Timandro:
Íon! Clistes! Bons olhos vos vejam! Donde vindes, assim, laureados?
Íon:
Viva! Estivemos nas festas do Epidauro, onde pusemos à prova os
nossos dons.
Clistes:
Viva!
Timandro:
Ah, sim; ouvi dizer que o concurso de rapsodos é muito apreciado e
concorrido. Também há concurso de aedos?
Clistes:
Sim; e dos mais importantes. Eu concorro sempre.
Timandro:
E, pelo que vejo, saístes-vos bem!
Íon:
Eu venci o concurso de rapsodos.
Clistes:
E eu só perdi para o aedo de Egina. Em onze concorrentes.
Timandro:
Fico muito feliz, por vós. Dizei-me: o que
vos fez enveredar por essas tão belas ocupações? Qualquer um
consegue ser rapsodo ou aedo?
Íon:
Não, de modo algum. É o dom com que se nasce. A excelência que
ponho nas minhas atuações e que faz chorar os que me ouvem é um
dom com que nasci.
Timandro:
Ah, sim? Dize-me: já em criança sabias recitar Homero?
Íon:
Sim, mas só pequenos trechos. Aos poucos é que fui dominando a
extensa obra do génio.
Timandro:
Então o dom com que nasceste era pequenino?
Íon:
Sim, posso dizer que sim. Felizmente que o meu tio Perilo era um
apaixonado por Homero e não descansou enquanto não me incutiu o
gosto. Recitava-me frequentemente as mais emocionantes passagens da
Odisseia.
Timandro:
Queres dizer que, se não tivesses um tio que te estimulou o gosto
pelas epopeias homéricas, talvez esse pequeno dom com que nasceste
tivesse murchado?
Íon:
Nem mais. Estou muito agradecido ao meu tio.
Timandro:
De bem pouca valia é um dom que não se usa. Imagina que nasceste
com o dom do auriga e que o deixaste estiolar. Como saberias que
tinhas nascido com ele?
Íon:
Provavelmente, nunca o saberia.
Timandro:
Então, é possível que nasçamos com muitos dons que não
desenvolvemos e, portanto, nem deles tomamos consciência.
Íon:
Assim deve ser, como dizes.
Timandro:
E tu, Clistes, nasceste com o dom de fazer e cantar poesia ao som da
lira?
Clistes:
Depois do que disseste, creio que não; só comecei a gostar do fino
vibrar das cordas da lira quando me apaixonei por Magide, filha de
Macário. Nessa altura é que a musa se apoderou de mim.
Timandro:
Então, segundo Íon, não devias ter dom, porque não nasceste com
ele.
Clistes:
Tenho, tenho. Componho com facilidade e toco e canto com gosto.
Timandro:
Desculpai, se insisto: esse dom que, de uma maneira ou de outra,
tendes é que vos levou à vitória, mas também trabalhais para
conseguir tais êxitos, presumo, ou o dom é suficiente?
Íon:
Não, eu estudo incessantemente Homero. É preciso conhecer o seu
pensamento em profundidade e não só decorar-lhe as palavras. E
recito partes da Ilíada todos os dias.
Timandro:
Queres dizer que nasceste com um dom que foi sendo aperfeiçoado com
trabalho!
Íon:
Sim, pode-se dizer isso.
Timandro:
Então, o que mais contribuiu para te levar à vitória: o trabalho
que puseste no estudo ou o dom?
Íon:
Ambos. O dom com que nasci — ou que aprendi com o meu tio —
forneceu-me o interesse pela representação das epopeias; o trabalho
dá-me a competência no conhecimento de Homero. Mas nada disto seria
suficiente para empolgar a assistência se não fosse o que Clistes
já referiu. Aliás, ainda ontem tive esta mesma conversa com
Sócrates que me provou que eu estou fora de mim quando faço
emocionar a audiência.
Timandro:
Sócrates é sábio.
