10/08/2016

O coelhinho medroso


Era uma vez um coelhinho cinzento que vivia num campo de beringelas. Durante o dia, corria e saltava feliz, comia e dormia à sombra das plantas; à noite, tremia de frio, e de medo de ser apanhado e comido por algum monstro. Dormia ao relento, porque jamais entrara numa toca, com medo que ela lhe caísse em cima e o esmagasse. Até a vista de um buraco numa árvore o assustava, por não saber o que tinha lá dentro.
Certa vez, passou por aquele lugar uma menina de vestido branco e longos caracóis castanhos, que andava a passear, porque se aborrecia de estar em casa, e encontrou o coelhinho, com cara infeliz, aninhado entre dois troncos.
Por que estás triste, coelhinho cinzento? — perguntou ela.
Gostava de ter uma toca para me recolher, como os outros coelhinhos, mas tenho medo que a toca me caia em cima e me esmague — respondeu o coelhinho, timidamente.
Por que é que havia de te cair em cima, coelhinho? Sê corajoso! — animou-o a menina. — Não sabes preparar uma toca?
Não — lamentou-se o coelhinho cinzento — nunca ninguém me ensinou.
Oh! — condoeu-se a menina, fazendo-lhe uma festinha na cabeça — eu ensino-te.
E assim, durante a tarde inteira, a menina do vestido branco, com muita paciência e ternura, ensinou o coelhinho cinzento a preparar uma toca, para que ela não lhe caísse em cima. Ensinou-o a encontrar o melhor local meio escondido entre as ervas, a remexer e amaciar a terra, a abrir a toca com as patinhas, a alisar a entrada com pequenas marradinhas. Quando a toca já estava de bom tamanho e com aspeto confortável, disse a menina:
Agora, coragem coelhinho! Esta toca está muito bem preparada e de certeza que não vai cair-te em cima. Entra sem medo, coelhinho!
E dava-lhe palmadinhas de encorajamento. O coelhinho cinzento, vendo como a toca parecia segura e acolhedora, e cheio de confiança pelo incentivo da menina, esticou o peito, em atitude resoluta, e entrou.
Na verdade, a toca era o local mais confortável e seguro onde alguma vez já tinha estado. Apetecia-lhe ficar lá dentro para sempre. Nem acreditava como tinha passado tantas noites a tiritar de frio e de medo. Quando saiu para agradecer à menina, esta pegou nele ao colo, e despediu-se com um abraço apertado. O coelhinho, comovido, não pôde evitar uma lágrima de ternura e gratidão. Desde então, todas as noites se recolhe à toca, confiante e feliz, sem nunca deixar de lançar um pensamento para a menina de vestido branco e longos caracóis castanhos.

Joaquim Bispo

* * *

Imagem:
Balthus, Teresa a Sonhar, 1938.
Metropolitan Museum of Art, New York.

* * *

(Este conto foi publicado no número 20 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2009.)

* * *

10/07/2016

toda. A semana



(Continuação:) (...)tava no lugar do condutor.

Na segunda-feira, estava um carro estacionado mesmo em cima da passadeira de peões que dá acesso à minha casa. Incomodado, afixei-lhe, a meio do para-brisas, um pequeno autocolante amarelo, que trago sempre comigo, que dizia: Estacione bem — Respeite os outros.

Na terça-feira, deparei com o mesmo carro estacionado na passadeira. Indignado, apliquei-lhe, desta vez, um outro pequeno autocolante vermelho, que dizia: Mal estacionado — Sujeito a reboque.

Na quarta-feira, o carro estava outra vez na passadeira. Irritado por a minha ação pedagógica não resultar, levantei-lhe os limpa para-brisas.

Na quinta-feira, lá estava o carro na passadeira. Exasperado com tanta falta de respeito pelos outros, coloquei-lhe um palito na válvula do pneu dianteiro direito. O ar ficou a vazar.

Na sexta-feira, o carro estava, uma vez mais, na passadeira. Furibundo, puxei da chave de casa e apliquei um risco profundo a todo o comprimento do carro.

No sábado, o carro já não estava na passadeira, finalmente. «Há pessoas que só entendem a linguagem da violência» — pensei.

No domingo, verifiquei, com horror, que o para-brisas do meu carro, bem estacionado, estava estilhaçado. Uma perna de um tanque de lavar roupa, em cimento, esprei(...)

(Continua na primeira linha.)
Joaquim Bispo

* * *
Imagem: M. C. Escher, Espirais, 1953.

