Mostrar mensagens com a etiqueta crónica. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta crónica. Mostrar todas as mensagens

10/05/2017

A Vingança de Zeus


Nos tempos de Homero, era público que os deuses interferiam na vida dos homens, às vezes por motivos mesquinhos e de maneira impertinente. Nos tempos que correm, não pensamos em deuses traquinas quando as nossas vidas tomam rumos inesperados, mas ficamos desconfiados da qualidade do argumentista da nossa realidade.

Há tempos, na Alemanha, um casal, desesperando de não conseguir ter filhos, como tantos outros, obteve dos testes de fertilidade a mais cruel das respostas: o marido era infértil.
Para qualquer ser humano, esta é uma notícia perturbadora. O seu eu físico, genético, ficará por ali, não se prolongará para lá dele, a eternidade fica condenada. Resta a possibilidade de prolongar o seu eu cultural, memético, que, para muitos, é até mais identitário. Para isso, há que arranjar uma criança, dê por onde der: adoção, barriga de aluguer, inseminação artificial. Nesta última alternativa, ao menos, a parte genética da esposa está presente.
Foi isso que os membros do casal alemão decidiram ele de ascendência grega, 29 anos, e ela de idade semelhante , mas, em vez de recorrerem a um banco de esperma, contrataram um vizinho para cumprir a parte do fornecimento seminal, devido ao facto de ter extraordinárias parecenças físicas com o marido infértil. Além disso, o vizinho dava garantias de sucesso: era casado e pai de dois filhos, bem bonitos, por sinal.
Será que, a partir daí, o casal entregou o processo a um laboratório que se encarregasse de recolher o esperma do vizinho e o colocasse no útero da mulher? Não. Fosse porque desconfiam da tecnologia, ou por outra razão não revelada, o combinado foi que o vizinho copulasse com a senhora, de modo natural, três vezes por semana, até que ela engravidasse.
Não sabemos o que sentiu o vizinho quando foi convidado, mas adivinhamos. Deve ter agradecido a todos os deuses do panteão germânico a graça que lhe tombou na cama. Copular de forma descomprometida, sem ameaças de responsabilidades futuras, é a ambição de todos os homens, pelo menos dos imaturos. Todas as fantasias masculinas tilintam de alegria ante tão excitante perspetiva. Além disso, consta que a senhora é uma estampa de mulher, pelo que não se percebe por que foi preciso pagar 2000 euros ao inseminador que, com 34 anos, não devia precisar de tal incentivo. Estamos, certamente, perante um excelente negociador que obteve um pagamento pelo que teria feito de graça, alegremente. Na verdade, foi só com o dinheiro que estava a ganhar que ele argumentou à própria esposa, quando ela tomou conhecimento do propósito das inúmeras saídas noturnas do marido.
Neste ponto, tudo parecia correr bem e a contento de todos: o vizinho tinha o melhor trabalho do mundo; a vizinha, sua mulher, confortava-se com a entrada da receita extra; o grego esperava ter em casa, brevemente, uma criança parecida consigo, para educar; a mulher iria, finalmente, ser mãe, de maneira totalmente humanizada, sem ter de recorrer a impessoais burocracias e frios procedimentos laboratoriais, e com dupla garantia para a cria. Pode-se especular que o facto de saber quem era o pai poderia vir a ser de enorme utilidade, se fosse necessário apontar a paternidade biológica, em caso de futuras carências económicas da criança que estas contas não se pensam, mas estão sempre presentes na contabilidade genética inconsciente de cada um que os genes não brincam na hora de garantir a preservação.
Foi neste ínterim que Zeus quem mais? interveio, para gorar os planos deste grupo tão bem conluiado. Talvez se tenha apiedado da posição humilhada do seu infértil compatriota, talvez tenha querido mostrar a Odin qual o panteão mais poderoso, ou talvez tenha ficado roído de inveja da sorte olímpica do vizinho porque ele, apesar de ser o todo-poderoso deus dos deuses, tem de tomar formas de cisne, de touro, ou outras, para conseguir unir-se à mulher ou à deusa que deseja.
Bem que o vizinho alemão se esforçava, pontual e assiduamente, mas a senhora não engravidava. A eficiência do copulador contratado não merecia reparos, mas, ao fim de seis meses e setenta e duas jornadas de trabalho, o casal infértil começou a duvidar da eficácia dele para terminar a obra dentro do prazo previsto e intimaram-no a provar as habilitações. Mais uma vez, a resposta laboratorial foi desoladora também o vizinho era infértil só que, desta vez, com consequências ainda mais devastadoras.
O alegre copulador passou, repentinamente, de o mais feliz dos homens para um dos mais castigados pela sorte: não só a mulher o tinha traído, como os seus filhos não eram seus e supremo golpe não poderia vir a tê-los.
Podemos conjeturar que ela, quando confrontada sobre a origem da prole, ainda tenha tentado desculpar-se com Odin, disfarçado de padeiro ou de técnico de televisão por cabo, mas o marido já não vai em mitologias e exigiu o divórcio.
Do casal greco-alemão de soluções criativas, a mulher voltou à estaca zero, propriamente dita, e, provavelmente, tenta lembrar-se onde é que viu um outro homem parecido com o marido; este, dada a ausência de resultados do contrato em que tanto investiu, sente-se o mais manso dos herbívoros e, para readquirir alguma dignidade, lançou um processo judicial contra o vizinho, para tentar recuperar, ao menos, os 2000 euros. Além disso, deve precisar deles para o próximo contrato.
O vizinho, que também pode vir a precisar, não quer devolvê-los, argumentando que forneceu a mão-de-obra salvo seja conforme combinado, mas que nunca garantiu a consecução do projeto.
O caso estava para ser decidido pelo tribunal de Estugarda, e é por isso que dele tomámos conhecimento, através do jornal Bild — porque pela boca de Zeus jamais o saberíamos…

