10/02/2024

O muro global

 


Na reunião de Agenda da estação de televisão, já se notava a agitação própria do final. Tinham sido distribuídos os serviços de política nacional, os desportivos, os criminais e os de sociedade. Só faltava um
fait divers. Alguém adiantou a informação de que o furtivo graffiter ShameU andaria a pintar um novo painel.

Este artista de rua emergente tinha vindo a ganhar relevância e visibilidade com impressivas pinturas a spray de médio e grande formatos, sempre de temática provocatória. Não tão genial, nem tão difícil de encontrar como o quase mítico inglês Banksy, ShameU suscitava, no entanto, cada vez mais curiosidade pública. Vhils, de projeção internacional, ganhava em popularidade, mas aplicava-se numa área diferente — a intervenção mecânica em paredes, jogando com os diversos matizes das camadas subjacentes. Também as instalações parietais de Bordalo II, a partir de materiais industriais reutilizados, suscitavam admiração além-fronteiras. Na técnica do graffiti a spray, já tinham brilhado inúmeras vezes no ecrã os prolíficos Smile, Styler, Odeith e outros. ShameU, pelo contrário, era quase desconhecido do grande público, e tinha fama de maldisposto.

Eu faço isso! — decidiu Edite Silva, sacolejando a cabeça para afastar uns fiapos de cabelo que lhe tocavam nas pestanas.

Terá sido a curiosidade pessoal que levou a subdiretora a assumir este trabalho de rua. Ou uma vontade de ser associada no futuro a esta celebridade nascente. Era conhecida por ter apetência pelos media cor-de-rosa.

A assistente fez o contacto e combinou os pormenores: seria à tardinha, num muro de suporte de uma escarpa sobranceira a um acesso rodoviário na Pontinha.

Tem de ser mais cedo. Diz-lhe para estar lá às 4!

À hora combinada, com um operador de reportagem a tiracolo, Edite aproximou-se do graffiter que, empoleirado numa plataforma, rodeado de latas de spray e de máscara protetora na cara, ia compondo a imagem que idealizara, num muro de uns cinco metros de altura já muito sobrerriscado de pichagens antigas.

O trabalho estava no início. Em primeiro plano, a toda a altura, sobressaía o que parecia vir a ser a Estátua da Liberdade de Nova Iorque, vista de costas.

Uns miúdos que já por ali andavam, aproximaram-se mais, ao reconhecer a estrela televisiva. ShameU pousou a lata de spray que estava a usar e desceu. Aceitara a entrevista decidindo que “A televisão é uma oportunidade top” e esperara a equipa de reportagem trabalhando, mas vagamente constrangido. Toda a sua estratégia passava pela divulgação da mensagem, mas não tinha simpatia pelos grandes media.

Apresentados, Edite, expedita e decidida, delineou o que pretendia:

Começamos por conhecer o seu percurso, o que faz e porquê. Eu vou-lhe fazendo perguntas, enquanto o repórter de imagem vai mostrando o seu trabalho. No fim, teremos de fazer uns planos de corte, para montar a reportagem. Ok?

O graffiter assentiu, um pouco atarantado com aquela velocidade toda.

Vamos lá! — comandou a jornalista. Pigarreou ainda um pouco, a aclarar a voz, e começou: — Hoje viemos conhecer um graffiter, um talentoso artista de rua. ShameU, há quanto tempo pinta, o que pinta, e porquê? Fale-nos um pouco de si!

No secundário já tinha “jeitinho” para o desenho. Infelizmente, não tive nota para entrar em Belas-Artes. Fazia parte de uma crew que assinava todos os muros vazios que encontrava. E de vez em quando fazíamos umas figuras pop-art e letras muito perspetivadas. O que me trouxe para o graffiti de intervenção foi a exigência ética de denunciar os crimes da América. Tinha acontecido o assalto sem justificação e a destruição do Iraque, e ninguém parecia importar-se; muitos até apoiavam a carnificina. Morreram centenas de milhares de iraquianos. Inocentes. Exceto o exemplo corajoso de Carlos Fino, a voz do dono passava uma mensagem mansa de justiça e normalidade. Daquele ato bárbaro, ao nível de um Hitler. Uma injustiça brutal, o mal puro à solta.

Foi então que começou a pintar os muros da cidade?

No princípio, a imagem era, para mim, uma perda de tempo e de tinta. A mensagem era tudo. Uma frase, a negro, a denunciar os massacres infligidos pela América aos povos era o necessário e suficiente. “A matança de Bush já atinge os duzentos mil civis”, por exemplo. Quase sempre acrescentava o link da Internet com essa notícia. Depois percebi a força das imagens, sobretudo ao ver as pinturas do Banksy. O que não impedia a frase forte, rápida de aplicar em qualquer muro, a denunciar as canalhices da época; por exemplo: “Obama matou hoje mais 17 crianças no Paquistão”.

Parece então que você, com tantos atentados aos direitos humanos por esse mundo fora, escolhe os Estados Unidos como “o mau da fita”!

A minha crítica é mais um queixume. A América, como superpotência ultradesenvolvida, tem uma responsabilidade especial. Ela é glorificada pelas massas, apregoa-se como um farol de liberdade, mas não passa de uma carcereira implacável. Existem hoje mais de mil bases militares norte-americanas fora dos Estados Unidos, espalhadas por todo o planeta. E ai do país que eleja um governo que ela não aprove. Pode ser o mais querido pelos seus povos… o mais certo é ser boicotado, sabotado, invadido. Veja os casos de Cuba, do Iraque, da Líbia!

Eram países comandados por ditadores sanguinários, certo? Você defende as ditaduras? — reagiu Edite, provocatória.

Aqueles a quem a senhora chama ditadores foram, muitas vezes, os líderes que retiraram os respetivos países de baixo da pata colonialista. Por isso, o Ocidente não lhes perdoa. Promoveram o desenvolvimento, retiraram milhões da pobreza. Foram heróis para os seus povos — ShameU gesticulava, acentuando as palavras com movimentos largos. — É certo que, muitas vezes, foram ingénuos, como crianças inexperientes, deixaram-se deslumbrar e cometeram erros. Por eles devem ser criticados. Mas faz sentido que eu seja mais crítico para com eles do que para com os “adultos”, isto é, as nações ricas, que gargarejam direitos humanos, mas não têm a mínima compaixão pelas pessoas reais? Como a América, que substitui os “ditadores” por guerras civis, que matam centenas de milhares ou milhões de inocentes. Os povos não precisam de ajudas genocidas. Quando as condições ficam reunidas, libertam-se dos opressores, como Portugal se libertou.

