10/08/2018

A primeira refeição do dia


A primeira refeição do dia é a mais importante.
(Dos sites nutricionistas)

Acabei de chegar de umas férias em Budapeste. Cidade bonita — belos panoramas, excelentes museus —, mas do que não me esqueço é dos pequenos-almoços. Só de antever a primeira refeição do dia passava a noite em sonhos salivados. No hotel em que estive, serviam fiambres, presuntos, chouriços, queijos variados, tudo em cascatas de fatias finíssimas. E doces, frutas, bacon, ovos mexidos, pratos quentes.
Acho que havia hóspedes que só tinham ido a Budapeste pelos pequenos-almoços. Enchiam a chávena de café com leite, e o prato com queijo e carnes frias, iam para a mesa esvaziá-los, voltavam a recarregá-los, uma e outra vez. Abarrotavam tigelas com flocos de milho, de amêndoa, com fibras, com mel, chocolate e fruta. Juntavam leite, iogurte, café, sumos de frutas. Equilibravam pirâmides de fatias de Emmental, chaminés de Chèvre, com a ajuda de morros de Roquefort, acompanhados por arquipélagos de ovos quentes, salsichas fritas e barris de sumo de laranja para empurrar.
Filas de empregados afadigavam-se a repor as provisões nas mesas do bufete. Dezenas de pares de olhos espiavam a sua chegada à porta da copa. Hordas de pretensos esfomeados escudados em pratos vazios preparavam-lhes emboscadas no primeiro ângulo de mesa. Homens da Michelin em banha lançavam-se sobre os acepipes, como gaivotas sobre sobras de peixe, engolindo fatias de salmão fumado enquanto bicavam os adversários mais próximos. Por vezes disputavam a mesma tira de bacon frito ou, em gesto rápido, surripiavam a tosta mista que o vizinho se atrasara a retirar da bateria de tosteiras. Rebatiam com saladas de tomate, de couve roxa, de beterraba. Ou com travessas de ananás, pêssego, melão e maçã.
Ai do que não fosse ligeiro e audaz. Quando chegasse à mesa das carnes frias, já só encontrava um ou outro grão de pimenta; quando chegasse à mesa dos queijos já só sentia o cheiro. O seu empenho incidia então no desenvolvimento de táticas mais eficazes de captura de víveres no fornecimento seguinte.
Por fim, mitigavam a fraqueza com uns doces: potes de compotas, salvas de bolo-mármore, taças de tiramisu, tigelas de mousse de chocolate, travessas de leite-creme.
Quando pareciam saciados, começava a fase de aprovisionamento, porque o dia de visitas turísticas na capital e arredores se adivinhava longo e desgastante. Fileiras de sanduíches recheadas de salpicão, queijo flamengo, pasta de atum, ovo mexido e picles — para desenjoar — alinhavam-se obedientes em camadas sobrepostas no fundo das malas de mão e das mochilas. Alguns convivas preparavam tantas que se esperava encontrá-los a vendê-las nos pontos turísticos mais frequentados, para pagar a viagem. As que sobrassem ainda deviam dar para acabar com a fome em algum país do corno de África.
Budapeste é bonita, mas o melhor são os pequenos-almoços. Inolvidáveis. Ainda esta noite voltei a sonhar que me deliciava com almôndegas à húngara que apanhava às mancheias. Acordei mesmo a tempo de evitar aquela parte desagradável dos garfos espetados nas costas da mão…

Joaquim Bispo
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Imagem: Josefa de Óbidos, Cesto com bolos e toalha, 1660.