* * *
(Este miniconto bebeu inspiração na estrutura rítmica de um pretenso “poema do budismo tibetano” e persegue uma estrutura circular. Foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

* * *


10/06/2016

O Messias do Ocidente


Assim que chegou a Tomar, João de Castilho procurou mestre Álvaro Rodrigues para conhecer o estado das obras que fora incumbido de finalizar, ainda antes de conhecer os alojamentos que lhe tinham sido atribuídos. Encarregou um dos homens da sua companha de tratar dessa parte logística. A viagem a cavalo fora cansativa, mas, assim que avistou o volume do castelo, foi tomado de grande curiosidade, dado o que sabia e o que ouvira dizer sobre o complexo religioso que crescia naquela envolvência militar. Foi encontrar mestre Álvaro a supervisionar os trabalhos no estaleiro da pedra, envolvido no ruído cadenciado dos martelos sobre os escopros. Este guiou-o pelos meandros da obra arquitetónica em execução:
Era aqui que mestre Diogo de Arruda se preparava para edificar o portal sul da igreja, mas, como sabeis, ele foi chamado, há uns meses, para uma campanha de obras em Safim e outras praças em Marrocos, e vós fareis como entenderdes, ou as ordens que tiverdes — explicava mestre Álvaro, avançando depois até aos andaimes instalados na charola. — Esta parte está quase acabada; só falta alguma estatuária, que está a ser talhada pelo vosso compatriota mestre Fernão Muñoz, e aplicar as imponentes tábuas já pintadas pela companha de mestre Jorge Afonso — continuava o guia, apontando os inúmeros nichos vazios e os trechos de parede entre as janelas góticas.
João de Castilho passava os olhos pelas alturas vertiginosas da capela-mor, tentanto imaginar o que mestre Álvaro lhe dizia, mas o seu assombro vinha-lhe de, enfim, conhecer no local a inusitada planta do antigo oratório.
Que extraordinário desenho, ao mesmo tempo austero e de subtil apelo à elevação espiritual! Um autêntico “eixo do mundo”.
Sim, esta parte foi construída pelos primitivos cavaleiros Templários, há mais de três séculos, inspirando-se no presumível templo de Salomão, que alguns viram em Jerusalém. Então, o templo era só este espaço poligonal de dezasseis lados, sustentado por estas oito colunas centrais. Entretanto, o espólio dos Templários passou para a ordem de Cristo, de que é Mestre o próprio senhor rei D. Manuel. Mestre Diogo foi incumbido de o rasgar a Ocidente para acrescentar uma nave, como vedes, e esta parte é agora “apenas” a abside.
A seguir, visitaram a nova sacristia de planta quadrada dupla, que João de Castilho devia abobadar. Mestre Álvaro deixou a maior surpresa para o fim. Quando, no exterior, se postaram frente à janela da sacristia, no local onde viria a ser implantado o claustro de santa Bárbara, o novo arquiteto parou um momento, depois sentou-se numa das pedras da obra e quedou-se a contemplar e a tentar compreender os inúmeros ornamentos que a envolviam num emaranhado pétreo.
Que dizeis? — saboreava o cicerone.
Mestre João nada dizia.
Esta é a parte em que mestre Diogo mais se transcendeu — continuou Álvaro Rodrigues. — Todos estes motivos marítimos e vegetalistas são de tais criatividade e beleza que, acredito, farão que se fale por muitos anos do seu arquiteto e do rei que os encomendou.
Entendo todas estas cruzes de Cristo — disse finalmente o novo arquiteto — afinal este é um convento da Ordem, mas porquê todas aquelas esferas armilares?
Esqueço-me que estais em Portugal há pouco tempo — refletiu o inquirido, que tinha ficado a tomar conta das obras até à chegada do novo dirigente. — A esfera enfaixada pelos círculos principais é um símbolo geográfico da bola do mundo e um dos emblemas do rei. Esse e o escudo real são reproduzidos exaustivamente em todas as obras de arte, quer de cantaria, pintura, iluminura ou mesmo estatuária. Os Portugueses andam pelas sete partidas do mundo, de tal jeito e proveito que D. Manuel se intitula “Pela graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além-mar em África, senhor da Guiné e da conquista da navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. As esferas estão lá para lembrar, em imagem, esse estatuto de rei do mundo.