Mas a América, como lhe chama, pode cometer erros, mas é uma democracia...

Infelizmente, a América, mesmo classificada de democracia, faz quase sempre parte do problema e poucas vezes da solução. Talvez para tentar esconder os indisfarçáveis níveis de racismo, de pobreza, de faltas de acesso à saúde e à educação, que por lá são tratadas como virtudes liberais. Não creio que chamar-lhe democracia traga algum consolo às famílias das vítimas dos morticínios provocados pelas administrações americanas. Num sistema político mundial que se regesse pela justiça e pelos apregoados direitos humanos, Bush teria comparecido perante um tribunal marcial, por crimes contra a Humanidade. Que eu saiba, nem sequer foi preso. Nem se pôs essa hipótese! Imunidades e impunidades de dirigentes parecem tiques próprios de regimes imperiais e tirânicos. Que admiração podem suscitar? — continuou, empolgado. — Para qualquer deserdado do Mundo, é indiferente se chamam democracia às apalhaçadas eleições internas que uma superpotência faz. Nem sequer pode votar nelas! Interessa-lhe é que não sabote os governos que o seu país elege; muito menos que lhes vá lançar bombas em cima.

Já vi que você tem a cartilha bem estudada…

Infelizmente, não! Navego muito à vista — ripostou o graffiter, de cenho contristado. — Demasiadas vezes ainda acredito nos noticiários. Mas depois percebo que são eles que nos formatam o entendimento, de tal maneira que aceitamos as maiores desumanidades, só por virem defendidas pelos meios de comunicação. Acha ético que a comunicação social — que devia ser uma força formadora de mentes livres — continue a veicular os sofismas americanos, depois da mentira do Iraque? Uma comunicação alinhada com um dos lados é um ataque à liberdade. É uma agente ativa do encarceramento mundial.

A sua atitude é muito negativa. Quer dizer que não acredita na Liberdade, nem nos meios de comunicação para a defender?

É, é isso mesmo! — assegurou, convicto. — O Wikileaks faz mais pela informação independente e pela liberdade dos povos do que a comunicação social mundial. Só depois das denúncias de Assange, de Snowden e de Manning é que já se vão ouvindo críticas ao presidente americano. Que, atualmente, é um psicótico que está a retirar os Estados Unidos de todos os acordos, a erguer muros em todas as relações internacionais e que usa o garrote económico como arma de submissão dos povos. Em termos de ferocidade, não é melhor do que os outros.

Então, o que significa essa Estátua da Liberdade que você está a pintar?

Como ícone da América, representa aquilo em que ela se transformou. Será uma estátua da liberdade anafada, vingativa, estúpida, de coroa estrelada cor de laranja. O braço em tensão vai exibir a força musculada com que ela e os seus tentáculos se empenham a erguer muros por todo o mundo — um planisfério que vai estender-se por trinta metros desta parede, até se perder além no talude e nos arbustos, supostamente estendendo-se até ao infinito. Este mapa será cruzado em todas as direções por um labirinto de muros, sobre os quais ela vai aplicando intermináveis rolos de arame farpado. Espero que a mensagem seja suficientemente evidente.

Muito bem; vou deixá-lo a terminar a sua obra. Desejo-lhe boas inspirações!

Meia hora depois, numa sala de montagem, Edite dava indicações ao operador para a sequência dos planos da entrevista.

João, tenho agora uma reunião. Mete o áudio da parte inicial, em que ele diz que o Bush matou civis e aquelas cenas do Iraque, mas sobre a imagem da parede ainda repleta de pichagens antigas. Podes meter também a parte do Trump. Não metas o Obama, nem a parte em que critica os noticiários. Acaba com um zoom out dele em cima do escadote, a pintar a imagem da Estátua da Liberdade. Não passes do minuto e meio! A peça vai para o ar perto das 9. 

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto de 2017 foi selecionada para a 4ª edição (janeiro/fevereiro de 2024) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 80 a 83):

https://drive.google.com/file/d/1Pjsw0lKy356144o1kqxLX8jVFItxuQNo/view

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Imagem:

Alguns dos centos de graffitis em um dos centos de muros.

Belém, Cisjordânia, Palestina.

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10/01/2024

Vencido

 


Na distante China, tinha surgido mais um vírus. Como tantas vezes antes. Não costumava chegar cá e, quando chegava, não passava de uma gripe fugaz. Os chineses tinham lá aqueles ambientes insalubres. Víamo-los andar frequentemente de máscara, por causa da poluição, por causa de uma fuga química, por causa de um dos vírus deles.

Agora, pareciam estar bastante aflitos, a fechar cidades e fronteiras, a controlar milhões de pessoas por meios eletrónicos. A mandarem-nas ficar fechadas em casa. O número de infetados começava a ser assustador. E o de mortos parecia irreal. Tudo por causa de um vírus que passara de um morcego para um pangolim, que alguém comera? Esperávamos que conseguissem ultrapassar o problema, que, felizmente, não chegara cá. Nem chegaria — asseguravam-nos.

Era por meados de fevereiro. Manuel Gondim juntou a família para comemorar os seus 76 anos. Era bom ter os mais pequenos na sua festa, brincar com eles. Não tinha preço o enlevo.

Em poucos dias, começou a ouvir-se falar em infetados no Irão, em Itália, em Espanha… «Aqui ao lado? Oh, caraças!» Pelos ditos, era gente que tinha estado na China e viera infetada. Parecia ser meia dúzia de episódios infelizes. A eficácia dos sistemas de saúde ocidentais iria travar a propagação, sem problema — pensava-se.

