10/02/2016

Perdidos na translação


O aniversário de nascimento é a data mais marcante para quase todas as pessoas. Embevecem-se quando recebem os votos de parabéns e ficam infelizes se os outros o esquecem. Comemorar aquele momento especial em que se veio ao mundo empolga tanto os aniversariantes, que muitas vezes organizam uma festa a que associam familiares e amigos. Mas, único mesmo é o primeiro aniversário. Em casa da família Marques não é diferente:
Hoje o nosso Martim vai apagar uma velinha de bolo de aniversário pela primeira vez — anuncia o baboso pai da criança.
Reuniu à volta da mesa de almoço, em sua casa, avós, tios e primos do bebé. E mais meia dúzia de outros familiares. A ocasião não é para menos.
Nasceu exatamente à uma da tarde, de 20 de fevereiro — relembra. — Quando for uma da tarde, completará um aninho e vamos todos cantar-lhe os parabéns!
Isso, agora… — intervém o tio Francisco, que é um autodidata vaidoso e muito metediço. — Até podemos cantar-lhe os parabéns, mas esse miúdo tão giro não completa um ano à uma da tarde.
Como assim, tio? — reclama o papá frustrado. — Eu estava lá e assisti ao parto! Assim que saiu cá para fora, olhei para o relógio: uma da tarde em ponto.
Eu não digo o contrário, mas não passa um ano à uma. Só lá perto das sete da tarde. Aliás, curiosamente, é por isso que este mês tem 29 dias.
Todos os familiares já conhecem bem estas tiradas do tio e sabem que não há nada a fazer: de uma maneira ou de outra, ele vai desbobinar o relatório completo:
Estamos habituados a que, de 4 em 4 anos, fevereiro tenha 29 dias, em vez dos habituais 28 — continua ele, enchendo o peito. — É o resultado das repetidas tentativas que os Homens têm feito para adaptar o tamanho do ano de calendário à duração da translação da Terra. O que não é nada fácil, porque, em vez de um número inteiro de dias, a viagem à volta do Sol deste esferoide maravilhoso, em que vivemos, dura 365,2422 dias. Nem 365, nem 366; um pouco mais de 365. Ora, o que é que isto implica? Que, no caso do nosso Martim, o aninho dele completa-se só pelas… 18 horas e quase 49 minutos.
Neste ponto, o pai da criança fecha os olhos e baixa e abana a cabeça, desanimado. Os mais novos, meio surpreendidos, meio divertidos, prestam alguma atenção à explicação do tio esquisito, que prossegue:
Alguns povos da Antiguidade, como os Mesopotâmicos, usavam 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, o que perfazia só 354 dias, mas, quando havia necessidade, adicionavam um mês extra. Os Egípcios e os Persas já usavam 12 meses de 30 dias, a que acrescentavam 5 dias, no fim do ano.
Por amor de Deus, tio; contas agora não! — insurge-se a mãe da criança.
Isto é muito interessante. São só dois minutos — desculpa-se o divulgador extemporâneo de ciência e história. — O calendário juliano — de Júlio César, do século I a.C. —, que vigorou no Ocidente por mais de 15 séculos, estipulava um ano de 365 dias, exceto que, a cada 4 anos, se inseria um dia extra junto ao sexto dia das calendas de março, isto é, 6 dias antes do dia 1 de março. A cada 4 anos, havia, assim, a repetição de um sexto dia das calendas de março. É daí que vem a designação de “bissexto”, e não por 366 dias ter dois algarismos 6. E de calendas derivou calendário.
Então, era igual ao nosso! — atreve-se um dos miúdos.
Quase! — esmiúça o “tio-enciclopédia”, puxando de uma esferográfica e de um guardanapo de papel. — O rigor era razoável, mas, como se percebe, o ano médio deste calendário — (365 + 365 + 365 + 366) / 4 = 365,25 dias — era ligeiramente maior do que o da duração real: 365,2422 dias. A diferença era pouca, mas, com o passar dos séculos, o desfasamento foi aumentando tanto que, no século XVI, o equinócio da primavera acontecia vários dias antes do dia 21 de março e tornou-se premente adotar outro calendário. Em 1582, sob o Papa Gregório XIII, adotou-se o calendário atual — o gregoriano, derivado do nome do Papa. Para que o dia 21 de março do calendário voltasse a coincidir com o equinócio da primavera, houve que saltar 10 dias. O ajuste foi feito no outono. As pessoas adormeceram no dia 4 de outubro e quando acordaram no dia seguinte era o dia 15.
A sério? — entusiasma-se outro. — Que cena!
Sim. Foram 10 dias que nunca existiram no calendário de Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Os outros países foram, posteriormente, aderindo a este calendário.
Mas saltar 10 dias resolveu o problema, de vez? — capitula o pai do aniversariante.
Não, mas minorou-o bastante. Repara no que estipula o calendário gregoriano para o tamanho do ano:

. O ano tem 365 dias;
. Se o ano for divisível por 4, e não for fim de século, acrescenta-se um dia ao mês de fevereiro. Por exemplo, este ano — 2016 — é bissexto;
. Se o ano for fim de século e divisível por 400 — por exemplo 2000 —, o ano é bissexto. Caso contrário, mantém os 365 dias. É o caso dos anos de 1700, 1800, 1900, 2100, que são divisíveis por 4, mas não por 400.