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10/07/2018

A Estátua sem Rosto




O que se conseguia ler no folheto pisado e rasgado que parou aos meus pés era apenas «(…) mingo, 5 (…) inaugur (…) praça D. Moniz (…) stát (…) rei (…)», mas foi o suficiente para eu perceber do que se tratava, dada a proximidade de eleições e algum conhecimento do que acontece em tais épocas: as autarquias desdobram-se em melhoramentos, apressam obras que estiveram paradas durante anos e anunciam inaugurações.
Ribeira de Velas, onde vivo, não é exceção. A minha rua estava virada do avesso havia dois meses. Máquinas e brigadas de operários criavam espaços de estacionamento, repavimentavam os passeios e introduziam uma pista para bicicletas a todo o comprimento. Além desta obra, várias outras tinham sido anunciadas, uma das quais a implantação de uma estátua do rei D. Moniz — de que falava o folheto — na praça com o nome do monarca. Este rei, que viveu nos séculos XIII–XIV, está sepultado no mosteiro de S. Moniz, aqui em Ribeira de Velas, o que constitui um motivo de orgulho para a cidade.
Alertado pela informação truncada do folheto, dirigi-me ao local assim que ouvi o som de uma fanfarra. Para a cerimónia de inauguração, estava presente uma representação da Câmara Municipal, ao mais alto nível, além do escultor. Primeiro, falou a vereadora da cultura, que fez um pequeno discurso alusivo ao soberano e ao que ele representou para Ribeira de Velas. A seguir, falou a presidente, que agradeceu ao artista e o elogiou pela excelente peça ali instalada, após o que destapou uma escultura em bronze, de uns dois metros e meio de altura, instalada sobre um pedestal em pedra.
Imediatamente, alguém, que devia estar preparado de antemão, disse em voz bem alta: «Senhora presidente, o povo não está contente; el-rei D. Moniz não tem cara nem nariz», o que foi ouvido por todos, porque embora o grupo fosse numeroso, estava relativamente silencioso. Na verdade, a escultura apresentava uma figura antropomórfica estilizada, em posição sentada, coroada e coberta com um manto, mas sem formas faciais. Como cabeça, apenas uma coroa estilizada, como uma cabeça de rei do xadrez.
A situação tornou-se um pouco confrangedora, dada a presença do autor, mas este manteve-se impávido. A vereadora, sentindo-se, talvez, em xeque, ou achando boa a oportunidade para um esclarecimento pedagógico, tomou a palavra e teceu algumas considerações sobre o que é mais importante na figura de D. Moniz, e que esses atributos estavam presentes na escultura: a coroa real; o manto majestático; a cruz da ordem de Cristo, por ele fundada e herdeira dos Templários; o livro simbolizando o seu gosto pelas letras que também cultivava, através de mais de cento e trinta poemas; além de uma mata estilizada a seus pés, reconhecida a sua importância na instalação extensiva de pinhais no litoral, fundamentais no refreamento do avanço dunar e na posterior construção de navios.
A cerimónia terminou pouco depois, altura em que os repórteres dos jornais locais se aproximaram para obter declarações do artista. Aproximei-me, também, e ouvi este diálogo:
Mestre Bretão, por que é que não pôs cara ao rei?
Tem um pouco a ver com o que disse a senhora vereadora — explicou o escultor. — Eu podia dar um rosto à escultura, mas esta vive muito da estilização. Para lhe pôr uma cara, tinha de, também, fazer os outros elementos semelhantes aos verdadeiros, e, se vir a minha obra, não é esse o meu estilo. As minhas peças procuram captar a essência do que está representado, o seu simbolismo, o seu significado, e não a representação realista de objetos, pessoas ou temas que, muitas vezes, interessam sobretudo pelos conceitos que representam. Não sei se me fiz entender.
A opção por não representar o rosto não tem que ver com o facto de não existirem imagens do rei? — insistiu o repórter.
Não — continuou o artista —, há imagens que, sem serem da época, são bastante credíveis do aspeto provável do rei. Além disso, há o jacente, ali no mosteiro. O problema não está aí. As épocas e os homens têm maneiras diferentes de encarar os mesmos assuntos. Olhe, vou contar-lhe uma história. Em 1972, quando foi adjudicada a estátua de D. Sebastião para Lagos, eu era assistente dum escultor que fez parte do júri de seleção dos vários projetos apresentados, pelo que assisti às discussões que levaram à escolha do projeto de João Cutileiro. Em confronto estava um projeto que retratava D. Sebastião, tal qual aparece na obra do pintor Cristóvão de Morais, que está no Museu de Arte Antiga. O historiador da arte que fez a defesa do projeto advogou veementemente a representação realista dizendo qualquer coisa como: «Aquilo que admiramos nas esculturas da Grécia antiga é a sua capacidade de representar o natural, a que eles chamavam “mimesis”, isto é, a cópia do real. Esta beleza que sentimos na representação naturalista está sempre a reaparecer na história da arte, mesmo quando pensamos que está morta, extinta e que as suas cinzas se perderam nos tempos passados, como parecia que tinha acontecido no longo período medieval. Aí, não interessava o real, terreno, mas sim o divino, supraterreno. A imagem interessava só como símbolo do que lá não estava. Na Renascença, reapareceu a “mimesis”, qual Fénix inextinguível, a que eles chamavam “tirar polo natural”, e o mesmo acontece de cada vez que parece que o artificialismo simbólico se vai impor». A sua exposição, que pretendia demonstrar que a representação realista era mais recorrente, historicamente, e mais compreendida pelas pessoas — como parece que as vossas reticências ilustram — cavou fundo no grupo de decisão.
Mas, afinal, ganhou? — interveio o repórter.
Não ganhou porque o meu mestre fez uma exposição não menos brilhante, em que defendeu que o realismo genuíno não existe, que mesmo o celebrado David de Miguel Ângelo tem proporções alteradas para realçar certos simbolismos — uma mão direita enorme, e logo suficientemente possante para liquidar Golias — e que vivemos rodeados de significantes, desde a linguagem à política. Hoje, temos em Lagos um D. Sebastião que é muito expressivo, sem ser realista. Com a sua enorme cabeleira de pedra rosada e os seus olhos deslumbrados, parece mais um menino ingénuo e sonhador — que é o que na verdade foi — do que o combatente que a desmedida armadura e o enorme elmo a seus pés podiam sugerir. Guerreiro de brincar, ele parece fantasiar talvez em repetir os feitos heroicos de um David, derrubando filisteus, desta vez os mouros de Marrocos. Não podia ser mais ilustrativa da postura mental de D. Sebastião.
Então, quer dizer que tudo o que realmente interessa lembrar de D. Moniz e o caracteriza está representado nesta sua escultura, mesmo sem olhos nem nariz?
Exatamente! Estes são os caracteres com que se pronuncia D. Moniz.
Não sei se o repórter ficou convencido, mas isso também não se lhe exige. Fiquei, todavia, com curiosidade de ler o que iria escrever e se o que mestre Bretão tinha tentado explicar conseguiria chegar ao grosso da população que não tinha estado presente.
Na verdade, não encontrei o jornal local no café que frequento, mas surpreendi uma conversa do Sr. Albano, dono do café, com um vizinho que, por ter estado também na inauguração, tinha formado uma opinião sobre o assunto.
Mas você diz que aquilo está bem feito? — protestava agastado o Sr. Albano.
Um espetáculo! Veja bem, Sr. Albano, o rei D. Moniz está como está porque viveu na Idade Média, e nessa altura faziam-nos assim, sem nariz. Se vir bem, já os Romanos não punham nariz aos imperadores. Basta ver os de Conímbriga! E na mesma está o S. Sebastião de Lagos que foi retratado sem nariz antes de ir combater os Filisteus, os das flechas. Foram derrotados, mesmo tendo do lado deles a Félix, que acho que era uma águia terrível, mas que ficou conhecida por “pollo ao natural”, depois da batalha. Parece que o que valeu foi a manápula do Miguel Ângelo para esganar o Golias, que era um grande narigudo. Mas nem o nariz lhe valeu! Está a perceber, Sr. Albano?