Começou então a perceber-se que o mundo se tornara um lugar global, no qual as pessoas se deslocavam entre todos os lugares em números astronómicos. Que, enquanto se tratava um doente, muitas outras pessoas já tinham sido contaminadas por ele, sem ninguém perceber. E que, a cada momento, milhares de infetados estavam a contaminar milhares de outras pessoas insuspeitas. E que este vírus não provocava uma gripe vulgar. Estava a matar em números inimagináveis.

Manuel aproveitou uma previsão de uma semana de bom tempo para ir à terra plantar árvores. Agora, de velho, interiorizara a necessidade ambientalista de contribuir para deixar um planeta menos inóspito aos netos. Árvores, oxigénio, humidade, biodiversidade. O quintal era grande; dava para uma vintena de árvores, mesmo separadas por intervalos de seis ou sete metros. Plantou nogueiras, castanheiros, limoeiros, macieiras. Até a bizarria de uma pimenteira. Não se importou com a imagem de velho alquebrado a manejar uma enxada. Só os braços se queixaram. Três dias depois, contemplou aqueles caules frágeis a fazer verdejar meia dúzia de folhinhas, cada. Tinha parecido uma utopia e, afinal, fora tão fácil. Esperava que daí a um ano já tivessem um metro de altura. E daí a cinco anos?

No regresso, as notícias vieram derrubar o seu contentamento: o governo aconselhava isolamento social, dado o perigo de morte de quem fosse contaminado, em idades elevadas. O vírus tinha uma taxa de letalidade de mais de dez por cento, em pessoas acima dos setenta. Fechou-se em casa com a mulher, com a consciência cada vez mais aguda de que sair à rua era uma jogada de roleta russa. Podia-se ir à mercearia em frente e voltar são, ou trazer para casa uma silenciosa sentença de morte.

Foi tentando entreter-se a acabar as dezenas de leituras que deixara a meio e a acompanhar uma ou outra série, mas a apreensão nunca o abandonava. Sabia que o assassino andava lá fora, pronto a apanhá-lo, não tinha dúvidas. Os dados da sua cidade indicavam uma subida constante de infetados que, em pouco tempo, já ia em várias centenas. Quantas outras centenas de infetados andariam já por aí, sem ninguém saber?

O mundo transformara-se na mais aterradora versão de um filme-catástrofe de série B. As imagens das grandes cidades europeias mostravam ruas tão vazias como a sua. Eram vulgares por todo o mundo imagens de filas de caixões, lares de idosos cheios de velhos mortos, sepultamentos em valas comuns. O diabo fora libertado e cobrava corpos com todo o rancor que os livros sagrados afiançavam.

Manuel ia registando os números fornecidos pelas autoridades de saúde, compondo gráficos de progressão, sempre na esperança de notar as curvas vergarem-se ao controlo humano. E observava a limpidez saudável do mapa do seu concelho de origem: sem registo de infetados.

As informações dominantes diziam que toda a gente acabaria por ter contacto com o vírus; a estratégia nacional era defensiva e procurava que esse contacto se desse o mais tarde possível, para que o sistema de saúde fosse mantendo, ao longo do tempo, a capacidade para tratar quem ficasse doente, sem colapsar. A esperança — ténue — era só a de maior disponibilidade de meios de tratamento, não de cura. Não era dada nenhuma garantia de que ele, ou qualquer outro, se salvasse, se só fosse infetado daí a muito tempo. Tudo dependia da capacidade de internamento hospitalar.

A meio de abril, Manuel desabou de desalento: morrera do vírus o escritor Luís Sepúlveda, no mesmo dia em que a limpidez cartográfica do seu concelho fora manchada pelos primeiros infetados. Um choro rouco saiu-lhe da garganta.

Havia que tomar uma posição pessoal sobre a própria vida. Afinal, devia ter medo da morte ou enfrentar a ideia com toda a racionalidade? Não se entregaria, não; se ela o quisesse, teria de vir buscá-lo. Mas também não se importaria de morrer, concluiu, com tristeza. Pensando bem, tivera uma vida boa e razoavelmente longa. A conclusão deu-lhe uma calma que já não tinha havia algum tempo.

Manuel começou a preparar o que ia deixar. Era bom que os herdeiros encontrassem as papeladas organizadas. Iriam agradecer-lhe. Passou a embrenhar-se nos inúmeros papéis que abundavam nas estantes da arrecadação. Tanto papel irrelevante, tanta tralha de que já não se lembrava. Mesmo quando estava bem arrumada em dossiês. Foi enchendo sacos de papelada inútil. Que ia despejar ao papelão, noite adentro, para não encontrar ninguém.

As reflexões desencadeadas pela situação de confinamento social produziram nele algumas alterações subtis. Começou a prestar maior atenção à passarada que, com a menor quantidade de gente nas ruas, passou a fazer festas e concertos nas árvores próximas. Gostava especialmente do canto dos melros, muito mais sociáveis do que eram na sua adolescência rural. E passou a dedicar muito tempo a vê-los caçar no jardim traseiro e a deslocar-se como cães de caça, no típico corre-e-para, a perceber onde está a minhoca, que devem achar saborosa.

Finalmente, os números começaram a abrandar a ferocidade. Claramente, tinha passado o pico da pandemia e começava a falar-se em desconfinamento. Havia que pensar agora na economia. Gradualmente, reabriram barbeiros, restaurantes, escolas, centros comerciais. A normalidade anunciava-se com otimismo. Cortaram-se as florestas capilares, voltou a saborear-se o prato especial no restaurante favorito, os pais de crianças e jovens em idade escolar suspiraram de alívio por voltarem a ter um pouco de sossego em casa.

Manuel Gondim voltou a reunir em casa filhos e netos, no almoço de domingo. Um sentimento de esperança na vida andava no ar. Qualquer dia iria à terra verificar se as suas arvorezinhas se tinham aguentado.

