— Eh,
pá, não tenho dúvidas; é um desses mails moralistas a
puxar ao sentimento, mas mesmo tocante — dizia Barbosa ao seu
colega de secção, no regresso do almoço, pelos corredores da
Judiciária. — A história é, mais ou menos, assim: na Alemanha do
século XV, havia uma família numerosa e pobre, cujo pai tinha de
trabalhar dezoito horas diárias nas minas de carvão para alimentar
tanta gente. Dois dos filhos queriam ser artistas, mas como?
Combinaram que um trabalharia nas minas, para pagar os estudos de
pintura do outro, e depois trocariam. Assim fizeram. No regresso da
academia, o primeiro, já formado, quis honrar o combinado, mas o
irmão disse que era demasiado tarde; que os quatro anos de trabalho
nas minas lhe tinham destruído as mãos para a pintura. Então, o
pintor desenhou as mãos calosas do irmão, como homenagem. Aí, o
mail apresenta o desenho realista de umas mãos todas cheias
de rugosidades.
— Manda-me
isso — concluiu Magalhães, interessado. — Sempre quero ver se é
melhor que os poucos que leio. A maioria, nem abro, quando percebo
que é pieguice.
Pouco
depois, o inspetor Magalhães fechava a página do eBay, onde,
de manhã, estivera a pesquisar leilões de azulejos portugueses, e
leu o texto do extenso e-mail que emocionara Barbosa, e que
vinha acompanhado de umas mãos-postas desenhadas por Durer.
Terminava com uma máxima: «quando você se sentir demasiado
orgulhoso do que faz e muito seguro de si mesmo, lembre-se de que, na
vida, ninguém triunfa sozinho!»
— Uou!
É potente! Não sabia que o Durer era tão pobre.
— Esta
máxima final parece feita de propósito para nós, não achas?
— Mas,
sabes — prosseguiu Magalhães, cofiando a pera — há aqui
qualquer coisa que não bate certo. A história puxa muito ao
choradinho. Há muita miseriazinha, muita entreajuda cristã, uma
grande lição de moral no fim... E as mãos não me parecem as
manápulas robustas de dedos grossos de quem trabalhasse numa mina.
Os dedos são tão compridos e esguios como os de um desocupado.
— Tens
razão! Vamos ver de onde é que isto vem.
— Olha,
“Durer mãos” no Google dá-me vinte mil resultados. É muito.
— Com
a primeira frase dá novecentos. Isto está bem espalhado!
— O
melhor é procurar na Wikipédia — racionalizava Magalhães.
— Está
aqui um site em que o pai de família trabalha dezoito horas, mas no
ofício de ourives. E tem dezoito filhos. Caramba!
— E
tem razão. A Wiki diz que o pai de Durer teve dezoito filhos
e era ourives.
— Escuta
este: «Após uma demorada e memorável refeição, recheada de
música e alegria, Albrecht ergueu-se do seu lugar de honra» —
tal, tal… — «“agora, Albert, meu bendito irmão, agora é a
tua vez. Agora podes ir para Nuremberg realizar o teu sonho, e eu
cuidarei de ti.”» — recitava Barbosa, rindo. — Escuta a
descrição do irmão: «Lágrimas corriam pela sua face pálida,
enquanto agitava para ambos os lados a sua cabeça curvada, e em
soluços repetia várias vezes “Não ... não ... não ... não.”»
— Que
lamechas, esse imaginativo aspirante a escritor! — respondeu
Magalhães, e prosseguiu no relato da sua pesquisa: — Parece que a
família Durer vivia em Nuremberga, desafogadamente, e não numa
aldeia próxima e miseravelmente. Ah, cá está! O jovem Albrecht foi
colocado aos quinze anos como aprendiz na oficina do gravador Michael
Wolgemut, dado o seu gosto pelo desenho. Pois! — reconfortava-se
Magalhães — do que me lembro das aulas de História da Arte
medieval e renascentista, as artes plásticas não se aprendiam nas
universidades, mas sim em oficinas de mestres do oficio. Eram artes
menores, manuais.