Rematando o raciocínio, o tio Francisco ataca de novo o guardanapo:
Assim, o tamanho médio do ano de calendário é igual a: [(300 x 365) + (96 x 366) + (3 x 365) + 366] / 400 = 365,2425. Mesmo com esta “ginástica” toda, ainda há que saltar um dia a cada 3333,(3) anos! Que difícil de encaixar esta nossa Terra! Não acham? — conclui.
Na mesa do almoço da festa do primeiro ano do bebé Martim, reina um silêncio mais ou menos constrangido. Quebra-o a avó Celeste:
Então, sendo assim, não custa nada adiar o bolo e os parabéns para mais logo — comenta, decidida. — Cantar os parabéns antes é que não! Dá azar.
Furtivamente, o anfitrião aproxima-se da esposa e sussurra-lhe:
Faz-me um favor, pela tua saúde: não convides mais o teu tio Francisco para as nossas festas!
Mas ela olha-o com um sorriso e dá de ombros, como quem diz: «Deixa lá! É um chato, mas é nosso.»

Joaquim Bispo

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(Este conteúdo foi publicado, sob a forma de ensaio, no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009, com o título “O ano bissexto”.)

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10/01/2016

Sem abrigo


O dia começou-me mal. Não ouvi o despertador e cheguei atrasado ao emprego. Isto numa sexta-feira, o dia em que saio mais cedo para ir à consulta do psicanalista a Lisboa.
Parti de Castelo Branco às quatro da tarde e às seis já estava a chegar ao aeroporto mas, a partir daí, o trânsito estava complicado. Perto das sete, a hora da consulta, telefonei do Campo Grande ao doutor, a pedir desculpa pelo atraso. Às sete e vinte, já desvairado, encostei o carro como pude, a meio da 5 de Outubro, e apressei o passo para o consultório, que é junto ao Saldanha.
A consulta foi pouco produtiva. Não consegui soltar-me e verbalizar todas as queixas que tenho da vida, desde que a Noémia me deixou. Quando ia para pagar, dei-me conta que tinha deixado a carteira no compartimento da porta do carro, onde a meti ao pagar a portagem. Fiquei a dever a consulta.
Voltei ao carro, mas não o encontrei. No café em frente, confirmaram-me que tinha sido rebocado. Na pressa, tinha-o posto num espaço reservado a deficientes.
De repente, vi-me numa situação muito desconfortável: só tinha um porta-moedas com 4 euros e 40, eram nove da noite, estava a duzentos quilómetros de casa e não tinha onde dormir. Enquanto pensava o que havia de fazer, comi uma sandes de queijo com uma imperial e um café. Fiquei com 1 euro e 70.
Lembrei-me de um amigo da tropa, o Marques, que, quando me encontra, insiste para o ir visitar a Campo de Ourique. Liguei-lhe, mas, assim que começou a chamar, acabou-se a bateria do telemóvel. Numa lista telefónica, por exclusão de partes, encontrei a morada. Meti-me no Metro até ao Rato e depois fui a pé. Quando dei com a rua Tomás da Anunciação, eram já quase onze da noite. Toquei, toquei à campainha, mas ninguém respondeu. Se calhar tinham saído de fim-de-semana.
Voltei para trás, meio acabrunhado. Sem saber para onde ir, segui a linha do elétrico por S. Bento até ao Chiado. Já não cirandava pela cidade desde os tempos de tropa, há uns vinte e tal anos. Aqui e ali, vi pessoas a dormir enroladas em cobertores e metidas em caixas de cartão. Como se teriam deixado chegar àquilo? Um despedimento inesperado? Um endividamento incontrolável? Uma desistência abismal? Um indivíduo de barba hirsuta veio pedir-me «uma ajuda». Apeteceu-me dizer-lhe «hoje não pode ser», como habitualmente, mas acabei por lhe dar vinte e cinco cêntimos. Pela primeira vez, sentia uma identificação estranha com aquelas pessoas. Deambulei pela Baixa a ver as iluminações de Natal. Era minha intenção continuar a andar até que amanhecesse mas, ao contrário do que esperava, comecei a sentir-me cansado. Subi a Almirante Reis e toquei em três pensões. Uma estava cheia e as outras duas não me aceitaram sem identificação ou sem pagar adiantado.
Pela primeira vez, também não tinha onde dormir. Para piorar as coisas, começou a chuviscar. Estive um bocado debaixo do toldo de uma montra de móveis. Depois, encostado às paredes, meti por uma transversal da Morais Soares e entrei na porta de um prédio que estava encostada.
Fiquei parado na penumbra, atento a todos os ruídos. Do alto das escadas ouvia-se, de vez em quando, um ruído indefinido. Cheirava a mofo. Sentei-me nos degraus de madeira e aos poucos a fadiga invadiu-me. Estive ali muito tempo de pernas encolhidas, dobrado sobre os joelhos, com o rosto apoiado nas mãos abertas, enquanto o frio se espalhava por todo o corpo. Apesar de estar cheio de sono, só conseguia adormecer por curtos períodos, devido ao frio e à posição. Apetecia esticar-me. A meio da noite, reclinei-me de lado nos degraus, mas as arestas magoavam. Fui mudando amiúde de posição. Tiritava. Os pés estavam gelados. Ansiava pela manhã.
De repente, meio estremunhado, ouvi ruídos de passos a descer as escadas. Em poucos segundos, estava confrontado com um cão grande a ladrar furiosamente e a fazer avanços para me morder. O que me valeu foi o dono e a trela com que o segurava. Envergonhado, saí.
Tinha parado de chover. Subi a rua até ao alto da Penha de França. O casario acinzentado começava a ganhar cor. Do lado de Xabregas, o céu tingia-se de fortes tons de vermelho. Em breve, a enorme bola solar fez a sua entrada triunfal. Há quanto tempo não via um nascer de Sol! Fiquei um bocado a saborear essa extraordinária visão e a sentir o corpo a deleitar-se com o pouco calor que transmitia.
Depois, comecei a encaminhar-me para o parque de carros rebocados de Sete Rios. Na Duque de Ávila, encontrei um café aberto. Perguntei quanto custava um galão.
Oitenta!
E se for setenta? ― murmurei eu, de porta-moedas aberto.
O homem mirou-me e começou a preparar o galão. Deve ter reparado na barba por fazer, nos olhos remelados, na roupa amarrotada e empoeirada de roçar nas escadas. Fui à casa de banho, aliviei a bexiga, lavei os olhos e passei as mãos molhadas pelo cabelo. Daí a pouco, com o calor do galão a inundar-me o estômago, sentia-me pronto para outra. Salvo seja! Espero que nunca mais volte a não ter onde dormir. Nem imagino pelo que passa quem vive anos sem abrigo.
Ao resgatar o carro, fiquei a saber que passei uma noite horrível sem necessidade: afinal, o parque de rebocados só fecha à meia-noite. Nesse início de 2009, apeteceu-me gritar uns palavrões.

Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 14 da revista literária virtual Samizdat, de março de 2009.)

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10/12/2015

Colo


Deolinda obrigava-se a sair de casa, nem que fosse para comprar um pacotinho de biscoitos ou mais uma lata de ervilhas, de que não precisava para já. Estava reformada havia quatro anos e aborrecia-se em casa. Talvez inconscientemente, fracionava as tarefas no exterior, em vez de as aviar todas de uma vez, de modo a ter pretextos para sair de casa. Ia ao centro da Póvoa comprar fruta ― umas boas centenas de metros ―, ainda que tivesse um minimercado do outro lado da rua. Era uma maneira de pôr em prática a caminhada que o médico recomendava, além de aproveitar para espreitar umas montras e, sobretudo, ver gente. O regresso, a subir, tornava-se um pouco penoso, sobretudo se exagerava no peso.
Falava a todas as vizinhas, mas demasiada proximidade incomodava-a, de modo que não frequentava a casa de nenhuma, nem convidava ninguém para a sua. Encontrava umas com os netos, outras a passear os cães. Rejubilava sinceramente com os progressos das crianças, cada uma já com personalidade própria, desde pequenas. À baila vinham sempre as queixas das descuidadas noras ou dos cabeças-no-ar dos filhos, mas sempre lhe parecia que todos os trabalhos que os netos exigiam eram largamente compensados pela alegria de os mostrarem e se envaidecerem com o êxito dessa exibição. A ela restava esperar ― já que o filho casara havia meses ―, mas também desesperar, porque ele e a jovem mulher tinham ido viver para os Estados Unidos.
Duas ou três vizinhas ― todas viúvas, como ela, por sinal ― enganavam a solidão com a companhia de um cão, mesmo que também recebessem a visita esporádica dos netos.
A Dona Ludovina “herdara” o cão do marido. Ele é que gostava de animais e durante anos passeou um caniche preto. Um dia o dono não acordou e ela assumiu a responsabilidade do bicho, que, coitado, durante meses, em vez da azáfama habitual na espécie de cheirar e marcar território no passeio, manteve uma atenção angustiada a todos os homens com que se cruzava, na expectativa de reencontrar o dono. A exigência de tratar do animal e de o levar à rua três vezes por dia ajudaram-na, possivelmente, a seguir em frente na nova condição de viúva.
Outra passeadora de cão ― a Dona Clara ―, viúva há mais de vinte anos, executava apenas a rígida rotina de casa–trabalho–casa, cinco dias por semana, desde que o filho casou e saiu de casa. Mulher austera, amiga do rigor e da franqueza, tornou-se ainda mais antipática quando se reformou. Era uma administradora do prédio eficiente, que não descuidava reparações e limpeza, mas condómino que se atrasasse no pagamento da respetiva comparticipação podia estar certo de ouvir um remoque. O filho, percebendo talvez o problema, ofereceu-lhe um pequeno cão de pelo curto, tipo podengo. Foi remédio santo. A exigência de levar o bicho à rua, o incontornável contacto com outros passeadores de cães e, certamente, o adoçamento que um animal de companhia traz a um ser humano transformaram-na, visivelmente. O “bicho de mato” que tinha sido transmutou-se numa pessoa que se permitia ficar no passeio a conversar com outras, a rir até, revelando uma simpatia simples, desconhecida nela, até então.
Foi Dona Clara que primeiro lhe sugeriu um cão para companhia. Deolinda, porém, não se via a ficar dependente de um animal, a ter de o levar à rua, quando lhe apetecia ficar simplesmente a ler ou a ver televisão. E depois o cheiro! Ela até gostava de animais, pois fora criada na província, com pai caçador, mas em sua casa sempre os cães tinham sido confinados ao amplo quintal. Todas as casas que conhecia com cães tinham um indisfarçável cheiro a covil.
Durante algum tempo, depois de se reformar, Deolinda ainda manteve contacto com as antigas colegas. Uma vez por mês, em média, saía com uma das outras reformadas e, de longe em longe, acedia ao convite de um almoço conjunto. Infelizmente, duas delas morreram e o grupo acabou por espaçar cada vez mais os encontros.
Chegou a inscrever-se na universidade sénior, para manter algum fluxo de aquisição de saber, mas desiludiu-se. O mulherio parece que só lá ia pela conversa e mantinha um zunzum no ar durante as aulas, quando não chegava a atender telemóveis. Assim, não! Preferia ficar em casa a ler.
Lia muito, tanto que as estantes de casa estavam a abarrotar, mesmo depois de levar caixas com livros para a terra. Começou a frequentar a biblioteca municipal, que era uma alternativa quase perfeita. Tinha um acervo extenso e variado, tanto de diversos livros recentes, como dos clássicos, que muitas livrarias se abstêm de ter.
Nas últimas férias ― se se pode falar de férias em relação a uma reformada ―, além de uma semana na terra, tentou umas surtidas às praias de Lisboa, mas a confusão que tais multidões causavam, incomodavam-na, sem falar das angustiantes filas do trânsito no regresso. Nos anos anteriores ainda passara uns dias numa praia sossegada, com o filho, mas agora...