Mas a besta não tinha desaparecido. Mantinha-se alapada em pulmões insuspeitos, manhosa e cobarde. Então, passadas poucas semanas, as notícias davam conta da explosão de vários focos de centenas de infetados por conta, ora de festas ou ajuntamentos com inúmeros convivas fartos de confinamento, ora de lares de idosos que pareciam pegar a infeção como a palha pega fogo. E também por via das condições precárias de transporte das multidões de gentes que tinham de viajar engarrafadas pela madrugada, para compor os cenários de trabalho de camadas de população não tão desfavorecidas. Foi reimposto o isolamento social radical em várias cidades, inclusive, na sua. Nos Estados Unidos e no Brasil, os números descomunais de mortos refletiam o delírio negacionista de matriz evangélica dos presidentes.

Manuel voltou a remeter-se ao exílio caseiro. Uma grande tristeza ia invadindo o seu olhar, enquanto testemunhava o ermo em que voltara a transformar-se a sua rua.

Por inícios de julho, começou a tossir; tosse seca, persistente, não produtiva. Como se tivesse a garganta arranhada. Não valorizou. Quis acreditar que devia ser outra coisa qualquer. Podia ter apanhado um golpe de frio, ao ir de noite à rua. Ou ser uma irritação ao omnipresente álcool-gel. Mesmo que fosse uma constipação… Com o aparecimento de febre, ligou para a linha dedicada à Covid-19. Uma equipa especializada foi fazer-lhe um teste de despiste. Mandaram-no passar a dormir noutro quarto, e que os cônjuges usassem máscara, nos contactos imprescindíveis. Telefonariam com regularidade, para avaliar a evolução.

Continuou a piorar sensivelmente ao longo da noite. No dia seguinte, uma ambulância foi buscá-lo e levou-o para o hospital público — blocos de Covid-19. O teste dera positivo.

«Como? Onde? Quando?» — perguntava-se, revoltado com a cobardia da besta e a injustiça perante o seu imaculado confinamento. Quiseram saber quem o poderia ter infetado. Como saber? Talvez numa das idas à mercearia, apesar da máscara. Ou daquela vez que encontrou um desgraçado a vasculhar o caixote, quando foi despejar lixo.

Manuel estava sozinho, mas percebeu muitos outros doentes, no bloco. Depois da administração dos fármacos que então se considerava darem resultados, embora incertos, a equipa médica percebeu que ele começava a ter dificuldade em respirar e que, se não fosse ligado a um ventilador, corria risco de vida.

Apesar de envolvido por uma neblina de ansiedade e estupefação, sentiu a atrapalhação de médicos e enfermeiros. «Só há um ventilador» — pareceu-lhe perceber da conversa. Lembrou-se então das palavras recentes de um general que, de peito feito, tinha declarado que, em caso de necessidade, abdicaria de um ventilador a favor de um homem com mulher e filhos. Dando a entender que qualquer idoso devia fazer o mesmo.

Era um gesto bonito, um ato digno de ser o último de uma vida. Decidiu-se por ele; sentiu orgulho de si.

Sem tentar reprimir o alagamento dos olhos, conseguiu chamar uma enfermeira e comunicou-lhe a terrível decisão:

Se tiverem alguém mais jovem… — inspirou duas ou três vezes antes de conseguir completar — deem-lhe o ventilador antes a ele.

E deixou cair a cabeça, derrotado, mas sereno.

Não se preocupe, senhor Manuel. Vamos levá-lo para os Cuidados Intensivos onde será devidamente tratado. Há lá muitos ventiladores, com certeza. Vai ficar tudo bem!

Foram as últimas palavras que ouviu, antes de se apagar. O sentimento de fracasso neste último gesto esvaiu-se com ele. Apesar da respiração assistida por um ventilador, não voltou a dar acordo de si. O óbito foi declarado ao fim de dezoito dias.


Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 14ª edição (dezembro de 2023) da Revista Fluxos, em formato e-book (páginas 63 a 65):

https://www.calameo.com/read/0063543785d5f96354244


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Imagem:

Simon Vouet, O Tempo derrotado pelas Esperança e Beleza, 1627.

Museu do Prado, Madrid.

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10/12/2023

Obra de misericórdia

 



Para Duarte, domingo era dia de passeio cultural, fosse qual fosse a disposição de ânimo. Desde que se separara da mulher, podia arrastar-se toda a semana pela casa, de pijama e sem banho, mas, aos domingos, impunha-se arranjar-se e sair. Naquele domingo de início de maio, resolveu ir até Belém e seguir o impulso do momento. Começou por entrar no Centro Cultural de Belém. Percorria a exposição temporária “1968: O Fogo das Ideias”, quando foi interpelado por uma morena muito jovem — de talvez uns trinta e poucos anos — que não reconheceu de imediato:

Duarte! Há quanto tempo! O que tens feito?

Era a sua ex-colega Carla — Carla Souto Mendes, lembrou-se então, — que dera Educação Visual e Tecnológica na EB2/3 da Ramada, onde ele também dera aulas de Português, antes de se reformar. Era bastante magra na altura, o que não impedira alguma atração nunca admitida. Agora estava mais cheiinha, mas com o mesmo penteado liso e comprido. Estava de calças de ganga e uma t-shirt rosa escuro justa. Ao rosto que ele ofereceu para o beijinho, devolveu-lhe ela um abraço de corpo inteiro, a que o seu não ficou indiferente, apesar da idade. Pergunta para cá, lembrança para lá, resolveram pôr a conversa em dia frente a um prato de lulas à lagareiro, no Caniço — um dos muitos restaurantes turísticos da zona.

Reformei-me há seis anos, já com quarenta de serviço, e divorciei-me há cinco — lamentou-se Duarte, de alma aberta como outrora, quando trocavam frustrações profissionais e confidências pessoais. Ambos partilhavam o gosto por policiais e ficção científica e trocavam livros frequentemente. — Tanto tempo em casa, sem nada que fazer, foi um choque a que não conseguimos dar resposta. Agora, vejo filmes e navego na Internet. Hoje apeteceu-me dar uma volta nestes espaços amplos e cheios de gente. E tu? Continuas a dar aulas?

Não... Ainda fui parar dois anos a Lamego, mas, depois, nem isso. Então, agarrei-me àquilo que já fazia, a nível amador: artes plásticas, especialmente, escultura. Fiz uns cursos de especialização no Ar.Co e agora vivo disso; mal, mas vivo. Tive uma exposição individual na Magnum, há quatro meses.