— Agora
já não é o irmão Albert, mas um companheiro… Franz Knigstein. —
zombava Barbosa de um dos sites por onde estava a navegar. —
«Um companheiro seu, também muito pobre, o ajudou. Os dois iam à
igreja, participavam da Ceia do Senhor, e o companheiro de Durer
cultivava uma equilibrada vida de oração.» Este site puxa
para a Igreja. Pudera! Faculdade teológica… «Um dia, Albrecht
encontrou Franz de joelhos, com as suas mãos postas em atitude de
oração, ásperas, no entanto, oferecidas a Deus em amoroso
sacrifício, orando para que ele, Albrecht, tivesse pleno êxito na
carreira de pintor.» — Ah, ah, ah! — «Prontamente, Durer
desenhou o momento e produziu um símbolo do significado da oração.
Desde então, a oração intercessora, simbolizada por aquela atitude
faz-nos lembrar que a oração e a amizade correm juntas. A pessoa a
Quem oramos teve Suas mãos atravessadas pelos cravos em nosso
favor.»
— Para
com isso, Barbosa!
— «Mãos
tortas e calejadas, de pele ressecada, mas apontando para o céu, em
atitude de súplica.» — descobria Barbosa.
— Para
com essas baboseiras! Escuta, há aqui informação séria, apoiada
em escritos dele. «Durer elaborava infindáveis estudos de mãos,
cabeças, objetos domésticos, plantas e animais: “O mínimo
detalhe deve ser realizado o mais habilmente possível”, dizia,
“nem as menores rugas e pregas devem ser omitidas.”»
— Só
mais este — deliciava-se Barbosa. — «Eles trabalhavam juntos
numa oficina de escultura em madeira; um deles fez as malas, se
despediu e foi para Viena/Áustria; o outro começou a trabalhar numa
ferraria. Não demorou muito, as mãos finas e sensíveis se tornaram
grossas e cheias de calos.»
— Gaita,
que esse pessoal não se limita a copiar. Quantas versões já
encontraste?
— Sei
lá! «E cuidou do amigo, que não precisou mais trabalhar na
ferraria.
Esta é uma história de quatro mãos, de dois amigos
que oravam um pelo outro, e de um artista reconhecido graças a uma
forte amizade. “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com
toda a alma e com toda a mente. Ame os outros como você ama a você
mesmo.”» — Colégio evangélico.
— Há
gente que não se importa de inventar e deturpar tudo para puxar a
brasa à sua sardinha. Sacanas de falsários! Neste caso, fanáticos
com as melhores intenções catequéticas.
— «1490».
«Os dois amigos viviam na mesma pensão». «Não, eu sou mais velho
e já tenho emprego no restaurante.», dizia o amigo. Já viste
estes, Magalhães?: restaurante! — ria-se Barbosa, virando o nariz
avantajado para o colega da secção de Furto de obras de Arte, da
Judiciária.
— Diz
aqui que as mãos foram desenhadas em 1508, como desenho preparatório
da figura de um apóstolo para um altar.
— «Suas
mãos rígidas, endurecidas, articulações grossas e dedos torcidos
pela labuta diária durante tanto tempo, impediam o suave manejo dos
pincéis.» — continuava Barbosa, imparável. — Mas olha, este
site tem comentários. Ouve o que diz quem comenta estas balelas: «A
beleza das mãos calejadas de Durer toca-me profundamente a alma. São
mãos que trabalharam por amor e com abnegação por toda uma vida.
São mãos que carregaram peso, tocaram muitas vezes a água...»
Água?; onde é que esta viu a água!? Outra: «Essas são, sem
dúvida, “mãos de sol”, mãos iluminadas de uma pessoa idem, que
teve a humildade de se sacrificar em prol do irmão.»
— Será
que ninguém repara que não são mãos de trabalho? — irritava-se
Magalhães, fazendo tremer as bochechas arredondadas. — São
escuras porque têm as sombras todas marcadas e são rugosas como as
mãos de qualquer pessoa, se forem desenhadas meticulosamente.