Fazia-lhe falta a proximidade do filho. Estava muito constrangida pela perspetiva de passar o Natal sozinha. Era o primeiro Natal sem ninguém. O marido morrera havia oito anos e agora também o filho se afastara. As férias, enfim, mas o Natal! Onde o passar? Como? Com quem?
Em cima da data, resolveu passá-lo na terra ― uma aldeia do interior beirão. Em vez de levar o carro, preferiu meter-se num autocarro Expresso e ir tranquilamente sentada a ver a paisagem e a recordar os tempos de faculdade, quando ia à terra todos os quinze dias. Sentia-se um pouco triste e resolvera aceitar esse estado de espírito, interiorizando-o e cultivando-o com recordações dos tempos felizes. Por isso decidira passar o Natal na terra.
A casa que ali mantinha, e aonde ia umas três ou quatro vezes por ano, pareceu-lhe mais silenciosa que habitualmente. Arejou-a, varreu-a e deu-lhe uma arrumadela. Cada móvel, cada divisão, traziam-lhe à memória um episódio conjugal, uma piada do filho. Fez um chá, comeu umas tostas com compota e deitou-se. A cama parecia molhada, de tão fria. Embrulhou os pés num xaile velho e demorou ainda um bom bocado a adormecer.
O dia seguinte, véspera de Natal, amanheceu escuro e frio. Deolinda foi à mercearia comprar leite, pão e umas coisas para o jantar. O almoço foi frugal e saiu a seguir, para tomar um descafeinado. Não encontrou ninguém conhecido, só gente nova. Em tempos, não dava um passo sem encontrar alguém de família.
Voltou para casa, sem saber como ocupar o tempo. Se calhar, não tinha sido boa ideia vir este ano à terra! Deambulou pelas divisões silenciosas, a olhar as fotografias cinzentas: aqui, jovem, com o marido, no casamento de um primo; ali sorridente com “os seus homens”, numa visita a Cáceres; mais além, o pai aprumado numa farda do tempo da tropa.
Lá fora, começara a cair uma chuvinha miúda. Deolinda ficou um bocado a olhar a rua vazia e a ver as gotículas de chuva a formarem pequenos veios na vidraça. Assim eram os seus dias a escorrerem, não sabia para onde.
Cozeu umas batatas com grelos e uma posta de corvina. Há dez, quinze anos, teria feito também uma boa sopa de feijão com hortaliça, uma perna de borrego e umas rabanadas. Agora, tudo lhe fazia mal. Comeu o peixe com pouca vontade. Não lhe sabia a nada. Deixou metade da posta.
Acendeu o lume na lareira da cozinha e sentou-se a olhar as línguas das chamas que consumiam mansamente os cavacos com que as ia alimentando. Assim a sua vida se ia consumindo, placidamente, sem dramas, sem objetivo. Aguentou-se por ali a cabecear, a fazer horas para a missa do galo.
Junto ao adro, o cheiro a madeira queimada, tão familiar, fê-la lembrar-se dos antigos natais, quando ir conviver e aquecer-se junto à fogueira de Natal era uma festa. Passou pelo bando de rapazes que, indiferentes à chuva miudinha e gelada, mantinham uma algazarra regada a vinho, junto aos madeiros em chamas, entrou na igreja, logo reconhecida, e sentou-se junto à coxia.
Lá estavam, parados no tempo, os santos da sua meninice ― Santo António, a Senhora das Dores, São Sebastião, o Coração de Jesus. Durante toda a missa foi recordando alguns episódios ligados a esta igreja da sua terra ― o crisma, o casamento da tia Matilde, o batizado do primeiro sobrinho, um dos primeiros afogueamentos, quando reparou que um rapaz mais velho olhava para ela de uma forma especial.
Quando o celebrante levantou a hóstia, Deolinda sentiu-se muito desamparada. Intimamente, implorou:
«Sejas Tu quem fores, ajuda-me; ajuda-me, por favor!»
A missa acabou. Deolinda ficou ainda um pouco, ajoelhada, em recolhimento. Aproveitando a porta aberta pelas pessoas que iam saindo, entrou na igreja um gatinho ainda pequeno, molhado e enregelado, a abrigar-se do tempo hostil. Era malhado de preto e branco, parecia confuso e miava debilmente, entre o receio e o queixume. Foi caminhando pela coxia central, enquanto o seu miado se tornava mais suplicante, sobressaindo por cima da vozearia lá de fora. Deolinda ouviu-o, mas, muito imersa no seu espírito, demorou a surpreender-se. Quando olhou, o gatinho parara a olhar para ela e a miar. Deolinda ficou paralisada a olhar para aqueles olhos azulados e vítreos, como se lhe custasse a perceber o que via. Depois, pegando no gatinho, aconchegou-o contra o peito, por dentro do sobretudo, e desatou a soluçar convulsivamente. As lágrimas rebentaram incontroladamente, como se estivessem há muito represadas.
Pouco depois, o gatinho, confortado pelo calor do corpo de Deolinda, começou a ronronar. Deolinda olhou em volta. Cristo crucificado estava desfalecido no seu martírio, a Senhora das Dores e São Sebastião olhavam os céus. Deu com os olhos nos olhos do Menino Jesus, que estava ao colo de Santo António e sorria. Pareceu-lhe que afastou o olhar, quando ela o fixou, e que a olhava, se ela desviava o olhar.
Entretanto, alguém tocou no braço de Deolinda:
Então, vizinha, deixe lá as tristezas, que hoje já é dia de Natal. Venha comigo, que eu também vou para os seus lados.
Lá foi Deolinda, sem ouvir a conversa da vizinha, com o gatinho junto ao peito, tão apaziguada como nos dias felizes, tão realizada como quando regressara a casa com o seu filho acabado de nascer, ao colo.