Joaquim Bispo

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(Esta ficção baseada em esculturas reais foi publicada no número 38 da revista literária virtual Samizdat, de outubro de 2013.)

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Escultura: Luís LaRoche, Rei D. Dinis, 2009 (?).

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10/06/2018

Santos Populares



— Foi aqui que nasceu o António, em 1195, onde está agora esta igreja com o nome dele. — O homem de cabelo crespo e barba alargava o gesto enquanto caminhava. — Uma fidalga deu-o à luz a 15 de Agosto.
Então, por que é que lhe fazem a festa a 13 de Junho? Amanhã. — estranhava o companheiro, um homem de cabelo ralo e barba curta esbranquiçada.
É o dia da sua morte aos 36 anos em Pádua. Aproveitou-se para dar cunho religioso a umas festas das colheitas que havia na altura. Mas esta noite é que são as grandes festas populares.
Bonita igreja!
O povo de Lisboa fez-lhe aqui uma capela, alargada para igreja no século XV. O terramoto deitou-a abaixo, mas foi reconstruida através de peditórios. Montavam tronos com a imagem dele, aí pelas vielas, e pediam umas moedas, como ainda hoje.
Já era venerado!?
Sim, e com razão! O António era um grande conhecedor das escrituras e um orador notável. No fim da vida tinha multidões a ouvi-lo e a crerem que fazia milagres. A fama era tão consensual que é, ainda hoje, o santo mais rapidamente canonizado: menos de um ano depois da morte.
O duo, embrenhado na conversa, ia descendo placidamente a Rua das Cruzes da Sé, enquanto a tarde caía, sem se aperceber de alguns olhares irónicos às suas roupagens.
Ó, João, ele teve alguma formação? — perguntou o mais velho.
Estás mesmo esquecido! Sim, estudou aqui na Sé até aos quinze anos e esteve mais uns três em S. Vicente de Fora. Depois passou sete anos em Santa Cruz de Coimbra onde foi ordenado sacerdote. O ensino lá era bom!
Mas ele não era franciscano?
S. João encheu um pouco mais o peito semi-descoberto, sem suspirar.
Pedro, ele ficou muito exaltado com a fé e o exemplo de cinco franciscanos que foram evangelizar os gentios de Marrocos e que foram mortos pouco depois. Ele viu-os partir de Coimbra e viu chegar os seus corpos. Esse acontecimento representou uma viragem na sua vivência religiosa. Só então se mudou para os Franciscanos e mudou também de nome, porque de batismo era Fernando de Bulhões.
Ah, sim?! — O rosto de S. Pedro adquiria um vivo interesse nas palavras do companheiro.
Agora entravam na Rua de S. João da Praça, embrenhando-se em Alfama. Aqui e ali cheirava a manjerico e a sardinhas assadas.
Rumou também ele a Marrocos, mas adoeceu e acabou por ir parar a Itália.
Bela terra! Bem, quando lá cheguei não era flor que se cheirasse, mas agora ninguém me tira Roma!
Os ideais franciscanos estavam então a atrair vocações e foi o próprio Francisco de Assis que nomeou o António para ensinar Teologia em Bolonha. Também esteve no sul de França onde ganhou fama a converter heréticos.
Já havia muita gente nas ruas, mas ainda se andava bem. Chegaram a um pequeno largo onde estavam montadas duas esplanadas. S. João olhou a procurar mesa e perguntou a S. Pedro:
Sentamo-nos?
Sim, sim! Já descansava um bocadinho.
Instalaram-se, pediram caldo verde, sardinhas e vinho tinto.
Estou impressionado! — S. Pedro avaliava o fluxo de gentes na rua.
E ainda não viste nada! Nesta noite, há arraiais e bailaricos em todos os bairros e faz-se uma competição de danças ao som de marchas. Há muito em que comparecer. Foi por isto que ele pediu desculpa e se despediu de nós tão cedo. E há também uma cerimónia em que casam, ao mesmo tempo, dezenas de pares de noivos, porque o António ganhou fama de casamenteiro. As solteiras fazem-lhe promessas, se o António lhes arranjar noivo. Quando isso não acontece é que é o diabo! Algumas vingam-se e viram-no de cabeça para baixo ou roubam-lhe o Menino. — S. João não se continha e ria divertido a imaginar a cara de enfado de Santo António quando lhe acontecia tal percalço. — Os pedidos são tantos e, às vezes, tão difíceis de atender, que nem com milagres!
S. Pedro acompanhava-o no riso em notas mais graves.
Também ouvi dizer que fez carreira militar…
Essa é a mais engraçada! No século XVII, um regimento de Lagos tomou-o como protetor e incorporou-o. E alguns anos depois promoveu-o a Capitão. Aquando das Invasões Francesas, foi promovido a Tenente-Coronel. Gratidão castrense!
Uma aparelhagem começou a tocar uma música popular.
Tratam-no bem na arte? — S. Pedro ia tentando comer as sardinhas sem meter parte das largas mangas no prato.
Sim. Geralmente tem o Menino ao colo e um livro. Também costuma segurar um lírio. Às vezes, tem o Menino sobre o livro, ou sentado ou em pé. Outras vezes representam-no a pregar aos peixes.
A música fizera aumentar a vozearia e era difícil ouvirem-se.
Aos peixes? Isso não foi aquele padre jesuíta, António Vieira, não é?
Sim, mas foi inspirado na pregação do António aos peixes, perto de Rimini. Aliás, já o Francisco de Assis falava aos “irmãos pássaros”!
Acabada a refeição, incorporaram-se na enchente de povo que percorria Alfama a comemorar o Santo António. Foi um erro. A progressão era difícil, os mantos de ambos enredavam-se nas outras pessoas, levavam empurrões e as sandálias não os protegiam das pisadelas. Num encontrão mais agressivo, S. Pedro voltou-se, de olhos raiados. S. João agarrou-o, gentil mas firmemente. Olhou-o nos olhos e disse-lhe muito sério:
Pedro, tem calma! Já passámos por coisas piores, se ainda te lembras!
S. Pedro acalmou, mas resolveram sair rapidamente do meio daquela turba.
Apanharam um táxi e S. João acompanhou S. Pedro ao aeroporto. Abraçaram-se:
Dá cumprimentos ao Chico! Diz-lhe que vou visitá-lo a Roma assim que acabarem as festas por aqui.
Depois, rumou à estação do Oriente para apanhar o comboio para o Porto. Ainda tinha três horas de viagem pela frente. Felizmente, não tinha pressa, que ainda faltava uma dúzia de dias para as festas em sua honra.