Bem, Espanha começa a avançar por toda a América… — racionalizava João de Castilho.
E Portugal, pelo Brasil, essa fatia tão grande que ainda não se lhe viu o fim. Há vinte anos, em Tordesilhas, D. João II soube negociar. Mas, a riqueza está a Oriente. Quase que chega aqui o cheiro da pimenta. O nosso rei D. Manuel está exultante. E rico. Por isso lança tantas obras. Chamam-lhe “o venturoso”, porque tudo lhe corre bem. Há duas décadas, não suspeitava que pudesse vir a ser rei — era o nono na linha de sucessão. Caprichosamente, morreram sete desses candidatos. D. Manuel é aclamado rei, sem esperar. No início do seu reinado, é descoberta a passagem a sul para a Índia. E o Brasil. Sente-se predestinado. Vê no próprio nome — Emanuel, que em hebraico significa Deus connosco — uma indicação profética. A esfera já fazia parte da bandeira da família. Sphera Mundi tem sido transcrito em muitos documentos como Spera Mundi, isto é, a Esperança do Mundo. Quem sabe se não será ele o Messias que, unindo-se ao rei cristão da Etiópia — o Preste João — inverterá o avanço muçulmano no mundo, reconquistando Jerusalém e derrotando os Mamelucos do Egito!
Dizeis que há um esforço intencional de realçar alguns símbolos de modo a servirem um determinado interesse real?
O que tem sido ventura para D. Manuel também tem aspetos problemáticos. O certo é que a nobreza habituou-se a vê-lo como “apenas” o Duque de Beja, e não como El-rei. D. Manuel precisa de algumas ajudas de legitimação, por isso alguma desta retórica imagética, que vale mais que muitas proclamações. Toda a obra de aparato é um manifesto da grandiosidade do soberano e do estado. Se, além disso, o rei for mostrado em figura, ou em símbolo, em circunstâncias nobilitantes, maior grandeza adquire aos olhos dos súbditos e dos outros soberanos. Ele ainda alimenta a esperança de vir a ser, também, rei das Espanhas. E, ouvi dizer que se prepara uma embaixada ao Papa que leva um elefante indiano, dois leopardos e outros animais exóticos.
Noto que toda a ornamentação vegetalista como que nasce de robustas raízes que saem das costas de um homem ali na base do janelão. É Jessé? — perguntou incrédulo João de Castilho, que conhecia as iconografias comuns usadas por pintores e escultores, mas não esperava encontrar o pai mítico do rei David naquele contexto.
Sim; mestre Diogo disse-me que o velho representa Jessé. Segundo S. Mateus, como bem sabeis, essa genealogia desemboca em Cristo, após vinte e oito gerações. Aqui, vê-se que do seu dorso nascem vergônteas, que após várias circunvoluções desabrocham em esferas armilares, escudos reais e cruzes de Cristo. Não se pode ser mais incisivo na afirmação de predestinação, ainda por cima apoiada na Bíblia.
Realmente!
D. Manuel tem também realçado e feito representar o milagre de Ourique em que o nosso rei fundador teve uma visão da cruz de Cristo, onde se lia Com este signo vencerás — o mesmo que viu Constantino, o imperador romano que oficializou o cristianismo. Liga-se, assim, o rei fundador da nação portuguesa, com o imperador “fundador” do cristianismo, na pessoa de Emanuel das profecias, que é a cabeça da ordem de Cristo, Cristo que virá a ser o senhor do mundo. Ele pretende ser visto como a junção do poder temporal e do poder espiritual, uma sobreposição de César e Salomão. E Esperança do Mundo. Vários pintores o têm inserido em cenas religiosas, como a Adoração dos Magos, sendo El-rei representado como um dos reis magos vindos do Oriente. E, na verdade, ele é um importante rei, cujo poder assenta, antes de mais, no Oriente.
João de Castilho e Álvaro Rodrigues, arquiteto e mestre, continuaram a conversar sobre a singular figura do rei a quem serviam, e sobre as extraordinárias referências cruzadas que o identificavam. Não era difícil imaginá-lo com uma aura de Messias. A confirmação local de todas as informações que trazia era muito inspiradora para o novo arquiteto, gerando ideias de exaltação arquitetónica, a aplicar no portal sul que se pretendia majestoso. Se D. Manuel queria ser o bastião da cristandade e o seu modelo, o seu engenho estaria ao serviço dessa aspiração, fazendo deste convento um digno templo de Salomão no Ocidente!