Joaquim Bispo

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(Este conto obteve um 7º lugar no Concurso de Contos e Crónicas da Universidade Metodista de Piracicaba, em 2011, e foi publicado, em versão mais pequena, no número 24 da revista literária virtual Samizdat, de janeiro de 2010, com o título “O Natal de Josefa”.)

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10/11/2015

Esta Cidade não é para Frutos Secos



Paulina, a Castanha, não queria acabar comida por um esquilo. Nem a sua ambição era ficar ali pela terra e um dia gerar um grande castanheiro.
Maior e mais majestoso que o papá ― chilreavam de entusiasmo as irmãs.
Antes de tomar qualquer decisão, queria saber o que havia para lá da curva do caminho.
Um dia, de manhãzinha, disse adeus às duas irmãs, que se mantinham no aconchego do ouriço familiar, e partiu em direção a sul. A meio da manhã, encontrou outra castanha como ela, mas mais anafada.
Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou Paulina.
Sou uma Castanha da Índia e vou para a cidade. Uma prima arranjou-me trabalho ― respondeu a outra, radiosa nas suas bochechas luzidias.
Então vamos as duas!
Mais à frente, encontraram uma espécie de castanha pequenina e redondinha.
Olá! Quem és tu e para onde vais? ― perguntou a Castanha.
Sou a Avelã e vou para a cidade. Quero arranjar trabalho e ganhar dinheiro.
Então, vamos as três!
Por volta do meio-dia, num cruzamento, encontraram outras duas.
Olá! Quem são vocês e para onde é que vão? ― disse a Castanha da Índia, que já tinha aprendido a senha. A mais encorpada respondeu:
Eu sou a Noz e esta minha amiga é a Amêndoa e vamos para a cidade estudar. Estamos fartas de ser cascas-grossas.
Então, vamos todas de companhia! ― Era a vez de a Avelã concluir.
E lá foram divertidas e tagarelando a tarde inteira. Ao anoitecer, encontraram uma bolota pilada, toda encarquilhada, que lhes ofereceu guarida junto a uma azinheira. Aceitaram agradecidas, que a noite está cheia de roedores; mas apenas começou a haver luz, partiram e chegaram à cidade ainda de manhã.
Deram uma volta a apreciar os prédios enormes e o formigueiro dos carros. Depois, encontraram um jornal de anúncios grátis.
Olha este ― disse a Amêndoa. ― «Precisa-se amêndoa para fábrica de doces conventuais». Vou responder! Se for um part-time, posso ganhar uns dinheirinhos e ter tempo para estudar.
Boa, este é para mim! ― entusiasmou-se a Avelã ― «Chocolataria procura avelã grada. Paga bem». Se ganhar muito dinheiro, compro um pulverizador à minha mãe.
Hum, não sei o que este é ― disse a Castanha carregando o sobrolho ― «Castanhas nacionais e estrangeiras. Quentes e boas!». É capaz de ser uma empresa de trabalho temporário. Mas não há mais nada! Acho que vou tentar.
Combinaram que cada uma iria responder ao seu anúncio e que voltariam a juntar-se de tarde. Paulina resolveu esperar pela Castanha da Índia, na esperança de que esta lhe arranjasse vaga.
À hora aprazada chegou a Noz muito zangada. Tinha ido responder a um anúncio para Segurança num armazém e tinham-lhe dito que era um estágio não remunerado.
Lá na terra, muito ou pouco, sempre pagam a quem trabalha. Nunca me fizeram uma proposta tão desavergonhada!
Eu cá estou contente com o trabalho ― chegava a Castanha da Índia. ― Fiquei a trabalhar em casa de uma velhota simpática e o que tenho de fazer é só ficar numa gaveta de roupa a afugentar as traças. ― O sorriso de orgulho que lhe assomara à casca fechou-se logo a seguir. ― Mas não é trabalho para vocês, meninas! Não têm este cheiro que afasta os insetos. Agora, tenho de ir. Adeus. Vemo-nos por aí.
Da Amêndoa e da Avelã, nem sinal. A Noz e a Castanha esperaram ainda um par de horas, e, como as outras não vinham, foram responder ao anúncio para a Paulina.
Era numa rua estreita e o local de trabalho, envolto em fumo, não passava despercebido. Aproximaram-se, sem dizer nada, e ficaram à espreita, para descobrir qual era o ramo de negócio do patrão. Este, de bigodinho e cabelo oleoso, pegava nas castanhas, rasgava-lhes a casca de um golpe e atirava-as para um pote esburacado que tinha sobre brasas.