— Só
encontrei um a falar em «dedos emagrecidos». Ah! Finalmente o
comentário de alguém que agarra a tarefa de desmistificar a
trapaça: «Gostaria de informar que li diversas biografias do pintor
renascentista alemão Albrecht Durer, escritas por estudiosos como
Moriz Thausing, Erwin Panofsky, Ernst Rebel, Matthias Mende, entre
outros, e em nenhum deles encontrei qualquer menção aos fatos
citados.» Temos uma justiceira, Magalhães — alegrou-se Barbosa,
batendo palmas. — É uma tal Constanze de Curitiba. Grande mulher!
Ou será homem? «O pai de Albrecht Durer, assim como seu avô, era
ourives de profissão, uma das profissões mais reconhecidas na Idade
Média. Húngaro de nascimento, mudou-se para a cidade de Nuremberg,
onde mais tarde casaria com Barbara, com quem teve 18 filhos. Desses,
apenas 3 sobreviveram, o próprio Albrecht Durer (1471-1528), Endres
(1484-1555) e Hans (1490- ?), este também artista. Quando Albrecht
Durer tinha 4 anos de idade, seu pai, já um renomado ourives,
comprou sua casa própria em Nuremberg, onde o artista cresceu e
viveu durante 30 anos. Como fonte destas informações os autores
citam uma “Crônica Familiar”, espécie de diário que Albrecht
Durer manteve durante sua vida. O quadro citado, “Mãos que Oram”
— “Betende Hände” — foi desenhado a pincel em 1508, sobre
papel azul, e trata de um esboço/estudo de mãos para uma figura de
apóstolo para o painel central de um altar encomendado por Jakob
Heller para a igreja dominicana em Frankfurt. O painel foi destruído
num incêndio por volta de 1729, mas cerca de 20 esboços
preliminares ficaram preservados, dentre eles, este citado tornou-se
um dos quadros mais famosos de Albrecht Durer. Trata-se, certamente,
de uma brincadeira que circula livremente pela Internet, sem o
cuidado de verificar sua autenticidade.»
— É
isso mesmo! — entusiasmou-se Magalhães. — Pesquisei «altar
Heller», e olha o que descobri. Chega aqui!
Barbosa
aproximou-se da mesa de trabalho do amigo e ambos observaram,
reconfortados, a imagem de um grande retábulo em cujo painel central
estava pintado um conjunto de apóstolos assistindo à ascensão da
Virgem, um dos quais tinha as mãos postas tal qual as do esboço que
os tinha intrigado na última hora e meia.
— Datado
de 1508. Nesta altura tinha Durer… 37 anos — calculava Magalhães.
— Mas,
o altar não tinha ardido?
— Diz
aqui que é uma cópia feita por um outro pintor, em 1614.
— Sabes
o que eu senti? Um grande repúdio pela tacanhez desta gente para
quem umas mãos, só por estarem pintadas em escuro, têm de estar
encardidas de carvão, e por estarem minuciosamente desenhadas, com
todos os volumes, todas as rugas, têm de estar calejadas e
deformadas. E uma grande indignação por utilizarem a mentira e a
falsificação para atingirem o coração crédulo das pessoas. Por
outro lado, fiquei muito agradado que tivesse havido alguém a dar-se
ao trabalho de esclarecer estes ataques à verdade histórica. Se
calhar, devia haver uma entidade, uma organização
não-governamental, engajada com a divulgação do conhecimento, que
tomasse por missão desmascarar esta gente que espalha a aldrabice
pela Internet, como quem espalha o vírus duma doença epidémica.
— Vamos
à biblioteca, que quero tirar isto bem a limpo.
Pouco
depois, confirmavam quase tudo o que «a justiceira» dissera. E
ficaram a saber, também, que o desenho das mãos postas está no
museu Galeria Albertina, em Viena.
— Mais
um caso resolvido — gracejou Magalhães. — Vamos lanchar?
Antes
que o parceiro pudesse responder, tocou o telefone. Era o
inspetor-chefe a distribuir serviço: «Roubaram mais um painel de
azulejos do século XVII, num palacete do Lumiar. Passem aqui a
buscar a documentação».
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Albrecht Dürer, Mãos em Oração [também conhecido como
Estudo das Mãos de um Apóstolo], Desenho [realce de branco e
tinta negra sobre papel azul], 29.1 x 19.7 cm, c. 1508.
Galeria
Albertina, Viena.
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