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Diogo de Arruda, Janela manuelina do Convento de Cristo, Tomar, c. 15121513.

* * *

(Este conto foi publicado no número 22 da revista literária virtual Samizdat, de novembro de 2009.)

* * *


10/05/2016

O milagre do sol



Nos nossos tempos, muito afastados dos bíblicos, não acontecem milagres. Como se as entidades sobrenaturais estivessem ausentes ou imóveis e silenciosas. Quase todos os milagres ocorreram há muito tempo e os raros que nos chegam referem circunstâncias pouco verificáveis e testemunhos pouco representativos. Nas nossas sociedades racionalistas, chegamos a sentir a nostalgia de viver situações como a de Abraão ver entrar três anjos tenda adentro, ou ver Cristo dar de comer a cinco mil pessoas com cinco pães e dois peixes, ou assistir à revelação do anjo Gabriel a Maomé. A mais recente e importante manifestação do sobrenatural que conheço é a aparição da Virgem aos pastorinhos em Fátima. Em que só Lúcia, uma menina de 10 anos, garantiu que A viu. Aconteceu, no entanto, um fenómeno extraordinário relatado pelos jornais e visto por muitas das cinquenta mil pessoas presentes, o que deu dimensão às aparições, em si: o milagre do sol, na sequência da aparição de 13 de outubro de 1917, há quase cem anos. Como eu gostaria de lá ter estado!

Segundo uma testemunha que na altura tinha nove anos, «eu olhava fixamente o astro; pareceu-me pálido e privado da sua deslumbrante claridade; dir-se-ia um globo de neve girando sobre si mesmo. Depois, subitamente, pareceu descer em ziguezague, ameaçando cair sobre a Terra. (…) Durante os longos minutos do fenómeno solar, os objetos colocados perto de nós refletiam todas as cores do arco-íris… os nossos rostos ficavam ora vermelhos, ora azuis, ora amarelos. (…) Ao fim de dez minutos, o Sol retomou o seu lugar, da mesma maneira que dali tinha descido, sempre pálido e sem luminosidade.»

Outra testemunha disse: «O Sol começou a bailar e a dada altura pareceu deslocar-se do firmamento e em rodas de fogo, precipitar-se sobre nós.»

Outra, ainda: «coisa mais espantosa era poder olhar para o disco solar por muito tempo, brilhando com luz e calor, sem ferir os olhos ou prejudicar a retina. [Durante este tempo], o disco do sol não se manteve imóvel, teve um movimento vertiginoso, não como a cintilação de uma estrela em todo o seu brilho, pois girou sobre si mesmo num rodopio louco.
Durante este fenómeno solar, que acabo de descrever, houve também mudanças de cor na atmosfera. Olhando para o sol, notei que tudo se escurecia. Olhei primeiro para os objetos mais perto e depois estendi a minha vista ao longo do campo até ao horizonte. Vi que tudo tinha assumido cor de ametista. Os objetos à minha volta, o céu e a atmosfera, eram da mesma cor. Tudo perto e longe tinha mudado, tomando a cor de velho damasco amarelo. As pessoas pareciam que sofriam de icterícia e lembro-me de uma sensação de divertimento ao vê-los tão feios e repulsivos. A minha mão estava da mesma cor.
Então, de repente, ouviu-se um clamor, um grito de agonia vindo de toda a gente. O sol, girando loucamente, parecia de repente soltar-se do firmamento e, vermelho como o sangue, avançar ameaçadoramente sobre a terra como se fosse para nos esmagar com o seu peso enorme e abrasador. A sensação durante esses momentos foi verdadeiramente terrível.»

Para a maior parte dos crentes católicos, é incontestável que o fenómeno observado se deveu à Virgem, por vir na sequência das aparições anteriores, em que, aliás, terá sido sugerido algo desta magnitude. Para muitos descrentes, é certo que um fenómeno com estas características, a ter acontecido, deve ter sido causado por sugestão coletiva ou outro equívoco natural. Para a maior parte das pessoas tocadas pela escolarização, é evidente que o Sol não rodou nem se soltou do firmamento. A escola ensina que, se a estrela Sol se tivesse movido abruptamente, teria desencadeado uma catástrofe cósmica e destruído a Terra — devido à estrutura de inter-relação dos vários corpos do sistema solar —, mas não há notícia de que tenha havido sequer um grande terramoto naquela data. Os crentes não querem saber de racionalidades e leis da Física e dizem: “para Deus não há impossíveis”. Alguns cientistas não concebem seres que não possam ser verificados e dizem: “o nosso Universo não veio equipado de sobrenatural”.