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Nikias Skapinakis, Leda e o Cisne (?), Coleção Berardo (?).

* * *
(Esta crónica foi publicada no número 27 da revista literária virtual Samizdat, de abril de 2010.)

* * *

10/04/2017

Domingo de Ramos



O que aconteceu na manhã do Domingo de Ramos conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém, vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas ao Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, aparelharam-na com simples panos, ele montou-a, e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram recebidos com aplausos e cânticos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O episódio matinal foi ignorado por quase todos os correspondentes estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que, por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, atualmente ocupada por Israel. Tornou-se um revoltado, quando viu a terra, que ele amava desde pequeno, ser colonizada, ocupada e apropriada aos poucos, por gentes, vindas de várias partes do Mundo. Viu que essas gentes eram incapazes de uma identidade médio-oriental, pois procuravam-na no território mas rejeitavam-na na cultura. Viu a segregação feroz do seu povo e a separação efetiva de territórios irmãos, devido à construção de uma muralha de betão de oito metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, tão cruel que chega a isolar populações, como as 450.000 pessoas de Jerusalém oriental.
Em vista do meu espanto, disse-me que, sem o quererem assumir, os dirigentes israelitas estão determinados a reconstituir a grande terra de Canaã das escrituras tradicionais, e a usar a força que for precisa contra os opositores à anexação do território palestiniano — destruindo cidades, utilizando armas proibidas contra populações civis, exterminando indiscriminadamente, sem olhar a idades. Tudo isto perante os olhos do Mundo e apesar do clamor internacional, incapaz de contrariar a posse das únicas armas nucleares da zona e o apoio incondicional do novo império mundial, que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao cobiçado oceano subterrâneo de petróleo.
Revoltado, como tantos outros palestinianos que esbracejam para ver o seu povo liberto do domínio estrangeiro, o jovem nazareno, porém, não se lançou nos braços da OLP ou do Hamas. De carácter meditativo, formou um grupo de ativistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de ações não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o território como dois estados irmãos. Diz ele que não faz sentido que Israel queira reconstituir um Estado confessional com o mesmo território que dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel, organizassem um Estado militarizado e passassem a expulsar os habitantes atuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se necessário.
Avesso à violência, também condena os atos de intolerância dos palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero. Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
Um homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a vinha. Assim se fez, mas quando o dono enviou emissários a recolher a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo fizeram ao filho do dono, cuidando apoderar-se definitivamente da herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando evidenciar a razão dos desapossados.
Mostra ser muito sagaz, embora idealista. Nicodemo, um membro do Knesset que acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada messiânica em Jerusalém foi decalcada do Antigo Testamento, como estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores, que esperam ainda o Messias. Entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem montado numa burra, e sobre o burrico da burra.»
Aparentemente, esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos judeus absortos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava, começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões, provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência. O burburinho foi imediatamente detetado por uma patrulha militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar.
O homem não só não parou como estendeu o braço para os soldados com dois dedos da mão levantados, talvez a formar o V de vitória. Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada. Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
O vídeo passou uma dúzia de vezes nas televisões, acompanhado da nota de que o desordeiro morrera pouco depois no hospital e de que os companheiros tinham sido presos e estavam acusados de alteração da ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para terrorismo.
Neste dia em que vos falo, o episódio está esquecido. Um enorme equívoco continua a matar silenciosamente naquela área. O nazareno pacifista foi só mais uma vítima anónima deste equívoco.