Só então, horrorizadas, se aperceberam do cheiro a castanhas assadas que enchia o ar; e as viram amontoadas num grande tabuleiro. Estavam irreconhecíveis. A casca golpeada encanecera como noiva adiada e abrira-se pela ação do calor, deixando ver o delicado véu interior, que separando-se do miolo, expunha o corpo dourado das castanhas. «Que degradante! Porque faz esta atrocidade, porquê?» ― perguntavam-se. Observaram então como os homens se aproximavam de olhos lúbricos, pagavam o preço combinado e, apossando-se dos objetos do seu apetite, esmigalhavam com mãos papudas o resto de casca e de película que parcamente ainda vestia as castanhas. E depois de completamente descascadas ― oh, horror! ― de uma só dentada comiam-nas. Inteiras.
Escapou-se-lhes um «Oh!» involuntário. O homem das castanhas viu-as e baixou-se para as apanhar. Estava quase a agarrar Paulina quando a Noz, ginasticada e enraivecida pela repulsa, saltou. Apontou uma cabeçada aos dentes do homem. O lábio superior deste interpôs-se e ficou esmagado entre os próprios dentes e a cabeça dura da Noz. O homem gritou agarrado ao lábio a sangrar. Várias cabeças de homens se voltaram. A Castanha e a Noz sentiram aquelas dezenas de olhos sobre si. Um medo imenso apoderou-se delas.
Fugiram dali, tão depressa quanto conseguiram, sem olhar para trás. Ao virarem uma esquina, quase foram esmagadas por um carro. Atiraram-se para o lado às cegas e caíram numa sarjeta. No escuro, húmido e fétido, olharam em volta, tentando enxergar o que quer que fosse. Só três pares de olhos brilhantes guinchavam.

Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008, com o título “Paulette na cidade”.)

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10/10/2015

Crescer

Quando o telemóvel emitiu o trinado de nova mensagem, Susana saltou para o agarrar e sentiu o coração acelerar-se. Se este não a enganava, o toque festivo prenunciava que iria ser a rapariga mais feliz da turma.
Nessa manhã, regressara à escola para iniciar o 8º ano. Longe de o sentir como uma maçada, a perspetiva de rever as amigas fizera-a pular da cama cheia de entusiasmo. Não foi preciso a mãe insistir para se levantar. Tomou duche de um jato e vestiu-se a correr. Irritou-se por não encontrar um soutien completamente confortável. Estavam todos a ficar pequenos. Escolheu um vestido rosa por sobre umas calças de ganga e os ténis azuis. Deu um pouco mais de tempo ao cabelo, sempre solto sobre os ombros. A mãe torceu o nariz à escolha da roupa, enquanto ela engolia uma tigela de flocos. Pôs três cadernos e uma caixa de esferográficas na mochila e desceu as escadas rapidamente. Gostou de sentir no rosto, outra vez, o ar fresco da manhã. Vieram-lhe à memória as recordações de sons e cheiros de outras manhãs de outros anos escolares. Era bom voltar à escola.
Às oito e dez, estava a cruzar o portão da escola. A Mariana já lá estava. Quando chegou a Catarina, abraçaram-se as três, pulando e gritando de alegria. Era tão bom revê-las, depois de quase três meses sem se encontrarem. Só os diferentes planos dos pais as separavam. As férias familiares levavam-nas sempre para sítios díspares. Susana começara por ir à terra do pai, lá para as Beiras e depois estivera em Armação de Pera quase um mês. Aí, encontrou os amigos de outros anos e teve umas férias divertidas, mas estas duas eram especiais. Já as tinha por amigas desde o primeiro ano. Se uma se atrasava, as outras duas esperavam para entrarem as três na sala de aula ao mesmo tempo. Iam juntas ao centro comercial, ao cinema... E a um ou outro concerto, mas com o apoio logístico dos pais.
Depois das primeiras trocas de novidades de viva voz, que por telemóvel já tinham feito o resumo, passaram ao encontro com outros colegas. Cada nova entrada era uma festa. Beijos, abraços e gritos. O que mais surpreendeu Susana, neste regresso à escola, foi o ar tão ― como dizer? ― infantil dos colegas rapazes. Parecia que, em vez de crescerem, ficavam mais pequenos. E continuavam com as conversas parvas do costume. Felizmente que havia novos ingressantes. Um deles era alto, cabelo preto e uma postura de grande autoconfiança. Riram-se as três, nervosamente, quando ele olhou de longe para elas. Algumas perguntas percorriam o íntimo de cada uma.
De que escola terá vindo? ― perguntou Mariana, sem esperar resposta.
«Que idade terá?», pensou Susana.
Mais nervosas ficaram quando confirmaram que o rapagão ficaria na mesma turma que elas.
Nas apresentações da aula de Português B, ficaram a saber que se chamava Filipe e que tinha quinze anos. No intervalo seguinte, ficaram a espiá-lo pelo canto do olho e quando ele se aproximou puderam ver-lhe o dourado dos olhos cor de mel. Trocaram piadas e números de telemóvel. Filipe era muito divertido, com um sentido de humor estimulante. E já tinha mudado a voz, o que era um progresso no timbre das conversas do grupo. Parecia que tinham passado de nível neste jogo real.
Quando, ao jantar, o telemóvel retiniu em tom festivo, Susana agarrou-o com nervosismo e tão atabalhoadamente que se lhe escapou da mão e caiu, separando-se a tampa e a bateria. Voltou a montá-lo e leu a nova mensagem:

kurti bue falar kntg kerx ir oh sinema sabado?

