2009 (?).
*
* *
10/06/2018
Santos Populares
Em 10.6.18
por joaquim bispo
— Então,
por que é que lhe fazem a festa a 13 de Junho? Amanhã. —
estranhava o companheiro, um homem de cabelo ralo e barba curta
esbranquiçada.
— É
o dia da sua morte aos 36 anos em Pádua. Aproveitou-se para dar
cunho religioso a umas festas das colheitas que havia na altura. Mas
esta noite é que são as grandes festas populares.
— Bonita
igreja!
— O
povo de Lisboa fez-lhe aqui uma capela, alargada para igreja no
século XV. O terramoto deitou-a abaixo, mas foi reconstruida através
de peditórios. Montavam tronos com a imagem dele, aí pelas vielas,
e pediam umas moedas, como ainda hoje.
— Já
era venerado!?
— Sim,
e com razão! O António era um grande conhecedor das escrituras e um
orador notável. No fim da vida tinha multidões a ouvi-lo e a crerem
que fazia milagres. A fama era tão consensual que é, ainda hoje, o
santo mais rapidamente canonizado: menos de um ano depois da morte.
O
duo, embrenhado na conversa, ia descendo placidamente a Rua das
Cruzes da Sé, enquanto a tarde caía, sem se aperceber de alguns
olhares irónicos às suas roupagens.
— Ó,
João, ele teve alguma formação? — perguntou o mais velho.
— Estás
mesmo esquecido! Sim, estudou aqui na Sé até aos quinze anos e
esteve mais uns três em S. Vicente de Fora. Depois passou sete anos
em Santa Cruz de Coimbra onde foi ordenado sacerdote. O ensino lá
era bom!
— Mas
ele não era franciscano?
S.
João encheu um pouco mais o peito semi-descoberto, sem suspirar.
— Pedro,
ele ficou muito exaltado com a fé e o exemplo de cinco franciscanos
que foram evangelizar os gentios de Marrocos e que foram mortos pouco
depois. Ele viu-os partir de Coimbra e viu chegar os seus corpos.
Esse acontecimento representou uma viragem na sua vivência
religiosa. Só então se mudou para os Franciscanos e mudou também
de nome, porque de batismo era Fernando de Bulhões.
— Ah,
sim?! — O rosto de S. Pedro adquiria um vivo interesse nas palavras
do companheiro.
Agora
entravam na Rua de S. João da Praça, embrenhando-se em Alfama. Aqui
e ali cheirava a manjerico e a sardinhas assadas.
— Rumou
também ele a Marrocos, mas adoeceu e acabou por ir parar a Itália.
— Bela
terra! Bem, quando lá cheguei não era flor que se cheirasse, mas
agora ninguém me tira Roma!
— Os
ideais franciscanos estavam então a atrair vocações e foi o
próprio Francisco de Assis que nomeou o António para ensinar
Teologia em Bolonha. Também esteve no sul de França onde ganhou
fama a converter heréticos.
Já
havia muita gente nas ruas, mas ainda se andava bem. Chegaram a um
pequeno largo onde estavam montadas duas esplanadas. S. João olhou a
procurar mesa e perguntou a S. Pedro:
— Sentamo-nos?
— Sim,
sim! Já descansava um bocadinho.
Instalaram-se,
pediram caldo verde, sardinhas e vinho tinto.
— Estou
impressionado! — S. Pedro avaliava o fluxo de gentes na rua.
— E
ainda não viste nada! Nesta noite, há arraiais e bailaricos em
todos os bairros e faz-se uma competição de danças ao som de
marchas. Há muito em que comparecer. Foi por isto que ele pediu
desculpa e se despediu de nós tão cedo. E há também uma cerimónia
em que casam, ao mesmo tempo, dezenas de pares de noivos, porque o
António ganhou fama de casamenteiro. As solteiras fazem-lhe
promessas, se o António lhes arranjar noivo. Quando isso não
acontece é que é o diabo! Algumas vingam-se e viram-no de cabeça
para baixo ou roubam-lhe o Menino. — S. João não se continha e
ria divertido a imaginar a cara de enfado de Santo António quando
lhe acontecia tal percalço. — Os pedidos são tantos e, às vezes,
tão difíceis de atender, que nem com milagres!