Joaquim Bispo

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Imagem: Nota de vinte escudos, 1964, Portugal.

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10/05/2018

Anti-Íon ou a Crítica do Dom



Timandro: Íon! Clistes! Bons olhos vos vejam! Donde vindes, assim, laureados?
Íon: Viva! Estivemos nas festas do Epidauro, onde pusemos à prova os nossos dons.
Clistes: Viva!
Timandro: Ah, sim; ouvi dizer que o concurso de rapsodos é muito apreciado e concorrido. Também há concurso de aedos?
Clistes: Sim; e dos mais importantes. Eu concorro sempre.
Timandro: E, pelo que vejo, saístes-vos bem!
Íon: Eu venci o concurso de rapsodos.
Clistes: E eu só perdi para o aedo de Egina. Em onze concorrentes.
Timandro: Fico muito feliz, por vós. Dizei-me: o que vos fez enveredar por essas tão belas ocupações? Qualquer um consegue ser rapsodo ou aedo?
Íon: Não, de modo algum. É o dom com que se nasce. A excelência que ponho nas minhas atuações e que faz chorar os que me ouvem é um dom com que nasci.
Timandro: Ah, sim? Dize-me: já em criança sabias recitar Homero?
Íon: Sim, mas só pequenos trechos. Aos poucos é que fui dominando a extensa obra do génio.
Timandro: Então o dom com que nasceste era pequenino?
Íon: Sim, posso dizer que sim. Felizmente que o meu tio Perilo era um apaixonado por Homero e não descansou enquanto não me incutiu o gosto. Recitava-me frequentemente as mais emocionantes passagens da Odisseia.
Timandro: Queres dizer que, se não tivesses um tio que te estimulou o gosto pelas epopeias homéricas, talvez esse pequeno dom com que nasceste tivesse murchado?
Íon: Nem mais. Estou muito agradecido ao meu tio.
Timandro: De bem pouca valia é um dom que não se usa. Imagina que nasceste com o dom do auriga e que o deixaste estiolar. Como saberias que tinhas nascido com ele?
Íon: Provavelmente, nunca o saberia.
Timandro: Então, é possível que nasçamos com muitos dons que não desenvolvemos e, portanto, nem deles tomamos consciência.
Íon: Assim deve ser, como dizes.
Timandro: E tu, Clistes, nasceste com o dom de fazer e cantar poesia ao som da lira?
Clistes: Depois do que disseste, creio que não; só comecei a gostar do fino vibrar das cordas da lira quando me apaixonei por Magide, filha de Macário. Nessa altura é que a musa se apoderou de mim.
Timandro: Então, segundo Íon, não devias ter dom, porque não nasceste com ele.
Clistes: Tenho, tenho. Componho com facilidade e toco e canto com gosto.
Timandro: Desculpai, se insisto: esse dom que, de uma maneira ou de outra, tendes é que vos levou à vitória, mas também trabalhais para conseguir tais êxitos, presumo, ou o dom é suficiente?
Íon: Não, eu estudo incessantemente Homero. É preciso conhecer o seu pensamento em profundidade e não só decorar-lhe as palavras. E recito partes da Ilíada todos os dias.
Timandro: Queres dizer que nasceste com um dom que foi sendo aperfeiçoado com trabalho!
Íon: Sim, pode-se dizer isso.
Timandro: Então, o que mais contribuiu para te levar à vitória: o trabalho que puseste no estudo ou o dom?
Íon: Ambos. O dom com que nasci — ou que aprendi com o meu tio — forneceu-me o interesse pela representação das epopeias; o trabalho dá-me a competência no conhecimento de Homero. Mas nada disto seria suficiente para empolgar a assistência se não fosse o que Clistes já referiu. Aliás, ainda ontem tive esta mesma conversa com Sócrates que me provou que eu estou fora de mim quando faço emocionar a audiência.
Timandro: Sócrates é sábio.
Íon: Sócrates estranhou que, falando Homero, Hesíodo e outros poetas dos mesmos assuntos — guerra, relações entre os homens, e destes com os deuses, e dos deuses entre si, e da genealogia dos heróis e dos deuses — eu só saiba falar e interpretar bem as palavras de Homero e não saiba nem goste de falar dos outros poetas.
Timandro: Por que achas que isso acontece?
Íon: Eu pensava que era porque Homero fala das mesmas coisas, mas muito melhor que os outros poetas, mas Sócrates convenceu-me de outra coisa.
Timandro: E o que disse ele?
Íon: Que se eu sei reconhecer que Homero fala melhor que os outros, mas das mesmas coisas, eu também deveria saber falar bem dos outros poetas.
Timandro: Aparentemente...
Íon: Acontece que não sei falar dos outros e aborrece-me mesmo ouvir falar deles. Ora, Sócrates diz que isso significa que o que eu digo de Homero não advém de conhecimento, mas de outra causa.
Timandro: Sócrates é sábio. Não ignora, certamente, que é possível falar das mesmas coisas mas de modos totalmente distintos, assim como é possível representar Zeus como Fídias o fez, ou como o fazem outros escultores menores.
Íon: E, na verdade, Homero é inexcedível.
Timandro: Não considerou Sócrates que sempre viveste “rodeado de Homero” e que estudas Homero afincadamente e não os outros poetas, e que, por isso, é lógico que o conheças melhor e o prefiras?
Íon: Não. A interpretação dele é a de que estou possuído por uma força divina, quando o recito.
Timandro: Curioso! O caso é tal que seja necessário recorrer a explicações tão potentes?
Íon: Sócrates diz que a mesma musa que inspirou Homero, quando ele compôs a sua obra, transmite a sua influência para mim e de mim para a audiência.