Reparando na agitação da filha, a mãe perguntou-lhe:
O que é que se passa, Susana?
Nada, mãe, foi a Catarina que nos arranjou bilhetes para ir ver A Saga de Thundor, no sábado. Posso ir?
Susana ficou sem saber se o calor que lhe queimava a face era por ter mentido à mãe, se por perceber que este ano escolar iria ser muito diferente dos anteriores.
Com o pretexto de organizar os cadernos, foi para o quarto logo a seguir ao jantar e deitou-se em cima da cama a imaginar como seria o sábado: o que levaria vestido, se ele lhe pegaria na mão, se trocariam algum beijinho. Ele seria atrevido ou tímido?
Hesitava na resposta a dar-lhe: dizer que sim, sem mais, ou dizer que ainda não sabia se podia ir, para ter tempo de o avaliar melhor? Até podia dizer que no dia seguinte falariam sobre a ida ao cinema.
O telemóvel retiniu de novo e Susana, de novo, saltou a apanhá-lo. Tinha a certeza de que era o Filipe, já impaciente. Mas não. Era a Mariana. Feliz da vida, porque o Filipe lhe tinha enviado uma mensagem a convidá-la para ir ao cinema.
Que bom, Mariana! E o que lhe vais dizer? ― fingiu interessar-se Susana, tentando aparentar o tom mais natural do mundo.
O que já disse. Que sim, claro! Achas que eu ia dizer que não? Vamos ao centro comercial ver A Saga de Thundor ou outra cena assim.
Susana desculpou-se dizendo que tinha de ajudar a mãe e acabou rapidamente a conversa radiosa da amiga. Virou-se de barriga para baixo e deixou as lágrimas escorrer para a colcha. Sentia-se a rapariga mais infeliz do mundo. Logo agora, que pensava que iria viver um romance bonito. E magoava-a que tivesse sido a própria amiga a traí-la, mesmo sem o saber.
Revoltada, pegou no telemóvel, alterou a identidade para “anónimo”, e escreveu:

Veja por onde anda a sua filha. Sabe aonde ela vai sabado?

Selecionou o número de telemóvel da mãe da Mariana, mas hesitou antes de enviar. Não podia fazer esta maldade à amiga. Ela não tinha culpa nenhuma e, mesmo que tivesse, era uma amiga de muitos anos. Apagou a mensagem, pensativa.
Passado um bocado e aceite o fracasso, começou a sentir que, vistas bem as coisas, até tinha sido útil não ter respondido logo ao Filipe e ter, assim, percebido que tipo de rapaz ele era. Uma ideia mazinha começou a germinar na sua cabeça. Para alguma coisa haviam de servir as telenovelas. Pegou no telemóvel e escreveu:

Eu ate gostava Filipe mas tenho de ficar em casa porque os meus pais vao para fora e eu tenho que tomar conta dos caes. Não queres vir tu ca a casa? Vamos para o meu quarto e vemos a saga de thundor que eu saquei da net. Sim? Mas não digas nada as colegas.

Com um convite destes, não duvidava que Filipe arranjaria uma desculpa para cancelar a sessão de cinema com a Mariana. E quando ele ali chegasse no sábado, a imaginar uma tarde de “marmelada”, havia de as encontrar às três, a rir da cara dele, pelo logro em que caíra, e tudo acabaria em galhofa. Ou não...
Mais uma vez, hesitou antes de enviar a mensagem. Voltou a cabeça e encarou-se no espelho do roupeiro. Viu uma miúda, apenas, a querer brincar aos crescidos. E não estava a gostar de se ver nestes papéis mesquinhos de adultos encornados. Uma coisa eram as histórias das telenovelas, outra, as situações com pessoas reais. Apagou a mensagem e escreveu:

Sabado nao posso desculpa

Enviou a mensagem para o Filipe, desligou o som do telemóvel e deitou-se, que no dia seguinte era mais um dia de escola e queria chegar cedo para estar com os amigos. Todos.

Joaquim Bispo

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(Este conto obteve uma menção honrosa nos IX Jogos Florais de Avis, de 2011, e foi publicado no número 10 da revista literária virtual Samizdat, de novembro de 2008, com o título “Toque de saída”.)

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10/09/2015

Um som no escuro


Naquele setembro de 75, dois jovens portugueses, amigos e colegas de profissão, aproveitavam as férias e um Dyane comprado pouco antes para espraiarem por paragens além-fronteiras o otimismo que a revolução, em curso na sua pátria, lhes transmitia. Levavam uma tenda canadiana e acampavam onde calhava. Viajavam ao sabor dos acontecimentos, confiados nas benevolências do acaso.

À noite, em Vitória, – já país basco –, a notícia do dia era a morte de mais um «carabinero». Pressentindo o fim iminente de Franco, os separatistas da ETA intensificavam o número de atentados.

Os viajantes petiscaram num bar e voltaram à estrada, procurando um local para acampar, como fariam em Portugal. Uns quilómetros à frente, em marcha lenta, vislumbraram no escuro ao lado da estrada o que lhes pareceu um terreno plano, e entraram. Ainda de faróis acesos e motor a trabalhar, foram rapidamente cercados por vários guardas que iam a passar em dois jipes. Tentaram explicar-se em espanhol, mas, porque falassem suficientemente bem, ou porque a matrícula começava pelas mesmas letras que as de Burgos, ou pela ideia apetecível aos militares de que tinham apanhado dois terroristas, não estava a ser fácil convencê-los da origem lisboeta dos intrusos. As cabeleiras “revolucionárias” também não ajudavam.

Entretanto, chegaram mais guardas, comandados por um graduado. Estes, nem dúvidas tiveram. Ao verem aquele aparato, saltaram dos jipes em atitude de grande sanha bélica e, sem darem tempo a qualquer explicação, gritaram para que os suspeitos saíssem do carro. Tensos. Os jovens saíram, ofuscados pela luz forte dos faróis, para logo ouvirem ordens de «manos al aire!», quase abafadas pelo matraquear metálico de muitas culatras puxadas atrás.

Quem vos conta isto levantou as mãos lentamente, virou-se e apoiou-as no carro, rodando o rosto para o lado contrário ao dos guardas, para que nem o olhar pudesse fornecer qualquer pretexto ao nervosismo revanchista dos carabineiros. Durante uma eternidade de segundos, esperou ser trespassado, senão por um sem-número de balas à queima-roupa, com certeza por aquela que só obedece ao diabo e que é disparada até pelas espingardas descarregadas.