Conversando sobre este assunto com uma tia devota, ela disse-me que há pessoas que afirmam presenciar um milagre do sol semelhante, durante a procissão de Santo António, a 13 de Junho, em Lisboa. Fiquei alvoroçado com a possibilidade de assistir a um fenómeno tão prodigioso e, na data indicada (por volta de 1999), lá estava eu integrado na procissão, atento, quer à ambiência celestial, quer à humana.
Junho em Lisboa, às quatro ou cinco da tarde é quente. A procissão movia-se devagar em frente da Sé. Então, comecei a ouvir algumas pessoas — uma aqui, outra ali — a chamar a atenção para o sol, a apontar, a dizer que viam o sol a girar. Uns e outros olhavam, tentando ver o fenómeno. O entusiasmo não era grande. Olhei também, de relance. O sol era uma bola de fogo, como habitualmente, perigoso para os olhos, como sempre.
Então, julguei compreender tudo. Eu estava farto de assistir a “milagres do sol”, de cada vez que jogava ténis e, tendo de acompanhar alguma bola alta, dava com os olhos no sol: a minha retina ficava maculada, onde o sol a queimara e, durante um bocado, uma mancha, com a mesma forma e de uma cor arbitrária, sobrepunha-se a tudo o que eu olhava. Naquele momento percebi que, provavelmente, tudo aconteceu não com o Sol, mas com o sol, isto é, a luz solar e a perceção que os presentes tiveram dela.
Para mim, era claro que também aquela gente estava a queimar a retina irresponsavelmente, e foi isso que disse a algumas pessoas, levemente receoso de que me considerassem herege. Ninguém ficou escandalizado ou irritado, talvez só um pouco pesaroso de que o seu desejo não se concretizasse. Eu próprio fiquei um pouco desapontado, embora não esperasse outra coisa.

Ao fazer pesquisa na internet para este artigo, encontrei esta opinião: «O milagre do Sol é o brilho ou reflexão que produz se o olharmos diretamente. Em dias de chuva, enevoados ou quando o Sol enfraquece no horizonte, é possível fixá-lo durante poucos segundos. Imediatamente se dá o Milagre do Sol. Se o olharmos, o Sol parece brilhar com imensos raios, rodar sobre si e descer vertiginosamente. Eu próprio já fiz a experiência para me certificar do milagre. Mas corremos riscos. Ao olhar o Sol, mesmo quando o brilho é menos intenso, podemos sofrer queimaduras graves na retina, e por isso é necessário bastante cautela. Ainda hoje, em Lisboa, há o (mau) hábito de, depois da procissão de Santo António, a 13 de Junho, algumas pessoas olharem o céu para verem o santo descer.»

Opinião neste sentido tem também um físico citado pela Wikipédia: «imagens residuais na retina, produzidas após breves períodos de olhar fixo no Sol, são a causa provável dos efeitos observados». E adverte que «milagres do Sol têm sido testemunhados em muitos locais onde peregrinos, cheios de religiosidade, têm sido encorajados a olhar para o Sol».

Ainda assim, o “milagre do sol” de 1917 terá aspetos difíceis de enquadrar numa única explicação. Há até quem fale em OVNI — o sol descrito como um disco prateado, baço, a girar no céu. Eu, por mim, sou mais convencido por explicações físicas e fisiológicas do que por outro tipo de especulações, mas gosto de cultivar uma atitude de prudência, conforme aprendi do astrónomo francês do século XVIII, Laplace:

«Estamos tão longe de conhecer todas as forças da Natureza e suas múltiplas modalidades de ação, que seria pouco filosófico negar a existência de certos fenómenos apenas porque não podem ser explicados no estado atual dos nossos conhecimentos.»

Esta reflexão, que serve de crítica aos que negam os fenómenos inexplicados, também pode ser entendida como uma crítica aos que aderem a explicações sobrenaturais, ainda antes de tentarem as naturais. Ceticismo puro e “sobrenaturalismo” puro são aqui igualmente criticados. Ambos abraçam soluções apressadas, que tantas vezes nos apontaram pistas equivocadas para a compreensão do Universo. O meio-termo, a solução ponderada, por onde passará?

A atitude dos grandes nomes, os que fizeram recuar o desconhecido, não foi a de aderirem a soluções não racionais ou que só explicavam parte dos fenómenos. Perseguiram pacientemente indícios ténues, por vias inesperadas, que desembocaram algumas vezes em explicações e conhecimento. Que sejam inspiração para nós!

Joaquim Bispo
* * *
Fontes:
Seomara da Veiga Ferreira, As Aparições em Portugal dos Séculos XIV a XX, Relógio d’Água, 1985.

* * *
(Este artigo foi publicado no número 16 da revista literária virtual Samizdat, de maio de 2009.)