Timandro: A musa! Sócrates é sábio, mas, como ele próprio está sempre a dizer que nada sabe, é natural que muitas vezes se tenha reconhecido em erro e se previna de equívocos futuros. De cada vez que oiço invocar as musas como explicação de alguma coisa humana, lembro-me sempre do mau teatro.
Íon: Como assim?
Timandro: As ações de uma peça devem estar encadeadas numa relação de causa e efeito, de modo que cada uma seja a resultante lógica e necessária dos acontecimentos anteriores. Uma peça assim encadeada tem verosimilhança os espectadores reveem-se nela, como na vida. Uma má peça, pelo contrário, quando não consegue criar desenlaces consequentes com o nó que a trama enredou, recorre ao deus ex machina, dando um fim abrupto à história, não congruente com o fio da narrativa, o que desagrada sobremaneira aos que a veem.
Íon: A mim agrada-me que, pelo menos em certos momentos, eu seja instrumento do divino.
Timandro: Isso evita-te, certamente, seres desafiado por aqueles que são da mesma opinião que Sócrates. Os que te consideram instrumento do divino poderão travar a inveja com a desculpa de que não se consegue competir com o divino. Por um momento, vislumbrei a possibilidade de Sócrates te invejar.
Íon: Não creio. Mas os teus remoques a Sócrates é que me parece indiciarem alguma dor de cotovelo…
Timandro: Sem dúvida! Quem me dera que o meu filosofar tivesse a acutilância e a profundidade do jeito de filosofar do feioso. Mas, voltando ao nosso tema: e tu, Clistes, também sentes a possessão da musa?
Clistes: Compor poesia é deveras misterioso. Não sei onde vou buscar as palavras e as personagens que me surgem. Acredito que é a musa que mas insufla, como num sopro.
Timandro: Dize-me!: surgem-te palavras e personagens desconhecidas?
Clistes: Não; todas as palavras são por mim conhecidas, mas aparecem-me organizadas de uma maneira tão sensata e harmoniosa que me surpreendo que tenha sido eu a gerá-las, naquele encadeamento. Já as personagens são mais difíceis de caraterizar. Todas elas me são desconhecidas naquela forma.
Timandro: Naquela forma? Já as conheces sob outra máscara?
Clistes: Cada personagem parece-me uma mistura de outras, que conheço das epopeias; de heróis, de deuses, de homens.
Timandro: Então dirias que elas já existiam em ti, como as palavras que referiste? Isso significaria que não houve qualquer “sopro” exterior e que tudo é criado no teu espírito.
Clistes: Sim, mas, nas formas e atributos com que me surgem, são-me totalmente inesperadas.
Íon: Também me surpreendo com as palavras que saem da minha boca, quando estou no estrado. Sócrates disse que os belos louvores que teço a Homero não são devidos a uma techné que pudesse ser atribuída ao meu mérito, mas ao privilégio exterior concedido pela musa; que eu falo sem nada compreender. Senti-me humilhado.
Timandro: Sócrates é o mais sábio filósofo da Grécia, o que não quer dizer que não possa vir a mudar de opinião em relação a algumas das convicções que agora mantém. Há quem diga que a imaginação é “uma amálgama de perceção e julgamento” e que implica sempre a presença da perceção. Não aceitas que a inspiração seja um estado de exaltação emotiva que atinge a alma do poeta que, qual tecedeira a escolher os fios coloridos de lã para compor tapetes sempre diferentes, usa um caráter deste, uma fisionomia daquele, um atributo de outro, para compor uma personagem inesperada?
Clistes: Assim poderá acontecer.
Timandro: Esclarece-me uma dúvida que me assaltou agora. Se estivermos atentos e formos honestos connosco, reparamos que a genealogia dos deuses varia conforme as regiões, como Afrodite, que para uns nasceu de Zeus e Díone, e para outros é filha exclusiva de Urano. A questão é a seguinte: nesses teus momentos de criação, já criaste algum deus ou, ao menos, modificaste os atributos de deuses ou heróis?
Clistes: Envergonho-me de o dizer, mas já. Quando não me lembro bem da história de algum, componho-a com o que me parece melhor. Uma peripécia em que Dioniso é raptado por centauros foi criada por mim. E já criei um deus — Metaro — que é filho de Hefesto e que quando quer vigiar os homens incorpora nas estátuas de bronze.
Timandro: Era o que eu pensava. Não me custa admitir que Hesíodo é que criou a maior parte dos nossos deuses. Há um filósofo em Abdera — Demócrito — que diz que não há deuses nenhuns. No fundo, a nossa vida não se alteraria muito sem a sua existência. Não há dúvida, no entanto, que tornam a nossa vida menos monótona e sempre nos sentimos mais acompanhados, porque a solidão é funesta.
Íon: Na verdade; mas cá estamos nós, rapsodos, aedos, poetas, dramaturgos e atores para tornar a vida mais empolgante.
Timandro: Por outro lado, há um abismo entre a situação do artista que considera a sua obra manifestação de uma entidade exterior — e, portanto, nenhuma responsabilidade e mérito tem nela —, e a situação de outro artista que, atuando sem o pressuposto de influências metafísicas, considera a obra sua, com tudo o que isso implica: batalhar por ela, pôr nela todo o seu saber e sentir, não se entregar à preguiça, sabendo que só o seu trabalho a fará emergir. Agora, dize-me, Íon: preferes ser o títere manipulado por uma improvável divindade, ou o autor da admirável arte que move a alma das multidões?
Íon: Se pões as coisas nesse pé…