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Felizmente, a história não acabou ali. Enfim convencidos, os militares sugeriram um caminho mais à frente, que os jovens percorreram por algumas centenas de metros até encontrar o que lhes pareceu um espaço aceitável para acampar. Mas não para soltar o sono, que aquele terrível som metálico no escuro matraqueou toda a noite nas suas cabeças.
O alvorecer revelou-lhes a envolvência que as trevas de véspera não permitiram: tinham montado a tenda no terreno fronteiro a uma mansão rural, a menos de cem metros da porta…
Realmente, procurar acampamento de noite tinha as suas surpresas, mas o acaso, sempre brincalhão, voltava a ser benévolo, convidando-os à despreocupação habitual.

Joaquim Bispo

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(Este conto foi publicado no número 9 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2008)


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10/08/2015

Saudades da Minha Terra


Sou camionista de longo curso. Passo os dias pelas estradas da Europa, rodeado de carros e camiões, mas sozinho, a ver desfilar cidades para lá das estradas, e serras para lá das cidades, a trabalhar demasiadas horas por dia, a dormir mal e pouco, a levantar cedo. Este ano que passou foi particularmente cansativo. Parecia que o mês de julho nunca mais acabava. Ansiava por voltar para a Minha Terra, tão bela e tão mal amada. Ah, quando chegasse, ia pôr o sono em dia e, depois, ia passar o mês inteiro de férias a visitá-la, a conhecê-la, a amá-la.

Assim que cheguei, fechei-me em casa, cerrei as persianas e ferrei-me a dormir, como se já não dormisse há semanas, o que não era completamente mentira. Queria recuperar o vigor, nem que para tanto gastasse dois ou três dias de férias. Durante horas incontáveis, dormi profundamente, pressentindo o meu corpo a relaxar, a distender-se, a ganhar as formas que a Natureza lhe quis dar. A certa altura, senti-me leve, solto, fluido. Acordei aéreo, atmosférico. Achei-me um pouco estranho mas, longe de me inquietar, aceitei-me e foi sob essa feição que parti finalmente a conhecer a Minha Terra.

Iniciei a viagem muito lentamente, como leve aragem, percorrendo a sua superfície. Subi o Alentejo langorosamente, acariciando a planície, a contrapelo. A Minha Terra parecia agradada. Mostrava-me, de vez em quando, o branco dos seus casarios. Avancei silencioso e morno. Balancei-me, delicadamente, no sobe e desce das pequenas elevações e das suaves baixas. Insinuei-me nos vales dos maciços centrais, explorando cada dobra, evaporando a geada de uma várzea aqui, ondulando o pasto de uma encosta acolá. Subi as serras atapetadas pelo mato, monte a monte, envolvi os cumes em névoa. Sussurrei segredos às fragas. Do alto dos talefes, alarguei a atenção, a escolher outras explorações. Entusiasmado, desci os declives, mais apressado que na subida, fiz ondular a cabeleira das florestas, deambulei por entre os troncos majestosos. Soprei sobre as gargantas, os riachos e os açudes. Desci às grutas. Brinquei com a água das fontes e das lagoas, deixei-me arrastar pelos caudais dos rios. Humedeci, liquefiz-me.

Agora eu era mar. As minhas ondas batiam nas arribas, lambiam as rochas de baixo para cima e estas ficavam a escorrer, lascivas. As vagas do meu corpo recuavam e logo voltavam, altas e empenhadas. No Algarve, brincavam por entre as rochas esburacadas, a fazer cócegas à Minha Terra. E ela a provocar, a abrir enseadas, a elevar promontórios, a estender cabos, atiçando o meu corpo líquido. As suas areias a arder, a chamar pelo meu afago refrescante. E eu fluía e refluía sobre as areias da Minha Terra, uma e outra vez, afagando-as numa dolência de amantes. No Minho a arrepiá-las com as minhas carícias geladas. E a entrar atrevido no estuário de Viana. A surpreender a Minha Terra com uma incursão inesperada na foz do Douro. E depois, grosso e seguro, a encher a Ria de Aveiro. E a retirar-me maroto e sabido. E a deixar um gosto salgado e sensual. Ao mesmo tempo, o meu corpo longo e ondeado roçava-se nos extensos areais do Sul, toque aqui, toque ali. A costa alentejana, cheia de refegos, a resistir mal. E eu a rebolar-me nos areais da Comporta e de Troia, guloso e lúbrico. A experimentar, obsceno, o estuário do Sado, crescendo demorado em vagares maliciosos: maré-cheia, maré-vazia. Iludindo. Insinuando Setúbal e apontando a Lisboa. Fluindo e refluindo. Engrossando. Em maré viva, franqueio a barra do Tejo, transponho a Ponte 25 de Abril e espraio-me em plenitude pelo Mar da Palha. E refluo, e volto com mais vivacidade. Uma e outra vez. Venço a resistência da Ponte Vasco da Gama, encho esteiros e valados e alcanço Vila Franca. E, fecundador, inundo a lezíria. Avassalador, imenso, cósmico.

Durante muito tempo, o meu espírito anda disperso pelo éter. Flutuo num limbo, sem energia nem densidade. Onde estou, por onde andei? Lentamente, tomo consciência de mim. Estou alagado em suores, humores, fluidos. Parece-me que a viagem demorou um mês inteiro, mas não durou mais que umas horas. Foram o suficiente para que o meu corpo e o meu espírito se unissem profundamente à Minha Terra. Dissolveram-se e voltaram a condensar-se. Inteiros. Refeitos. Apaziguados.

Nunca pensei que as minhas saudades dela fossem tão grandes!

Joaquim Bispo
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(Este conto foi publicado no número 8 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2008)

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Imagem de Jackie Adshead, na net
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