S.
Pedro acompanhava-o no riso em notas mais graves.
— Também
ouvi dizer que fez carreira militar…
— Essa
é a mais engraçada! No século XVII, um regimento de Lagos tomou-o
como protetor e incorporou-o. E alguns anos depois promoveu-o a
Capitão. Aquando das Invasões Francesas, foi promovido a
Tenente-Coronel. Gratidão castrense!
Uma
aparelhagem começou a tocar uma música popular.
— Tratam-no
bem na arte? — S. Pedro ia tentando comer as sardinhas sem meter
parte das largas mangas no prato.
— Sim.
Geralmente tem o Menino ao colo e um livro. Também costuma segurar
um lírio. Às vezes, tem o Menino sobre o livro, ou sentado ou em
pé. Outras vezes representam-no a pregar aos peixes.
A
música fizera aumentar a vozearia e era difícil ouvirem-se.
— Aos
peixes? Isso não foi aquele padre jesuíta, António Vieira, não é?
— Sim,
mas foi inspirado na pregação do António aos peixes, perto de
Rimini. Aliás, já o Francisco de Assis falava aos “irmãos
pássaros”!
Acabada
a refeição, incorporaram-se na enchente de povo que percorria
Alfama a comemorar o Santo António. Foi um erro. A progressão era
difícil, os mantos de ambos enredavam-se nas outras pessoas, levavam
empurrões e as sandálias não os protegiam das pisadelas. Num
encontrão mais agressivo, S. Pedro voltou-se, de olhos raiados. S.
João agarrou-o, gentil mas firmemente. Olhou-o nos olhos e disse-lhe
muito sério:
— Pedro,
tem calma! Já passámos por coisas piores, se ainda te lembras!
S.
Pedro acalmou, mas resolveram sair rapidamente do meio daquela turba.
Apanharam
um táxi e S. João acompanhou S. Pedro ao aeroporto. Abraçaram-se:
— Dá
cumprimentos ao Chico! Diz-lhe que vou visitá-lo a Roma assim que
acabarem as festas por aqui.
Depois,
rumou à estação do Oriente para apanhar o comboio para o Porto.
Ainda tinha três horas de viagem pela frente. Felizmente, não tinha
pressa, que ainda faltava uma dúzia de dias para as festas em sua
honra.
Joaquim
Bispo
*
Imagem:
Nota de vinte escudos, 1964, Portugal.
*
* *
10/05/2018
Anti-Íon ou a Crítica do Dom
Em 10.5.18
por joaquim bispo
Timandro:
Íon! Clistes! Bons olhos vos vejam! Donde vindes, assim, laureados?
Íon:
Viva! Estivemos nas festas do Epidauro, onde pusemos à prova os
nossos dons.
Clistes:
Viva!
Timandro:
Ah, sim; ouvi dizer que o concurso de rapsodos é muito apreciado e
concorrido. Também há concurso de aedos?
Clistes:
Sim; e dos mais importantes. Eu concorro sempre.
Timandro:
E, pelo que vejo, saístes-vos bem!
Íon:
Eu venci o concurso de rapsodos.
Clistes:
E eu só perdi para o aedo de Egina. Em onze concorrentes.
Timandro:
Fico muito feliz, por vós. Dizei-me: o que
vos fez enveredar por essas tão belas ocupações? Qualquer um
consegue ser rapsodo ou aedo?
Íon:
Não, de modo algum. É o dom com que se nasce. A excelência que
ponho nas minhas atuações e que faz chorar os que me ouvem é um
dom com que nasci.
Timandro:
Ah, sim? Dize-me: já em criança sabias recitar Homero?
Íon:
Sim, mas só pequenos trechos. Aos poucos é que fui dominando a
extensa obra do génio.
Timandro:
Então o dom com que nasceste era pequenino?