Joaquim Bispo

* * *
Imagem: Giotto, Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém [Domingo de Ramos], afresco, Capela Scrovegni, Pádua, Itália, 1305.

* * *
(Esta crónica narrativa, com o título “Um muro de intransigência” foi publicada no número 23 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2009.)

* * *

10/11/2016

A Vida Continua


Os cemitérios de Lisboa são lindíssimos. Têm avenidas bordejadas de “palacetes” e esculturas, muitas flores e algum silêncio. Ostentam uma arquitetura que, ao longo dos tempos, tem refletido a arquitetura dos vivos. E mais bem preservada do que a da cidade dos vivos. É que, nessa cidade dos mortos, não é necessário deitar jazigos abaixo para construir agências de bancos e de companhias de seguros. Ali, não abundam os clientes financeiros.
Veem-se jazigos de todos os estilos: neogótico, neomanuelino, neoclássico, “casa portuguesa”. Uns, imponentes, a refletir a importância do defunto em vida, outros, discretos, a exaltar a humildade devida ao novo estado. Alguns são autênticas esculturas arquiteturais.
É nos cemitérios que existe, talvez, a maior concentração de escultura por hectare. Alguma, de grande qualidade. Além de chorosos anjos, escondendo a face, encontram-se, também, muitas alegorias da dor e da perda, adequadamente acompanhadas de fustes de colunas partidos ou troncos de árvore decepados precocemente. Lápides verticais ostentam delicados rendilhados florais em alto-relevo ou símbolos adequados à profissão e ao estatuto do finado, em vida.
Uma deambulação por um silencioso cemitério lisboeta é, quase de certeza, mais tranquilizante e culturalmente mais estimulante do que um passeio por muitos dos jardins da cidade.
Estes cemitérios têm ritmos próprios. Cada talhão de enterramento passa por uma fase de alvoroço, com a abertura de novas covas e montões de coroas de flores em cima de montes de terra, que progride, durante umas poucos semanas ou meses, em linhas paralelas ao longo do talhão. Aos poucos, o campo de linhas revoltas vai evoluindo para um prado de aspeto arranjado, pincelado de lajes de mármore e floreiras multicoloridas. Chega um momento em que todo o talhão se arrumou e mantém um aspeto muito estável durante cinco anos, com os mármores alinhados, entremeados por um ou outro simples monte de terra dos defuntos de menos posses, cada um com a sua floreira. Às vezes, com uma ou outra placa de mármore com inscrições prosaicas, ou menos esperadas, como “Grand-maman — Je ne t’oublierais jamais”, a refletir o fado da emigração.
Quase sempre, esses talhões de meio hectare de área estão circunscritos por um muro quadrilátero, de gavetas de cimento embutidas, nas quais, mais tarde, serão depositados os pequenos caixões contendo apenas os ossos lavados e desinfetados dos corpos que tenham atingido o estado necessário ao levantamento.
Estar sozinho num desses talhões, a observar a extensão florida agitada pela aragem e a ouvir o concerto da vibração das centenas de pequenas floreiras metálicas, faz qualquer um sentir-se num universo distinto do nosso. São várzeas artificiais, prados de flores naturais de caules cortados à medida, e de flores de plástico, inseridas em floreiras, numa densidade e numa multiplicidade de cores que nem a Natureza produz.
Depois, passados os cinco anos da curtimenta, os talhões começam a ser escalavrados pelos levantamentos avulsos, que deixam uma paisagem desoladora semeada de crateras retangulares por entre as campas intactas, cujos ocupantes se atrasaram a atingir a decomposição total. Passado algum tempo, tudo recomeça e o talhão recobra a “vida” florida — se de vida podemos falar —, para mais um ciclo de enterramentos.
Aos domingos, na Ajuda, os ciganos instalam-se todo o dia no cemitério a honrar os seus mortos. Pintaram de branco a moldura da gaveta onde está o caixão do familiar falecido e o chão do passeio por baixo da gaveta. Mantêm-se por ali a limpar a gaveta, o caixão, o pano que o tapa e depois ficam simplesmente sentados, de porta da gaveta aberta com várias fotografias do defunto expostas e jarrinhas de flores sobre panos bordados brancos.
Os outros vão menos ao cemitério. E tanto menos quanto maior o inexorável apagamento da dor que a passagem do tempo provoca. As floreiras deixam de ter flores naturais e ficam-se pelas de plástico que “duram mais tempo”. Não muito, que também estas são, às vezes, levadas pelo vento ou tão só carcomidas por chuvas e sol. No fim do verão, a maioria das floreiras está vazia, ou tem uns pedaços de flores ressequidas, quando muito.
Perto do Dia de Finados — 2 de novembro —, os cemitérios enchem-se, numa romaria de mãos carregadas de flores. Cumpre-se a “obrigação” e o ritual. Nessa ocasião, são sobretudo os muros repletos de gavetas que registam uma primavera fora de época. Veem-se pessoas de todas as idades encavalitadas nas escadas metálicas que os cemitérios disponibilizam para aceder às posições mais elevadas.
Por entre o bulício respeitoso dos que levam um rumo determinado, percebe-se que há quem ande perdido e é possível ouvir pelas alamedas discussões em surdina sobre a localização das gavetas que procuram. Quem não visita esquece e há quem deixe passar muito tempo. Até por defesa.
Pode ler-se, aqui e ali, nas portinhas: “O tempo passa — A saudade aumenta”. Ou outra mentirinha parecida, crida com toda a sinceridade. O tempo passa e tudo faz passar, felizmente. Ninguém conseguiria viver, sempre, com a dor dos primeiros dias; ninguém conseguiria aguentar, ano após ano, as saudades sentidas no primeiro.