Íon:
Sócrates estranhou que, falando Homero, Hesíodo e outros poetas dos
mesmos assuntos — guerra, relações entre os homens, e destes com
os deuses, e dos deuses entre si, e da genealogia dos heróis e dos
deuses — eu só saiba falar e interpretar bem as palavras de Homero
e não saiba nem goste de falar dos outros poetas.
Timandro:
Por que achas que isso acontece?
Íon:
Eu pensava que era porque Homero fala das mesmas coisas, mas muito
melhor que os outros poetas, mas Sócrates convenceu-me de outra
coisa.
Timandro:
E o que disse ele?
Íon:
Que se eu sei reconhecer que Homero fala melhor que os outros, mas
das mesmas coisas, eu também deveria saber falar bem dos outros
poetas.
Timandro:
Aparentemente...
Íon:
Acontece que não sei falar dos outros e aborrece-me mesmo ouvir
falar deles. Ora, Sócrates diz que isso significa que o que eu digo
de Homero não advém de conhecimento, mas de outra causa.
Timandro:
Sócrates é sábio. Não ignora, certamente, que é possível falar
das mesmas coisas mas de modos totalmente distintos, assim como é
possível representar Zeus como Fídias o fez, ou como o fazem outros
escultores menores.
Íon:
E, na verdade, Homero é inexcedível.
Timandro:
Não considerou Sócrates que sempre viveste “rodeado de Homero”
e que estudas Homero afincadamente e não os outros poetas, e que,
por isso, é lógico que o conheças melhor e o prefiras?
Íon:
Não. A interpretação dele é a de que estou possuído por uma
força divina, quando o recito.
Timandro:
Curioso! O caso é tal que seja necessário recorrer a explicações
tão potentes?
Íon:
Sócrates diz que a mesma musa que inspirou Homero, quando ele compôs
a sua obra, transmite a sua influência para mim e de mim para a
audiência.
Timandro:
A musa! Sócrates é sábio, mas, como ele próprio está sempre a
dizer que nada sabe, é natural que muitas vezes se tenha reconhecido
em erro e se previna de equívocos futuros. De cada vez que oiço
invocar as musas como explicação de alguma coisa humana, lembro-me
sempre do mau teatro.
Íon:
Como assim?
Timandro:
As ações de uma peça devem estar encadeadas numa relação de
causa e efeito, de modo que cada uma seja a resultante lógica e
necessária dos acontecimentos anteriores. Uma peça assim encadeada
tem verosimilhança —
os espectadores reveem-se nela, como na vida. Uma má peça, pelo
contrário, quando não consegue criar desenlaces consequentes com o
nó que a trama enredou, recorre ao deus
ex machina, dando um fim
abrupto à história, não congruente com o fio da narrativa, o que
desagrada sobremaneira aos que
a veem.
Íon:
A mim agrada-me que, pelo menos em certos momentos, eu seja
instrumento do divino.
Timandro:
Isso evita-te, certamente, seres desafiado por aqueles que são da
mesma opinião que Sócrates. Os que te consideram instrumento do
divino poderão travar a inveja com a desculpa de que não se
consegue competir com o divino. Por um momento, vislumbrei a
possibilidade de Sócrates te invejar.
Íon:
Não creio. Mas os teus remoques a Sócrates é que me parece
indiciarem alguma dor de cotovelo…
Timandro:
Sem dúvida! Quem me dera que o meu filosofar tivesse a acutilância
e a profundidade do jeito de filosofar do feioso. Mas, voltando ao
nosso tema: e tu, Clistes, também sentes a possessão da musa?
Clistes:
Compor poesia é deveras misterioso. Não sei onde vou buscar as
palavras e as personagens que me surgem. Acredito que é a musa que
mas insufla, como num sopro.
Timandro:
Dize-me!: surgem-te palavras e personagens desconhecidas?
Clistes:
Não; todas as palavras são por mim conhecidas, mas aparecem-me
organizadas de uma maneira tão sensata e harmoniosa que me
surpreendo que tenha sido eu a gerá-las, naquele encadeamento. Já
as personagens são mais difíceis de caraterizar. Todas elas me são
desconhecidas naquela forma.