* * *

10/04/2016

O Primeiro Passo


Não vês que estás a ir por maus caminhos, meu filho? — O anjo adotava uma postura paternal, a face preocupada, o gesto complacente.
Eu nem sei se quero ir por bons caminhos! — retorqui, desafiador.
Quando ele se materializara no meu quarto de solteiro, com ares de arcanjo Gabriel, passava das três da manhã. Estranhei, mais do que me assustei. Tinha estado na comissão de autogestão da fábrica a tratar de problemas deixados pelo patrão fugido e, proposta puxa discussão, tinha bebido umas três ou quatro cervejas. O verão de 75 ia quente em todos os sentidos, a Revolução avançava com autogestões nas fábricas e nos campos e auto-organização das populações em todos os domínios. Havia um sentimento no ar de que, finalmente, tudo era possível. E tanto que havia para fazer! O mais difícil era a mudança das mentalidades. Todos tínhamos sido condicionados para ser engrenagens de uma sociedade de obedientes, castos e tementes. De repente, tinham-se rompido as comportas que mantiveram a multidão calada e quieta, e esta inalava, impertinente, os primeiros aromas da liberdade.
Agora, até de replicar a um anjo eu me sentia capaz:
E, além do mais, o que é que tens com isso?
Não penses que podes viver como queres: lascivo, descrente e subversivo. Tudo está determinado e o teu lugar está muito bem definido.
Eu posso fazer o que quiser! Desde que não restrinja a liberdade de ninguém.
E não achas que roubar a fábrica de alguém é atentar contra a sua liberdade?
Não é roubar, é pôr ao serviço da comunidade — a começar pelos que lá gastaram o seu esforço, o seu tempo, as suas vidas —, o que alguém explorou e abandonou. Não é a sua fábrica, era a sua máquina privada de sacar mais-valias.
Não vês que tudo isto é apenas um remoinho passageiro!? Não vês qual é a ordem natural das coisas? Quando a poeira assentar, volta tudo ao que era. E então, tu estarás perdido.
Não me vão prender por tentar ajudar a pôr a fábrica a funcionar outra vez, está descansado!
Não é dessa perdição que eu estou a falar. — E continuou a pôr água na fervura revolucionária: — Quem me mandou não gosta de rebeldes. Gosta que a hierarquia esteja muito bem definida e que o de baixo não desobedeça ao de cima. Gosta que a moral e a religião sejam o guia das nações e que os seus dirigentes sejam austeros, mas bondosos, como os pais são para os filhos. Agora, tu és um filho pródigo que não respeita o seu pai.
Eu vejo é que o teu ar paternal, de há pouco, está a transformar-se na fúria contida de um mestre-escola autoritário. Por que é que quem te mandou não prefere a liberdade das pessoas e a livre adesão aos seus preceitos? Ou a livre rejeição!? Como é que se pode sentir satisfeito de mandar em autómatos, que se lhe sujeitam apenas pelo medo do castigo? Não repara como são alienadas as pessoas que se lhe submetem, que nem pensamentos de revolta podem ter?
Ele vê é que, com a ordem que instaurou, todos eram felizes. Já viste alguém feliz nesta revolução?
Sim, muitos, loucos de felicidade. Pela primeira vez são donos das suas vidas.
Loucos, dizes bem! A revolução pôs pais contra filhos, filhos contra pais, marido contra mulher, mulher contra marido. Os partidos, de que até o nome é revelador, destroem a harmonia da sociedade.
Os partidos são a expressão, crispada mas necessária, que faz circular na sociedade os vários conceitos da sua própria organização. Vocês não têm partidos? Os anjos dão-se bem com os querubins? E estes com os serafins? Ou também têm interesses de classe?
Lá, donde eu venho, a harmonia não tem ameaças. Todos conhecem e aceitam o seu nível celeste.
Não será bem assim! Tanto quanto eu sei, já houve revoltas. Não foi lá que Lúcifer bateu o pé ao teu patrão?
Sim, há esse episódio…
E essa tal harmonia de que falas não corre o risco de um dia ser alterada pela tomada do poder por Lúcifer?
O anjo, de que não cheguei a saber o nome, riu-se com gosto. Perdeu por momentos o ar, umas vezes pedagógico e protetor, outras tenso e vagamente ameaçador, e riu-se demorada e maliciosamente:
O Lúcifer foi um caso de sucesso. Foi das revoltas melhor recuperadas de que há memória. Achas que se ele fosse antissistema torturava os que lhe mandamos? Pelo contrário, procuraria tratá-los o melhor possível para ganhar aceitação popular. Não; o trabalho dele é um pouco desagradável, porque tem aquela falta cívica para pagar, mas está tão integrado e é tão necessário ao nosso sistema, como é o sistema prisional em qualquer sociedade humana. Aliás, quem me enviou está muito satisfeito com ele. O seu Inferno é a cúpula que completa o edifício teológico arquitetado.
Não era nada de que eu não tivesse já desconfiado, mas a confirmação, assim, de chofre, provocou-me uma náusea de repulsa por um desígnio tão totalitário.
Em vez de me convencer da perfeição do sistema e de me submeter aos argumentos do anjo, fui invadido por uma onda irreprimível de rejeição. Afinal, a oposição não era entre umas entidades sobrenaturais benfazejas, e outras maléficas, mas entre a liberdade de autodeterminação do Homem, e o obscurantismo das superstições e dos mitos, em conluio com as forças da exploração. Abri a janela e aspirei o ar fresco da noite.
Tretas! Andamos há milénios rodeados de tretas, que só servem para a classe exploradora nos manter mansos. Não acredito em nada disso. Nem em demónios, nem em anjos. Não quero. E, mesmo que acreditasse, seria contra! — A minha voz soou com uma tal limpidez, como se eu não tivesse dito nada antes.
Ou fosse porque os últimos vapores de álcool abandonaram os meus pulmões, ou porque os mitos só se instalam na cabeça de quem lhes dá guarida, o certo é que, quando me voltei, não vi anjo algum. Acho que nessa noite dei o meu passo revolucionário mais consequente.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: “Kouros” de Kroisos, Anavyssos, c. 530 a.C., Museu arqueológico de Atenas.