Joaquim Bispo
* * *
(Esta crónica foi publicada no número 11 da revista literária virtual Samizdat, de dezembro de 2008.)
* * *




10/09/2016

A faixa branca


Ah, a Irlanda! — a ilha que exibe o permanente verde dos seus campos numa faixa da bandeira. Há quem diga que a faixa alaranjada no outro extremo é a cor do uísque. Ah, os pubs, a festa, a herança celta. E a faixa branca, a meio, faz-nos lembrar o quê? A pureza perdida das crianças?
Um relatório divulgado há poucos anos revela que, entre 1930 e 1990, milhares de crianças carenciadas, que tinham sido acolhidas por instituições religiosas irlandesas, foram objeto de violência e abusos sexuais por parte de centenas dos seus cuidadores. O facto choca, sobretudo, porque os acontecimentos tiveram lugar em abrigos infantis, reformatórios e orfanatos geridos pela Igreja Católica, largamente maioritária no país.
Pensamos sempre que os homens e as mulheres da Igreja estão, tendencialmente, acima dos “pecados” da carne, só porque o potentado religioso que os enquadra a isso aspira, ou pelo menos apregoa. Grave erro: as pessoas que o integram são da mesma carne e pulsam com o mesmo desatino hormonal que as que festejam o corpo e a vida fora dos espaços religiosos. Refugiaram-se nas instituições católicas pelas mais variadas razões, quase nunca para renunciarem ao apelo das sensações lúbricas. Nem tal lhes é exigido. Mesmo aos padres, a Igreja proíbe o casamento, não pela subjacente implicação de mais difícil acesso ao sexo, mas — dizem algumas teorias mais pragmáticas —, por um mais prosaico programa de evitar o forçoso sorvedouro de bens, necessários para alimentar e vestir cônjuge e filhos.
Não é a Igreja que faz os pedófilos; também nas instituições governamentais sucede o abuso. O ambiente coletivo nos locais de acolhimento, onde os mais velhos dispõem de ascendente sobre aqueles que estão à sua guarda, proporciona a oportunidade adequada às práticas do pedófilo. A proximidade, o espírito de ajuda, de proteção, cria, por vezes, aquela intimidade perturbadora a que o pedófilo não resiste. A evolução é progressiva. Um dia, ajuda a criança a vestir-se, sente-lhe o morno da pele, a suavidade do cabelo; outro dia, observa-lhe a cor límpida dos olhos, a forma germinante dum corpo a meio caminho da floração; recorda o seu próprio corpo e as emoções perturbadoras da puberdade, às vezes, como um adulto o iniciou nessas emoções. Aos poucos, sobrevém a oportunidade de masturbar a criança. Quer desvendar-lhe esse mundo maravilhoso, que o seu corpo encerra, onde reside um prazer insuspeito. Ele próprio segue o que entende como o desejo da criança, que chega a perceber como uma provocação ao gozo mútuo. Desencadeia e deixa-se enredar, consciente e maliciosamente, numa crónica teia de relacionamento furtivo, sabendo que é um comportamento censurável, a esconder, um segredo para dois. Sente na criança uma aceitação e uma ausência de reprovação que, apenas em algumas raras vezes, julgou encontrar na aproximação a outros adultos, mas que sempre redundou em rejeição e dor.