Timandro:
Naquela forma? Já as conheces sob outra máscara?
Clistes:
Cada personagem parece-me uma mistura de outras, que conheço das
epopeias; de heróis, de deuses, de homens.
Timandro:
Então dirias que elas já existiam em ti, como as palavras que
referiste? Isso significaria que não houve qualquer “sopro”
exterior e que tudo é criado no teu espírito.
Clistes:
Sim, mas, nas formas e atributos com que me surgem, são-me
totalmente inesperadas.
Íon:
Também me surpreendo com as palavras que saem da minha boca, quando
estou no estrado. Sócrates disse que os belos louvores que teço a
Homero não são devidos a uma techné
que pudesse ser atribuída ao meu mérito, mas ao privilégio
exterior concedido pela musa; que eu falo sem nada compreender.
Senti-me humilhado.
Timandro:
Sócrates é o mais sábio filósofo da Grécia, o que não quer
dizer que não possa vir a mudar de opinião em relação a algumas
das convicções que agora mantém. Há quem diga que a imaginação
é “uma amálgama de perceção e julgamento” e que implica
sempre a presença da perceção.
Não aceitas que a
inspiração seja um estado de exaltação emotiva que atinge a alma
do poeta que, qual tecedeira a escolher os fios coloridos de lã para
compor tapetes sempre diferentes, usa um caráter deste, uma
fisionomia daquele, um atributo de outro, para compor uma personagem
inesperada?
Clistes:
Assim poderá acontecer.
Timandro:
Esclarece-me uma dúvida que me assaltou agora. Se estivermos atentos
e formos honestos connosco, reparamos que a genealogia dos deuses
varia conforme as regiões, como Afrodite, que para uns nasceu de
Zeus e Díone, e para outros é filha exclusiva de Urano. A questão
é a seguinte: nesses teus momentos de criação, já criaste algum
deus ou, ao menos, modificaste os atributos de deuses ou heróis?
Clistes:
Envergonho-me de o dizer, mas já. Quando não me lembro bem da
história de algum, componho-a com o que me parece melhor. Uma
peripécia em que Dioniso é raptado por centauros foi criada por
mim. E já criei um deus — Metaro — que é filho de Hefesto e que
quando quer vigiar os homens incorpora nas estátuas de bronze.
Timandro:
Era o que eu pensava. Não me custa admitir que Hesíodo é que criou
a maior parte dos nossos deuses. Há um filósofo em Abdera —
Demócrito — que diz que não há deuses nenhuns. No fundo, a nossa
vida não se alteraria muito sem a sua existência. Não há dúvida,
no entanto, que tornam a nossa vida menos monótona e sempre nos
sentimos mais acompanhados, porque a solidão é funesta.
Íon:
Na verdade; mas cá estamos nós, rapsodos, aedos, poetas,
dramaturgos e atores para tornar a vida mais empolgante.
Timandro:
Por outro lado, há um abismo entre a situação do artista que
considera a sua obra manifestação de uma entidade exterior — e,
portanto, nenhuma responsabilidade e mérito tem nela —, e a
situação de outro artista que, atuando sem o pressuposto de
influências metafísicas, considera a obra sua, com tudo o que isso
implica: batalhar por ela, pôr nela todo o seu saber e sentir, não se
entregar à preguiça, sabendo que só o seu trabalho a fará
emergir. Agora, dize-me, Íon: preferes ser o títere manipulado por
uma improvável divindade, ou o autor da admirável arte que move a
alma das multidões?
Íon:
Se pões as coisas nesse pé…
Joaquim
Bispo
*
Fonte
(emulada na forma, mas contestada nas teses): PLATÃO, Victor
Jabouille (tradução), Íon, Lisboa, Editorial Inquérito,
Lda., 1988.
*
Imagem:
Conversa entre filósofos, mosaico de Pompeia, século I d.
C., Museu de Arqueologia, Nápoles.
*
* *