Joaquim Bispo

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Fonte (emulada na forma, mas contestada nas teses): PLATÃO, Victor Jabouille (tradução), Íon, Lisboa, Editorial Inquérito, Lda., 1988.
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Imagem: Conversa entre filósofos, mosaico de Pompeia, século I d. C., Museu de Arqueologia, Nápoles.
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10/04/2018

O suplício de Pigmalião



Com um pedaço de barro se fez o Homem — diz o texto antigo.
Com uma porção de pasta de moldar encho as mãos. Amasso-a entre dedos e palma, longamente. Aquece, amolece, como massa de pão. A tepidez potencia a impressão de textura de pele. Sinto que não há nada mais sensual.
A pasta revela-se infinitamente moldável, maleável, modelável. Obedece docilmente aos movimentos não pensados das minhas mãos.
Sem que as procure, surgem-me formas anatómicas. Como não, se vivemos rodeados delas, nos seres, nas pessoas? Crio espessuras, rotundidades; ensaio estiramentos.
Surgem cabeça, tronco, ancas, primeiro como meros esboços de volumes, depois em refinamentos de formas femininas. Crescem membros delicados. A textura do material, acetinada, torna-se cúmplice. Irrompem seios, face, cabeleira, dedos.
Completa, perfeita, a figura feminina reclina-se na minha mão, mansamente. A ilusão de vida é total. Uma emoção perturbadora apodera-se de mim.
Alucinado, invoco os olímpicos, mas esses deuses que se apiedaram de Pigmalião, quando o escultor se apaixonou pela sua obra, mantêm-se incomunicáveis.

Um suplício é acrescentado à lista mitológica e uma sombra de tristeza primordial instala-se, profunda, nos meus olhos.