A criança gosta de quem mostra querer-lhe bem, de quem a defende nas inúmeras situações de controlo e poder que surgem numa instituição com muitas crianças desenraizadas. Às vezes, encontra nesse adulto o amigo que a ouve e lhe afasta as inquietações. Fica perturbada com as sensações que o adulto ensinou o seu corpo a proporcionar-lhe, aceita corresponder às carícias como retribuição pedida e “justamente” merecida. Não domina o jogo das relações sociais; mesmo quando se sente desconfortável, evita denunciar quem sempre parece querer-lhe bem. Afinal, os outros adultos estão emocionalmente muito mais afastados. Tem dificuldade em dizer “não”, sente que talvez seja culpada de ter ido tão longe. Envergonha-se; sabe como tais situações, quando reveladas, são motivo de escárnio. Isola-se e tenta sobreviver até que um dia possa sair da instituição.
Vamos a contas: no referido período, passaram pelas 250 instituições em causa entre 30.000 e 40.000 crianças. No inquérito realizado nos primeiros anos deste século, duas mil, algumas com mais de cinquenta anos, declararam ter sofrido abusos de vários tipos.
Ah, o horror! Inaceitável!”, dirão alguns, alarmados com os números. “Danos colaterais. Inevitáveis.”, dirão outros, argumentando que se fossem só estas duas mil, estaríamos a falar do valor “confortável” de apenas 2 ou 3 crianças abusadas, por instituição, por ano.
Há, realmente, tanta coisa inaceitável que temos de engolir, infelizmente, desde a miséria nos bairros periféricos das grandes cidades, à exploração e à guerra no terceiro mundo promovidas pelas grandes potências, que produzem milhões de refugiados, sem esquecer essa ignomínia de todos os tempos — o tráfico de pessoas. Em todas essas situações, há inocentes apanhados nas redes da animalidade humana e traídos pelo bocejo da indiferença social e internacional. É tão difícil alertar as pessoas, embrenhadas nos seus pequenos problemas. E, mesmo quando alguém para para pensar, o máximo que sente é uma sensação angustiante de impotência. E vai desforrar-se no frigorífico…
Para quem foi abusado, a relação com a situação de que foi vítima é diferente. Não consegue simplesmente declarar para si próprio: “é passado”. É um subjacente desconforto psicológico permanente. Pela humilhação, pela coação a que não conseguiu escapar. Muitas vezes, reconhece que lhe estruturou a personalidade, alterando profundamente a relação com os outros, provocando-lhe sentimentos de desconfiança e medo, baixa autoestima, menor resistência aos posteriores solavancos da vida.
O caso relatado foi tratado com algum empenho: os inquéritos permitiram identificar 12.500 vítimas e indemnizá-las, reconhecendo a gravidade do trauma. E houve afastamentos de responsáveis e pedidos de desculpas.
Não se sabe o que desencadeia as tendências pedófilas. Nem sempre os abusadores foram abusados; nem sempre os abusados se transformam em abusadores. Há pedófilos violentos, mas, muitas vezes, são apenas o que a palavra indica: gostam mesmo de crianças. À sua distorcida maneira. Não aceitam que o que fazem é prejudicial à criança, que representa um abuso, uma humilhação que a vai acompanhar pela vida inteira. Se tiverem oportunidade — e é impressionante como são atraídos por relações, atividades e profissões que os aproximem das crianças — vão repetir comportamentos pedófilos.
Pelas crianças, que serão adultos magoados, a sociedade tem o dever de tentar reduzir as oportunidades de acesso dos pedófilos às crianças, selecionando criteriosamente quem lida com elas e mantendo uma observação ativa sobre o funcionamento dessas instituições. Para que as irlandas deste mundo sejam apontadas apenas pelos bons motivos: as belas paisagens e o bom uísque.

Joaquim Bispo

* * *

Imagem: Georges Rouault, Tete o palhaço, Paris, 1930.

* * *

(Esta crónica foi publicada no número 20 da revista literária virtual Samizdat, de setembro de 2009.)

* * *