* * *
(Este conto foi publicado no número 18 da revista literária virtual Samizdat, de julho de 2009.)

* * *

10/03/2016

Génesis e Apocalipse



Miguel Ângelo, Crepúsculo, Alvorada, Túmulo de Lourenço de Médici, Florença, 1524–1534.

Alvorada

O mundo era ermo e inóspito. Os pedregulhos erguiam-se crispados, sobranceiros à aridez de um mar de dunas. As areias estendiam-se, cálidas e mortíferas, até ao horizonte. O céu, ofuscante de branco, não concedia qualquer matiz, em toda a abóbada exposta. Só o Sol ardente, a pique, presidia sobre as coisas inanimadas.

Então, nos interstícios da rocha calcinada, numa brecha ínfima, por uma singularidade improvável, formou-se uma gotícula de orvalho, uma nesga de sombra. O espírito da árvore acordou, reconheceu a sua essência e formou um pensamento.
E um manto verde cobriu a Terra inteira.

*

Crepúsculo

As informações que recolhi, Grande Kha, indicam que o clima sofreu variações promissoras nos últimos ciclos. As grandes quantidades de poeiras, fumos, e óxidos de carbono e de enxofre lançadas para a atmosfera, pela espécie animal dominante, criaram impercetivelmente uma capa que, deixando penetrar muita radiação, constituiu um obstáculo à sua libertação para o espaço. O aquecimento progressivo fez derreter as calotes polares, aumentou exponencialmente a evaporação dos oceanos, e favoreceu vagas de incêndios que devastaram as aglomerações vegetais das zonas equatoriais e adjacentes. Tanto vapor de água e cinzas na atmosfera acabou por impedir a luz solar visual de chegar ao solo, mas continuou a deixar penetrar a radiação infravermelha. Sem luz solar, sem fotossíntese, as espécies vegetais morreram e os que delas se alimentavam. O calor tornou a vida impossível à maior parte das espécies tradicionais, até às latitudes polares. Os organismos ficaram literalmente estufados. Neste mundo escuro e escaldante, medram fungos de todas as variedades, que dispõem de muita matéria orgânica em decomposição. Os indivíduos da espécie animal dominante — os 50 milhões que restam — retiraram-se para junto dos polos. Creio que estão criadas, enfim, as condições para a nossa instalação.

Joaquim Bispo

* * *

(Estes minicontos foram publicados no número 15 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2009.)