A sério? Fantástico! Vendes bem? E que tipo de coisas fazes? — Duarte desdobrava-se em perguntas.

Vendi umas peças pequenas — vinte, trinta centímetros. Interpretações de Canova, Rodin, Bernini, lúbricas quanto baste. Mas, entretanto, apareceu-me uma encomenda de uma peça para metro e meio. Uma coisa já para uns milhares. Estou na fase final da modelagem.

Metro e meio? Isso não é para pôr na mesinha da entrada!

Não! — riu-se Carla. — É para um recanto romântico do jardim de um palacete, ali para Azeitão. É um novo-ricaço que quer fazer figura.

Qual é o motivo? Uma daquelas donzelas em traje romano a verter uma ânfora? — brincou Duarte, lembrando-se do que costumava ver em jardins com pretensões.

Ah! Posso mostrar-te! Quando sairmos daqui, vamos ali ao Jardim Botânico Tropical. Existe lá uma escultura do século XVIII, com este tema. É a “Caridade Romana”, não sei se conheces.

Com programa agendado, a conversa evoluiu para as lembranças da escola onde ambos tinham dado aulas, das intrigas, das figuras características, dos baldas, dos emproados, dos que tinham voltado a encontrar, ou não, e dos sempre presentes problemas dos professores, que agora já pouco diziam a Carla. Depois dos cafezinhos, ela foi mostrar ao ex-colega a escultura de que tinham falado — um conjunto de duas figuras: um ancião meio desnudado e com as mãos atadas atrás das costas, que, de joelhos, chupava o seio que uma jovem de aspeto nobre lhe oferecia.

Nunca pensei que fosse esta, quando falaste em “Caridade Romana”! Esta conheço eu bem, mas nunca percebi o que representa. Só me lembra um ritual de sadomasoquismo, o que é estranho, assim exposta no relvado de um jardim fechado, mas público.

Também não te sei dizer como veio aqui parar, mas sei que foi feita por um tal Bernardino Ludovice, que também fez peças sacras para a Igreja de S. Roque e esculturas para o Convento de Mafra. Mas não é o arquiteto alemão Ludovice, que fez o convento. Este é italiano e também fez umas peças para a Fonte de Trevi, em Roma.

Mas isto é enorme! Tu consegues esculpir peças deste tamanho, em mármore? — admirou-se Duarte.

Isso é outra história — riu-se Carla. — Eu sou uma escultora da nova geração! Começo por modelar uma versão minha, em barro ou em papier mâché, mas muito mais pequena do que esta. A seguir, encomendo, a uma empresa que já fornece serviços de impressão 3D de grande formato, uma cópia ampliada, em pasta de pó de mármore, camada a camada. Depois da montagem e dos meus retoques finais, um leigo não consegue distinguir a diferença para uma peça trabalhada num bloco de pedra. É a admirável tecnologia moderna!

Caramba, vivemos mesmo em tempos inesperados! Mas, explica-me cá: porque é que esta carcaça de amante tem as mãos amarradas? Que cena perversa é esta, sabes?

Já leste a inscrição? — sorriu-se Carla, maliciosa.

Duarte começou a articular o texto inscrito na face do pedestal que suportava o conjunto escultórico: QVO/NON PENETRAT/AVT QVID/NON EXCOGITAT/PIETAS.

Parece latim, mas não me serve de muito… Já estou esquecido. O que é que isto significa?

Qualquer coisa como: “Aonde não chega a Piedade? O que não concebe ela?” Como quem diz: a Piedade — neste caso, em versão de amor filial —, concebe e alcança o que for preciso.

Filial?

Pois! Por estranho que pareça, esta rapariga é filha deste velho. Ela chama-se Pero e ele Cimon. Como ele estava preso e em risco de morrer de fome, ela, mãe de uma criança de peito, alimentava o próprio pai às escondidas do carcereiro, na visita diária que lhe fazia. A história foi colhida no livro “Factos e ditos memoráveis”, de um tal Valerio Massimo, romano, do século I d.C. O livro contava muitas histórias de vícios e virtudes e foi de lá que também foi tirada a citação do pedestal. Esta história, lendária, tem impressionado muitos artistas ao longo dos tempos. O próprio Rubens fez uma versão. Os antigos romanos ficavam fascinados a olhar para as pinturas com este tema. O caso não era para menos: aquilo que, em condições normais, podia ser considerado perverso e contranatura, era aqui visto como uma virtude, uma obra de misericórdia, “alimentar os famintos” avant la lettre, uma prova de que o amor aos pais era a primeira lei da Natureza, ultrapassava pudores, constrangimentos, ambiguidades.

Como é que tu sabes isso tudo? — interrompeu Duarte, acariciando o ego da amiga.

Faço muita pesquisa. Tento ser profissional. Aliás, foi este conhecimento que seduziu o meu cliente: das várias propostas que lhe apresentei, foi a história desta que o impressionou. E, sabes por quê? Acho que sei por quê: ele tem uma sobrinha, que é quase como uma filha. Tem-na ajudado muito, desde os estudos ao dote para o casamento. Mas acho que ele tem medo de não ser retribuído, se um dia a velhice o fizer precisar dela. A escultura e, sobretudo, o que ela significa, terá essa função de lembrete dos deveres filiais.

Duarte não respondeu de imediato, aparentemente imerso em meditações, enquanto se afastavam calmamente para as sombras frescas de um recanto do jardim. Sentaram-se num tronco da vedação que separava o carreiro público dos canteiros floridos e das sebes de cedros. Por fim, conjeturou:

A mim parece-me mais que ele deve ter alguma paixão assolapada pela afilhada.

Sobrinha!

Isso, sobrinha. Não achas? Não te parece que o homem que encomenda, ou mesmo apenas contempla embevecido, tão estimulante cena de amamentação efabula o quanto ela é sensual, o quanto desejaria — relações familiares à parte — estar ele próprio naquela intimidade física? Eu acho-a de uma sensualidade arrebatadora. Não achas que devia ser por isso que os contemporâneos romanos ficavam babados a olhar para a cena pintada?