Íon:
Sim, posso dizer que sim. Felizmente que o meu tio Perilo era um
apaixonado por Homero e não descansou enquanto não me incutiu o
gosto. Recitava-me frequentemente as mais emocionantes passagens da
Odisseia.
Timandro:
Queres dizer que, se não tivesses um tio que te estimulou o gosto
pelas epopeias homéricas, talvez esse pequeno dom com que nasceste
tivesse murchado?
Íon:
Nem mais. Estou muito agradecido ao meu tio.
Timandro:
De bem pouca valia é um dom que não se usa. Imagina que nasceste
com o dom do auriga e que o deixaste estiolar. Como saberias que
tinhas nascido com ele?
Íon:
Provavelmente, nunca o saberia.
Timandro:
Então, é possível que nasçamos com muitos dons que não
desenvolvemos e, portanto, nem deles tomamos consciência.
Íon:
Assim deve ser, como dizes.
Timandro:
E tu, Clistes, nasceste com o dom de fazer e cantar poesia ao som da
lira?
Clistes:
Depois do que disseste, creio que não; só comecei a gostar do fino
vibrar das cordas da lira quando me apaixonei por Magide, filha de
Macário. Nessa altura é que a musa se apoderou de mim.
Timandro:
Então, segundo Íon, não devias ter dom, porque não nasceste com
ele.
Clistes:
Tenho, tenho. Componho com facilidade e toco e canto com gosto.
Timandro:
Desculpai, se insisto: esse dom que, de uma maneira ou de outra,
tendes é que vos levou à vitória, mas também trabalhais para
conseguir tais êxitos, presumo, ou o dom é suficiente?
Íon:
Não, eu estudo incessantemente Homero. É preciso conhecer o seu
pensamento em profundidade e não só decorar-lhe as palavras. E
recito partes da Ilíada todos os dias.
Timandro:
Queres dizer que nasceste com um dom que foi sendo aperfeiçoado com
trabalho!
Íon:
Sim, pode-se dizer isso.
Timandro:
Então, o que mais contribuiu para te levar à vitória: o trabalho
que puseste no estudo ou o dom?
Íon:
Ambos. O dom com que nasci — ou que aprendi com o meu tio —
forneceu-me o interesse pela representação das epopeias; o trabalho
dá-me a competência no conhecimento de Homero. Mas nada disto seria
suficiente para empolgar a assistência se não fosse o que Clistes
já referiu. Aliás, ainda ontem tive esta mesma conversa com
Sócrates que me provou que eu estou fora de mim quando faço
emocionar a audiência.
Timandro:
Sócrates é sábio.
Íon:
Sócrates estranhou que, falando Homero, Hesíodo e outros poetas dos
mesmos assuntos — guerra, relações entre os homens, e destes com
os deuses, e dos deuses entre si, e da genealogia dos heróis e dos
deuses — eu só saiba falar e interpretar bem as palavras de Homero
e não saiba nem goste de falar dos outros poetas.
Timandro:
Por que achas que isso acontece?
Íon:
Eu pensava que era porque Homero fala das mesmas coisas, mas muito
melhor que os outros poetas, mas Sócrates convenceu-me de outra
coisa.
Timandro:
E o que disse ele?
Íon:
Que se eu sei reconhecer que Homero fala melhor que os outros, mas
das mesmas coisas, eu também deveria saber falar bem dos outros
poetas.
Timandro:
Aparentemente...
Íon:
Acontece que não sei falar dos outros e aborrece-me mesmo ouvir
falar deles. Ora, Sócrates diz que isso significa que o que eu digo
de Homero não advém de conhecimento, mas de outra causa.
Timandro:
Sócrates é sábio. Não ignora, certamente, que é possível falar
das mesmas coisas mas de modos totalmente distintos, assim como é
possível representar Zeus como Fídias o fez, ou como o fazem outros
escultores menores.
Íon:
E, na verdade, Homero é inexcedível.
Timandro:
Não considerou Sócrates que sempre viveste “rodeado de Homero”
e que estudas Homero afincadamente e não os outros poetas, e que,
por isso, é lógico que o conheças melhor e o prefiras?
Íon:
Não. A interpretação dele é a de que estou possuído por uma
força divina, quando o recito.