Joaquim Bispo

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Uma versão deste miniconto integra a antologia do I Concurso de Minicontos Autores S/A — Autores S/A e Editora Penalux, Brasil, 2013.
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Imagem: Jean-Léon Gérôme, Pigmalião e Galateia, 1890.
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10/03/2018

O Comerciante de Arte



 — Então, não quiseram visitar a catedral de Santa Sofia?
A minha interpelação direta não era impertinente, porque eu e a minha mulher já tínhamos mantido algumas conversas com este casal, noutras ocasiões da viagem. Na Tunísia, deslumbrados na contemplação de mosaicos romanos, num dos inúmeros locais onde se mantêm bem conservados, lembro-me de o marido comentar: «Estas obras de arte não têm preço! Como eu gostava de viajar no tempo e ver estes banhos a funcionar com as pessoas da época!», o que foi pretexto para falarmos um pouco do tema, reconhecidos, que foram, alguns gostos próximos.
Já a visitámos duas vezes — respondeu Renato, o companheiro de cruzeiro. — Vimos com alguma frequência a Istambul. Como já lhes disse, sou colecionador e comerciante de arte, e a pintura turca, especialmente a de alguns artistas mais vanguardistas, está a crescer na cotação internacional. Ontem, estivemos em casa de um deles e comprei-lhe uma dúzia de obras de pequeno formato, que não vimos preparados para levar obras maiores. Se quiserem, depois podemos vê-las!
Ah, adorava! — respondi, cortesmente. — Ontem, vimos algumas telas no Grande Bazar, mas não faço ideia se são representativas da pintura que se pratica por aqui.
Estávamos com as respetivas mulheres, na fila do almoço self-service, e o paquete deslizava pelas águas do mar Egeu, de regresso a casa. Sentámo-nos, depois, numa mesa para quatro. Cada um falou daquilo que mais o tinha impressionado. Eu alonguei-me, sobretudo, nas emoções de vaguear pelo Bazar das Especiarias — um mundo assombroso para os olhos ocidentais.
Depois de um digestivo no bar, que à noite se transmutava em discoteca, fomos à cabine dos nossos novos amigos. Renato e a mulher, Jennifer, mostraram-nos, então, as novas aquisições. Eram uns oito pequenos quadros figurativos de certa ingenuidade e uns cinco abstratos. Pareciam mais souvenirs baratos, que obras de arte passíveis de transação de alto preço. Confesso que fiquei desapontado.
Isto vende? — perguntei, sem tentar esconder o desconforto.
Ó Francisco, já vi que tem dificuldades com a arte contemporânea. Arte é o que o artista diz que é arte, e torna-se vendável o que o sistema mundial da arte reconhece como arte. Há um século que deixou de ser equivalente a belo. As elites anseiam por novidades. O diferente tem a venda quase garantida.
Realmente, esperava outra coisa…
Este artista é ainda jovem e, com uma promoção adequada, pode vir a atingir bons preços no mercado. A arte pode ser encarada como um investimento, como outro qualquer. Há que estar atento às tendências, como um especulador vigia os movimentos da Bolsa. O segredo é «comprar em baixa», se assim me posso exprimir. Neste caso, antes de o artista ser muito conhecido e a cotação dele disparar.
Saímos e dirigimo-nos ao deck da piscina.
O que eu faço — continuou Renato — é descobrir, em qualquer parte do mundo, artistas pouco conhecidos, mas cujas obras se enquadrem numa tendência que esteja a crescer em aceitação. E invisto. Mais de metade dos quadros que viu irá parar a uma galeria que temos em Nova Iorque; os outros, ponho-os na de Lisboa e vou guardar um para a minha coleção pessoal. Vou ver como o público reage. Creio que esta expressão pseudoingénua, com evocações exóticas, está a ter cada vez mais procura.
Portanto — retorqui num tom ligeiramente crítico — a arte para si, afinal, não passa de um negócio!
Gosto de arte, mas também vivo dela. É como um jogo — íamos a passar junto à sala das slot-machines —, mas onde eu controlo alguns dos aspetos. Já viu estupidez maior que a destas pessoas, que pensam que podem derrotar uma máquina programada para as vencer? Eu exponho em feiras de arte e promovo o meu investimento, com notas para a imprensa especializada e catálogos escritos por especialistas que sabem encontrar as virtudes de qualquer obra de arte, como faz um administrador quando anuncia os resultados trimestrais da sua empresa.
Instalámo-nos em espreguiçadeiras, na zona da piscina, com as brincadeiras da juventude na água, dum lado, e o azul profundo das águas de alto-mar, do outro.
Ainda voltando ao jogo — prosseguiu Renato — está muito enraizada a ideia de que se se lançar uma moeda ao ar vinte vezes e vinte vezes sair «coroa» — ou que sejam cem! — haveria uma maior probabilidade de sair «cara», no próximo lançamento. Ora isto é um erro perigosíssimo, se se estiver a apostar forte. A moeda não tem qualquer memória dos lançamentos anteriores. Terá, exatamente, a probabilidade de cinquenta por cento de sair «cara». A mesma que de sair «coroa».
Não estou a perceber!
O que eu quero dizer é que o que parece lógico nem sempre é o que na realidade acontece. Os gostos mudam e há que estar atento aos movimentos da sociedade. Que pintor lhe faz lembrar esta piscina? A mim faz-me lembrar David Hockney — continuou sem me dar tempo de avaliar. — Foi uma sociedade hedonista, onde o corpo era e é glorificado e a homossexualidade ganhou espaço, que permitiu as pinturas apolineamente erotizadas de Hockney.
A conversa já começava a enfadar-me e tratei de a desviar para as frivolidades das conversas de viagens. Dois dias depois, quando passámos uma dezena de horas em Roma, fomos os quatro fazer o passeio sugerido por Renato. Não nos interessava repetir as visitas aos museus do Vaticano, às catacumbas e quejandos, que tínhamos feito doutra vez. Levou-nos a ver obras importantes, mas que não ficam nos roteiros habituais. Vimos o rosto «terrível» do Moisés de Miguel Ângelo e o inacreditável Êxtase de Santa Teresa de Bernini, onde não sabemos com o que mais nos surpreender: se com a inesperada expressão de gozo sensual de Santa Teresa, se com o facto de tal grupo escultórico erótico estar há séculos num altar. Renato aproveitou para teorizar sobre os jogos subconscientes da mentalidade de cada época e a resposta que a arte lhes dá.
Nessa noite, ainda confraternizámos e dançámos na discoteca do navio, onde uma pequena, mas estimulante, banda animava os foliões antes de deitar. Lá pelas cinco da manhã, acordámos com grandes solavancos do barco. Saí, cambaleante, para o corredor deserto e espreitei o mar. Estava bastante encapelado, devido a vento forte, mas o barco não parecia intimidado. Ao pequeno-almoço, pouca gente apareceu. O mar continuava agitado e o ambiente era deprimente, com gente amarelada a retirar-se para as cabines. Renato e a mulher foram dos que preferiram curtir o enjoo longe de olhares.
Chegámos a Barcelona a meio da tarde, já com bom tempo. Dos nossos amigos, nem sinal. Atracado o paquete, houve atrasos inesperados, antes de nos libertarem para as ruas da cidade. Havia movimentações no cais, pessoas entravam e saíam do barco, até que, estupefactos, vimos Renato ser levado algemado para fora do navio, com a mulher a acompanhá-lo. Em vão, tentámos saber o que tinha acontecido. No dia seguinte, depois de termos visitado o extraordinário parque Guell, do Gaudí, deparei-me com a fotografia de Renato na capa de um jornal local. Lemos a notícia, sofregamente, e oscilámos entre o sentimento de incredulidade, perante as revelações do jornal, e de desconforto pela nossa ingenuidade. Segundo o jornal, uma longa investigação tinha descoberto que Renato era um recetador de inúmeros ícones roubados em pequenas igrejas ortodoxas da Bulgária, que eram canalizados para agentes, na vizinha Istambul. Os ícones pintados eram dissimulados por detrás de quadros contemporâneos vulgares e Renato usava os cruzeiros para os fazer sair do país, devido ao menor controlo de fronteiras exercido nestas circunstâncias.
Dei por mim a pensar como é que Renato enquadraria este desenlace nas suas teorias dos jogos…