Não sabemos. As diversas épocas têm mapas mentais específicos. Podemos pensar que o homem é o mesmo, desde os primitivos Cro-Magnon, que os seus apelos sensuais não diferem muito de época para época, mas não sabemos. No entanto, lendo as obras de Ovídio e os jogos de enganos que homens e mulheres tecem para obter os envolvimentos carnais que procuram, ainda que apenas fantasiados, podemos especular que este é mais um caso de luxúria disfarçada de virtude. Aliás, parece que foram encontrados em Pompeia vários afrescos e terracotas representando este tema. Pompeia! Repara que os Romanos tinham como deus máximo Júpiter, um deus que usava todos os embustes e manhas para se envolver com as deusas e até com as mortais que lhe agradavam.

Claro; é evidente que a componente lúbrica da representação deve ter um papel relevante na sua popularidade.

Pois! É provável que o velho venha a cismar em pôr os lábios nos seios da sobrinha, se não o fantasiou já. E mais: sendo quase certo que a sobrinha, observando a escultura, se reveja nela, é possível que repare no olhar atirado para o alto da jovem representada — uma explícita mensagem para as mulheres, uma evidência de que ela, como qualquer mãe, também tem prazer físico ao amamentar. Que, às vezes, chega bem longe, diz-se à boca pequena. Mas isso é um segredo das mulheres. Por outro lado, se se sentir muito agradecida — e bem sabemos como a dádiva recebida gera complacência, ternura, empatia —, talvez chegue a fantasiar em imitar a escultura: puxar a cabeça do tio para o seu seio, acariciá-lo como um bebé, embalar aquele homem que tem sido tão generoso para ela, há tanto tempo.

Hum! Achas? Que jovem, mesmo sentindo grande empatia, faria isso a um velho tão ou mais passado do que eu? — suspirou Duarte, cuja autoestima, percebia-se bem, já tivera melhores dias.

Sabemos pouco do funcionamento do cérebro, sobretudo quando opera no terreno resvaladiço de uma das mais básicas pulsões do ser humano — a pulsão sexual. Talvez por isso, nem Carla se admirou, nem travou o impulso que sentiu. Soergueu-se, virou-se para o amigo, levantou a t-shirt e encostou um seio ao rosto dele, que segurou entre as mãos. Apanhado de surpresa, Duarte ainda demorou uns segundos a perceber o que lhe estava a acontecer. «O toque, a densidade, a carnalidade de um mamilo! Há quanto tempo!» Nem iria quebrar a magia do momento com exclamações ou perguntas. Agarrou a situação com ambas as mãos mentais, enquanto levantava as físicas para as encher com aquela carne tão dócil e sedosa. Carla, porém, sem deixar de lhe prender a nuca, apertou-lhe o nariz com dois dedos, como se faz aos bebés sôfregos, e sussurrou uma censura terna:

Chh! Com jeitinho!

Duarte não se queixou. Um indigente aceita o que lhe dão. Talvez a pulsão dela não fosse sensual, mas outra mais sofisticada, das que a hormona dos apaixonados e das grávidas — a ocitocina —, desencadeia: apego, empatia, bondade, compaixão. Apenas a boca dele se mostrou uma atenta anfitriã do bico moreno que Carla lhe oferecia, e, mais além, do seu rotundo e marmóreo pedestal, enquanto ela lhe afagava a rala cabeleira, em enlevos de amamentação. “Caridade romana”, suspeitou Duarte, por fim.

Em breve, descobria que há caridades que são verdadeiros tormentos, sem deixarem de ser obras de misericórdia: aquele sorvo vinha salvá-lo da inanição sensorial, mas acicatava-lhe uma carência de anos. Sem tentar ir mais além, tratou de armazenar sensações. Aquela bucha poderia ter de servir de sustento da sua solidão por muito tempo. Quem lhe dera eternizar o momento.

Se fosse tempo de deuses, podia ser que o lúbrico Júpiter, vendo lá do alto tão inspiradora cena carnal, quisesse perpetuá-la em mármore. Retumbando um trovão, podia transformar o par em pedra instantaneamente. E outros casais que passassem depois por aquele recanto do jardim iriam enlevar-se com a elegante sensualidade do novo grupo escultórico em estilo hiper-realista. Valerio Massimo talvez o intitulasse “Caridade lisboeta”.

Mas não. O par saiu do jardim pouco depois: Duarte com o ego recheado de sensações muito vivas, muito presentes; Carla intimamente satisfeita com a magnanimidade da atitude que acabara de tomar e inspirada para afinar o modelo final da sua escultura.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 42ª edição (novembro/dezembro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 85):

https://drive.google.com/file/d/17eHuCBSfBm8MdceDc5oZApqQZcN-tIMv/view

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Outra versão deste conto tinha sido o texto comentado na sessão de agosto de 2020 da comunidade de leitores de Alcains, com a moderação de Elsa Ligeiro, da editora Alma Azul.

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Imagem: Bernardino Ludovice, Caridade Romana, 1737.

Jardim Botânico Tropical, Lisboa.

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10/11/2023

O condutor de rebanhos

 


Um certo pastor de ovelhas foi imortalizado pelo grego Esopo, que contou como ele se divertia a enganar os vizinhos, gritando “Lobo!” sem justificação. De cada vez que gritava, os outros pastores corriam a acudir, em vão. Tantas vezes os enganou que, um dia, vieram os lobos, ele gritou “Lobo"!, mas ninguém o foi ajudar.

Ressabiado com o desaire, vendeu terras e rebanho e foi viver para uma vila distante. Instalou-se num casarão da rua principal — a Alameda Atlântica —, rodeado por outras casas de gente bem instalada na vida, mas com as traseiras para uma rua de casebres humildes — a Rua Terceira.

Neo — assim se chamava o anónimo pastor de Esopo — adotou ali o nome Búfalo Neo, e foi vivendo uma existência tão ou mais monótona do que a que vivia na serra, mas depressa embirrou com um orgulhoso vizinho das traseiras que cultivava tabaco e açúcar. O antigo pastor começou a espalhar rumores de que este vizinho, chamado Habano, tinha amigos arruaceiros de Leste e pretendia trazê-los para as suas plantações. Para manter o bom ambiente da vila, dizia Búfalo, o melhor era que os cidadãos honrados da rua mais nobre se unissem e obrigassem o suburbano a afastar os amigos, para não causarem mau ambiente.