Timandro:
Curioso! O caso é tal que seja necessário recorrer a explicações
tão potentes?
Íon:
Sócrates diz que a mesma musa que inspirou Homero, quando ele compôs
a sua obra, transmite a sua influência para mim e de mim para a
audiência.
Timandro:
A musa! Sócrates é sábio, mas, como ele próprio está sempre a
dizer que nada sabe, é natural que muitas vezes se tenha reconhecido
em erro e se previna de equívocos futuros. De cada vez que oiço
invocar as musas como explicação de alguma coisa humana, lembro-me
sempre do mau teatro.
Íon:
Como assim?
Timandro:
As ações de uma peça devem estar encadeadas numa relação de
causa e efeito, de modo que cada uma seja a resultante lógica e
necessária dos acontecimentos anteriores. Uma peça assim encadeada
tem verosimilhança —
os espectadores reveem-se nela, como na vida. Uma má peça, pelo
contrário, quando não consegue criar desenlaces consequentes com o
nó que a trama enredou, recorre ao deus
ex machina, dando um fim
abrupto à história, não congruente com o fio da narrativa, o que
desagrada sobremaneira aos que
a veem.
Íon:
A mim agrada-me que, pelo menos em certos momentos, eu seja
instrumento do divino.
Timandro:
Isso evita-te, certamente, seres desafiado por aqueles que são da
mesma opinião que Sócrates. Os que te consideram instrumento do
divino poderão travar a inveja com a desculpa de que não se
consegue competir com o divino. Por um momento, vislumbrei a
possibilidade de Sócrates te invejar.
Íon:
Não creio. Mas os teus remoques a Sócrates é que me parece
indiciarem alguma dor de cotovelo…
Timandro:
Sem dúvida! Quem me dera que o meu filosofar tivesse a acutilância
e a profundidade do jeito de filosofar do feioso. Mas, voltando ao
nosso tema: e tu, Clistes, também sentes a possessão da musa?
Clistes:
Compor poesia é deveras misterioso. Não sei onde vou buscar as
palavras e as personagens que me surgem. Acredito que é a musa que
mas insufla, como num sopro.
Timandro:
Dize-me!: surgem-te palavras e personagens desconhecidas?
Clistes:
Não; todas as palavras são por mim conhecidas, mas aparecem-me
organizadas de uma maneira tão sensata e harmoniosa que me
surpreendo que tenha sido eu a gerá-las, naquele encadeamento. Já
as personagens são mais difíceis de caraterizar. Todas elas me são
desconhecidas naquela forma.
Timandro:
Naquela forma? Já as conheces sob outra máscara?
Clistes:
Cada personagem parece-me uma mistura de outras, que conheço das
epopeias; de heróis, de deuses, de homens.
Timandro:
Então dirias que elas já existiam em ti, como as palavras que
referiste? Isso significaria que não houve qualquer “sopro”
exterior e que tudo é criado no teu espírito.
Clistes:
Sim, mas, nas formas e atributos com que me surgem, são-me
totalmente inesperadas.
Íon:
Também me surpreendo com as palavras que saem da minha boca, quando
estou no estrado. Sócrates disse que os belos louvores que teço a
Homero não são devidos a uma techné
que pudesse ser atribuída ao meu mérito, mas ao privilégio
exterior concedido pela musa; que eu falo sem nada compreender.
Senti-me humilhado.
Timandro:
Sócrates é o mais sábio filósofo da Grécia, o que não quer
dizer que não possa vir a mudar de opinião em relação a algumas
das convicções que agora mantém. Há quem diga que a imaginação
é “uma amálgama de perceção e julgamento” e que implica
sempre a presença da perceção.
Não aceitas que a
inspiração seja um estado de exaltação emotiva que atinge a alma
do poeta que, qual tecedeira a escolher os fios coloridos de lã para
compor tapetes sempre diferentes, usa um caráter deste, uma
fisionomia daquele, um atributo de outro, para compor uma personagem
inesperada?
Clistes:
Assim poderá acontecer.