Joaquim Bispo

Imagem: Ícone ortodoxo
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(Este conto integra a coletânea organizada pelo blogue português Ora, Vejamos…, em 2009.)
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10/02/2018

Carta de Paris


Meu querido Amadeo, 
Sei que estás em Manhufe, a fugir da guerra. Escrevo-te esta carta depois de me terem falado do quadro que pintaste e não intitulaste, mas a que todos chamam “Coty”. Acertaram. Conheço-te bem; sei que mascaraste a minha identidade com a marca desse perfume que sempre uso.
Podes achar que ninguém vai reparar, mas há pessoas que me conhecem e vão perceber tudo e as intimidades que tínhamos. Não devias ter feito isso. As pessoas vão ver os insetos pousados nas pétalas rosadas e vão perceber, vão ver os ganchos de cabelo e vão perceber. Escusavas de ter posto as tulipas. Só não vê quem não quer. Olha que eu não sou dessas!
Era bem preferível ficares-te pelos seios e pelas pernas. Disso está a pintura francesa cheia. Não há Ingres, nem Renoir, nem Toulouse-Lautrec que não exponha a nudez das modelos e amantes. Ninguém me vai reconhecer por aí. Agora, os frascos de perfume, as cartas de jogar… Há quem saiba as habilidades que faço com elas. Por isso te escrevo.
Continuo a preferir a discrição de casa, aos grandes salões. Nisso não mudei. Até nas grades da janela me identificas. Mas me associas a uma planta carnívora. O que torna ainda mais perversa a imagem que dás de mim. Fiquei irritada, mesmo magoada. Eu não te merecia isto.
Também sei que casaste. Espero que sejas feliz aí nesse teu Portugal. Bem vi nos teus quadros que não esqueceste nunca os potes, as bilhas e outras vasilhas de feira. Tonto!
Quando acabar a guerra, vem visitar-me. Quero mostrar-te a minha nova carpete. É florida. Vais gostar dela, tanto como daquela dos quadrados. Mas não é para depois me pintares coberta de cravos e margaridas e gladíolos, que eu não sou dessas. Maroto!
Beijo da tua,
"Coty"
Joaquim Bispo

Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso, Título desconhecido (Coty), 1917.

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