* * *



10/02/2016

Perdidos na translação


O aniversário de nascimento é a data mais marcante para quase todas as pessoas. Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o esquecem. Comemorar aquele momento especial em que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos. Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques não é diferente:
Hoje o nosso Martim vai apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez — anuncia o baboso pai da criança.
Reuniu à volta da mesa de almoço, em sua casa, avós, tios e primos do bebé. E mais meia dúzia de outros familiares. A ocasião não é para menos.
Nasceu exatamente à uma da tarde, de 20 de fevereiro — relembra. — Quando for uma da tarde, completará um aninho e vamos todos cantar-lhe os parabéns!
Isso, agora… — intervém o tio Francisco, que é um autodidata vaidoso e muito metediço. — Até podemos cantar-lhe os parabéns, mas esse miúdo tão giro não completa um ano à uma da tarde.
Como assim, tio? — reclama o papá frustrado. — Eu estava lá e assisti ao parto! Assim que saiu cá para fora, olhei para o relógio: uma da tarde em ponto.
Eu não digo o contrário, mas não passa um ano à uma. Só lá perto das sete da tarde. Aliás, curiosamente, é por isso que este mês tem 29 dias.
Todos os familiares já conhecem bem estas tiradas do tio e sabem que não há nada a fazer: de uma maneira ou de outra, ele vai desbobinar o relatório completo:
Estamos habituados a que, de 4 em 4 anos, fevereiro tenha 29 dias, em vez dos habituais 28 — continua ele, enchendo o peito. — É o resultado das repetidas tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano de calendário à duração da translação da Terra. O que não é nada fácil, porque, em vez de um número inteiro de dias, a viagem à volta do Sol deste esferoide maravilhoso, em que vivemos, dura 365,2422 dias. Nem 365, nem 366; um pouco mais de 365. Ora, o que é que isto implica? Que, no caso do nosso Martim, o aninho dele completa-se só pelas… 18 horas e quase 49 minutos.
Neste ponto, o pai da criança fecha os olhos e baixa e abana a cabeça, desanimado. Os mais novos, meio surpreendidos, meio divertidos, prestam alguma atenção à explicação do tio esquisito, que prossegue:
Alguns povos da Antiguidade, como os Mesopotâmicos, usavam 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, o que perfazia só 354 dias, mas, quando havia necessidade, adicionavam um mês extra. Os Egípcios e os Persas já usavam 12 meses de 30 dias, a que acrescentavam 5 dias, no fim do ano.
Por amor de Deus, tio; contas agora não! — insurge-se a mãe da criança.
Isto é muito interessante. São só dois minutos — desculpa-se o divulgador extemporâneo de ciência e história. — O calendário juliano — de Júlio César, do século I a.C. —, que vigorou no Ocidente por mais de 15 séculos, estipulava um ano de 365 dias, exceto que, a cada 4 anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de março. A cada 4 anos, havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de março. É daí que vem a designação de “bissexto”, e não por 366 dias ter dois algarismos 6. E de calendas derivou calendário.
Então, era igual ao nosso! — atreve-se um dos miúdos.
Quase! — esmiúça o “tio-enciclopédia”, puxando de uma esferográfica e de um guardanapo de papel. — O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano médio deste calendário — (365 + 365 + 365 + 366) / 4 = 365,25 dias — era ligeiramente maior do que o da duração real: 365,2422 dias. A diferença era pouca, mas, com o passar dos séculos, o desfasamento foi aumentando tanto que, no século XVI, o equinócio da primavera acontecia vários dias antes do dia 21 de março e tornou-se premente adotar outro calendário. Em 1582, sob o Papa Gregório XIII, adotou-se o calendário atual — o gregoriano, derivado do nome do Papa. Para que o dia 21 de março do calendário voltasse a coincidir com o equinócio da primavera, houve que saltar 10 dias. O ajuste foi feito no outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de outubro e quando acordaram no dia seguinte era o dia 15.
A sério? — entusiasma-se outro. — Que cena!
Sim. Foram 10 dias que nunca existiram no calendário de Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este calendário.
Mas saltar 10 dias resolveu o problema, de vez? — capitula o pai do aniversariante.
Não, mas minorou-o bastante. Repara no que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do ano:

. O ano tem 365 dias;
. Se o ano for divisível por 4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de fevereiro. Por exemplo, este ano — 2016 — é bissexto;
. Se o ano for fim de século e divisível por 400 — por exemplo 2000 —, o ano é bissexto. Caso contrário, mantém os 365 dias. É o caso dos anos de 1700, 1800, 1900, 2100, que são divisíveis por 4, mas não por 400.

Rematando o raciocínio, o tio Francisco ataca de novo o guardanapo:
Assim, o tamanho médio do ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365) + 366] / 400 = 365,2425. Mesmo com esta “ginástica” toda, ainda há que saltar um dia a cada 3333,(3) anos! Que difícil de encaixar esta nossa Terra! Não acham? — conclui.
Na mesa do almoço da festa do primeiro ano do bebé Martim, reina um silêncio mais ou menos constrangido. Quebra-o a avó Celeste:
Então, sendo assim, não custa nada adiar o bolo e os parabéns para mais logo — comenta, decidida. — Cantar os parabéns antes é que não! Dá azar.
Furtivamente, o anfitrião aproxima-se da esposa e sussurra-lhe:
Faz-me um favor, pela tua saúde: não convides mais o teu tio Francisco para as nossas festas!
Mas ela olha-o com um sorriso e dá de ombros, como quem diz: «Deixa lá! É um chato, mas é nosso.»

Joaquim Bispo

* * *

(Este conteúdo foi publicado, sob a forma de ensaio, no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009, com o título “O ano bissexto”.)

* * *