Timandro:
Esclarece-me uma dúvida que me assaltou agora. Se estivermos atentos
e formos honestos connosco, reparamos que a genealogia dos deuses
varia conforme as regiões, como Afrodite, que para uns nasceu de
Zeus e Díone, e para outros é filha exclusiva de Urano. A questão
é a seguinte: nesses teus momentos de criação, já criaste algum
deus ou, ao menos, modificaste os atributos de deuses ou heróis?
Clistes:
Envergonho-me de o dizer, mas já. Quando não me lembro bem da
história de algum, componho-a com o que me parece melhor. Uma
peripécia em que Dioniso é raptado por centauros foi criada por
mim. E já criei um deus — Metaro — que é filho de Hefesto e que
quando quer vigiar os homens incorpora nas estátuas de bronze.
Timandro:
Era o que eu pensava. Não me custa admitir que Hesíodo é que criou
a maior parte dos nossos deuses. Há um filósofo em Abdera —
Demócrito — que diz que não há deuses nenhuns. No fundo, a nossa
vida não se alteraria muito sem a sua existência. Não há dúvida,
no entanto, que tornam a nossa vida menos monótona e sempre nos
sentimos mais acompanhados, porque a solidão é funesta.
Íon:
Na verdade; mas cá estamos nós, rapsodos, aedos, poetas,
dramaturgos e atores para tornar a vida mais empolgante.
Timandro:
Por outro lado, há um abismo entre a situação do artista que
considera a sua obra manifestação de uma entidade exterior — e,
portanto, nenhuma responsabilidade e mérito tem nela —, e a
situação de outro artista que, atuando sem o pressuposto de
influências metafísicas, considera a obra sua, com tudo o que isso
implica: batalhar por ela, pôr nela todo o seu saber e sentir, não se
entregar à preguiça, sabendo que só o seu trabalho a fará
emergir. Agora, dize-me, Íon: preferes ser o títere manipulado por
uma improvável divindade, ou o autor da admirável arte que move a
alma das multidões?
Íon:
Se pões as coisas nesse pé…
Joaquim
Bispo
*
Fonte
(emulada na forma, mas contestada nas teses): PLATÃO, Victor
Jabouille (tradução), Íon, Lisboa, Editorial Inquérito,
Lda., 1988.
*
Imagem:
Conversa entre filósofos, mosaico de Pompeia, século I d.
C., Museu de Arqueologia, Nápoles.
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10/04/2018
O suplício de Pigmalião
Em 10.4.18
por joaquim bispo
Com
uma porção de pasta de moldar encho as mãos. Amasso-a entre dedos
e palma, longamente. Aquece, amolece, como massa de pão. A tepidez
potencia a impressão de textura de pele. Sinto que não há nada
mais sensual.
A
pasta revela-se infinitamente moldável, maleável, modelável.
Obedece docilmente aos movimentos não pensados das minhas mãos.
Sem
que as procure, surgem-me formas anatómicas. Como não, se vivemos
rodeados delas, nos seres, nas pessoas? Crio espessuras,
rotundidades; ensaio estiramentos.
Surgem
cabeça, tronco, ancas, primeiro como meros esboços de volumes,
depois em refinamentos de formas femininas. Crescem membros
delicados. A textura do material, acetinada, torna-se cúmplice.
Irrompem seios, face, cabeleira, dedos.
Completa,
perfeita, a figura feminina reclina-se na minha mão, mansamente. A
ilusão de vida é total. Uma emoção perturbadora apodera-se de
mim.
Alucinado, invoco os olímpicos, mas esses deuses que se apiedaram de Pigmalião, quando o escultor se apaixonou pela sua obra, mantêm-se incomunicáveis.
Um
suplício é acrescentado à lista mitológica e uma sombra de
tristeza primordial instala-se, profunda, nos meus olhos.
Joaquim
Bispo
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Uma
versão deste miniconto integra a antologia do I Concurso de
Minicontos Autores S/A — Autores S/A e Editora Penalux, Brasil,
2013.
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Imagem:
Jean-Léon Gérôme, Pigmalião e Galateia, 1890.
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