Na verdade, os vizinhos, sem conhecerem o mau-caráter de Búfalo Neo, apoiaram as medidas propostas pelo distinto conterrâneo que denunciara as companhias de Habano. Contra vontade, este desistiu da ajuda de Leste, mas, à cautela, os notáveis da vila decidiram boicotar a sua atividade produtiva. A partir de então, o cultivador não poderia abastecer-se no comércio local, fosse qual fosse o ramo. Nem vender. Esperava-se que o garrote deste embargo económico o levasse a abandonar a vila, e a comunidade pudesse regressar a uma vida tranquila. O desgraçado cultivador gritava “Maldito seja Búfalo”, mas de nada lhe servia.

Passado algum tempo, Búfalo embirrou com outro vizinho. Queixou-se ele às autoridades da vila, de que então já fazia parte, que um tal Golias, arruaceiro contumaz, nas suas palavras, causava muitos incómodos a um outro de boa índole e seu amigo, chamado Moisés, que entretanto chegara à região, mas pretendia instalar-se na propriedade de Golias, com o argumento de que em tempos ali vivera. Búfalo cedo gostou dele, sobretudo porque entrevia a possibilidade de caçar naqueles terrenos sem autorização. Daí a defender as suas pretensões foi um passo. Moisés começara por aceitar ficar num descampado, mas, aos poucos, sentindo que Búfalo o apoiava incondicionalmente, foi ocupando o terreno de Golias, e agora já dizia que a propriedade era toda sua.

A princípio, o conselho local de homens sensatos não apoiou tão estranha reivindicação, mas Búfalo, que vinha a ganhar poder nos negócios da terra (tinha até criado uma organização de cariz mafioso de ajuda musculada mútua chamada Organização para o Tratamento Adequado de Nefastos), foi muito incisivo nas denúncias das reações agressivas de Golias e acabou por levar o seu intento avante. Já não estava em causa a maior ou menor razão de Golias, mas a sua fama de brigão. Decidiu-se manter uma aparente imparcialidade, mas, de cada vez que Golias levantava a voz a reclamar os seus direitos de propriedade, o usurpador agredia-o e clamava por ajuda das autoridades, que emitiam sempre o mesmo discurso: «Moisés tem o direito de se defender». Aos poucos, Moisés, o invasor, foi ficando com cada vez mais propriedade do expropriado Golias, que se viu confinado a um redil e dependente da caridade pública. Só lhe restava bradar “Maldito seja Búfalo”.

Passado mais algum tempo, Búfalo voltou a tomar de ponta um vizinho — Eufrates —, que vivia num terreno barrento, com grandes dificuldades. Não se sabe bem se lhe cobiçou a olaria que administrava, ou se, simplesmente, não gostou da sua postura altiva, o certo é que passou a acusá-lo das maiores infâmias contra os próprios familiares, afirmando que escondia estricnina e outras drogas de destruição maciça com que pretendia envenenar os parentes.

O Grão Conselho, agora já presidido por Búfalo, em vista da gravidade das acusações, resolveu intervir de forma decidida e decisiva, e não de formas mais ou menos mitigadas como anteriormente. Enviou os bombeiros à procura dos venenos. Em vista dos resultados negativos, enviou uma brigada da Proteção Civil, que também veio de mãos a abanar. Já bastante irritado, o Conselho enviou uma força de intervenção da Polícia, com ordens para prender o assassino em potência e encontrar a todo o custo os tão perigosos instrumentos de morte. Os militares avançaram destruindo tudo à passagem e, na confusão criada, o virtual envenenador acabou por ser morto.

Para grande frustração do Conselho, no entanto, não foram encontrados os venenos temíveis. «Eles estão lá», afiançava Búfalo, que comandara pessoalmente a operação. Passaram dias, passaram meses, mas ninguém encontrou qualquer veneno. Os familiares de Eufrates clamavam “Maldito seja Búfalo”, mas, na falta do patriarca, passaram a viver na pobreza, acusando, à boca-cheia, o poderoso ex-pastor de ter inventado tudo para ficar com a olaria, que, em vista das dificuldades, a família teve de vender.

O resultado dramático desta operação de justiça preventiva maliciosa desencadeada por Búfalo Neo suscitou grande constrangimento em todos aqueles que tinham acreditado na veemência das acusações e que, piamente convencidos, tinham apoiado a operação punitiva que veio, ela sim, a revelar-se assassina. À socapa, passaram a referir-se-lhe como Neo Con.

Búfalo pareceu acalmar por algum tempo, mas foi sol de pouca dura. Certo dia, saiu-se com uma nova acusação. Segundo ele, Ming, um outro empresário que tinha há muito uma confeitaria no fim da Alameda do Oriente, estaria a roubar-lhe as receitas dos bolinhos da sorte, pelo que apelava a toda a população para que boicotasse a produção de doçaria do gatuno.

Foi a gota de água que faltava. O povo começou a murmurar, as figuras gradas da terra, escaldadas com o escândalo de Eufrates, e que não queriam conflitos com o poderoso empresário confeiteiro, abriu uma investigação. Enviou uma delegação à serra onde Neo fora pastor, que trouxe a notícia do caso das mentiras que, compulsivamente, lançara e onde era conhecido por Neo Trafulha.

O Grão Conselho reuniu-se de emergência e discutiu o problema de Neo Con, já como caso patológico. Já lhe chamavam Silly Con. Em vista das provas demolidoras, o Conselho percebeu que, para haver concórdia na terra, o intriguista tinha de ser afastado. Depois, mandou emendar a injustiça feita ao cultivador Habano, voltando ele a poder vender os seus produtos na vila; delimitou e atribuiu, por caridade, um bocado de terreno ao alucinado Moisés, apesar do seu comportamento desumano, devolvendo ao injustiçado Golias a maior parte da sua propriedade; obrigou o vigarista a devolver a olaria aos familiares do infortunado Eufrates e a indemnizá-los pelas agressões sofridas, e instituiu o livre comércio em toda a vila, quer de doçaria, quer de quaisquer outros produtos.

Búfalo Neo Trafulha Silly Con, em vista da grave derrota sofrida — em perda de poder, de prestígio, de credibilidade e até de grande parte da fortuna —, achou melhor voltar à antiga atividade de pastor. O seu amigo Moisés, olhado com asco por todos, preferiu ir com ele. “Talvez aprendam humildade com as ovelhas e moderação com o silêncio edificante das serranias”, comentava-se, mas, pode alguém ser quem não é?

Sabe-se, sim, que o vocábulo “trafulha” passou, desde então, a ter o sentido pejorativo que hoje conhecemos e começou a chamar-se Dia das Mentiras ao dia em que Trafulha acusou Eufrates, injustificadamente.

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Este é um final edificante, apropriado para terminar fábulas e nos deixar enternecidos com “a justiça que, apesar de tudo, reina no mundo”, mas, na verdade, o final é ficcional e as óbvias semelhanças na história com países, pessoas, acontecimentos políticos, militares ou geo-estratégicos não tiveram um final minimamente parecido com este, à data desta publicação.

Joaquim Bispo

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Uma versão desta fábula foi selecionada em concurso literário para integrar a coletânea de contos “Esopo Revisitado”, da Editora Olympia, Brasil, 2019.

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Imagem:

Ilustração de “O jovem pastor e o lobo”, fábula de Esopo.

Ilustrador não identificado.

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10/10/2023

Um planeta B

 


— O dinheiro que o Estado já meteu nos bancos, desde a crise de 2008, dava para construir 100 hospitais — atirou Carlos, como quem bate um trunfo na mesa de sueca. — O Público diz que são dezoito mil milhões de euros.

Luís e Carlos costumam encontrar-se no regresso a Odivelas e, ao longo do tempo, criaram uma competição intelectual, para entreter a viagem de metro: ver qual consegue apresentar a notícia mais fantástica. O que também lhes permite ocupar as horas mortas no trabalho com pesquisas e cálculos. Luís dá apoio às fotocopiadoras da biblioteca da Faculdade de Letras e passou a apanhar o amigo Carlos que trabalha na casa de fotocópias da Faculdade de Ciências, no Campo Grande, logo ali.

Catano! 100? Isso é escandaloso! — concedeu Luís.

Se é! Um hospital médio, como o CUF Tejo, custa 180 milhões. Consegues imaginar o volume de dinheiro que representam 100 como ele?

Deve dar para encher de notas até ao teto as salas de supervisão do Banco de Portugal — ironizou Luís.

Eh, eh, acho que mais! Há bocado pus-me a fazer umas contas. Achei que imaginar uma passadeira de notas talvez fornecesse uma imagem elucidativa. Então, pensei num percurso de dezoito mil passinhos de meio metro — tantos quantos os milhões —, o que dá nove quilómetros. Assim, tomando como meta o Terreiro do Paço, os nove quilómetros começam mais ou menos no Lumiar. Agora, imagina, caminharmos calmamente do Lumiar até ao Terreiro do Paço, a um milhão de euros por passada. Um passeio de magnatas desaparafusados! É essa a quantia que o Estado tirou do bolso dos contribuintes para não deixar falir empresas incompetentes. Bancos! Não produzem, fazem negócios gananciosos com o dinheiro que nós lá pomos; e mesmo assim conseguem perdê-lo.

Caramba! Isso é inacreditável! Fomos mesmo endrominados!

Agora, escuta — sorriu-se Carlos, a consultar o telemóvel e a antecipar o efeito do aumento de nitidez da imagem que aí vinha. — Já tens a distância; mas... a espessura da passadeira? Imaginei uma base quadrada, com a amplitude de cada passo — meio metro. E forrada com notas de 500 euros. Sabendo as medidas da nota, cheguei à conclusão que se consegue ladrilhar esse quadrado com 18 notas de 500 euros. Como um milhão são 2000 notas de 500, são precisas 111 camadas para perfazer o milhão de euros… Eis uma imagem que já dá uma ideia da enormidade do escândalo: uma caminhada apoteótica sobre uma fofa passadeira de 111 camadas de notas de 500 euros desde o Lumiar ao Terreiro do Paço...

Cuidado! — exclamou Luís.

Tão absorto ia Carlos, que quase tropeçava numa trotineta elétrica abandonada em frente ao Museu da Cidade. Um pano na fachada indicava que o piso térreo se encontrava encerrado para obras de remodelação.

Se há dez anos me dissessem que andaria agora a tropeçar em trotinetas, dizia ao tresloucado para tomar os comprimidos…

Bem, estou abismado — voltava Luís à conversa. Um milhão por passada é uma imagem incrível.

Mas uma camada de 111 camadas de notas pareceu-me ainda pouco visual. Pensei antes numa única camada. Cheguei então a isto, escuta!: as 111 camadas, lado a lado, são equivalentes à largura de uma autoestrada de 15 faixas de rodagem de 3 metros e meio cada. Desde o Lumiar até ao Terreiro do Paço. Totalmente asfaltada de notas de 500 euros. Já imaginaste 15 faixas de carros em hora de ponta a esfarrapar notas de 500?

Entretanto tinham subido as escadas da estação e posicionavam-se no cais. Havia alguns olhares furtivos e gente a fingir que não estava a ouvir. Luís, percebendo o tamanho da audiência, aumentou ligeiramente o tom de voz:

Uau! Não dá para acreditar! E o vento a levantar farrapos de notas e a levá-los pelo ar até caírem lá longe e apodrecerem durante uma dúzia de anos... — pegava Luís na sugestão. — Apresentado assim, parece ainda mais alucinante.

Como foi possível, não é?

Incrível! Fizeste o trabalho de casa... Agora escuta a minha, que apanhei no Expresso e confirmei na revista científica de origem. Uma equipa de investigadores, que tem estudado o aumento de temperatura dos oceanos, fez cálculos e chegou à conclusão que a energia fornecida aos oceanos pelas atividades humanas, nos últimos 25 anos, é tanta como se tivéssemos feito explodir 3600 milhões de bombas atómicas, iguais à de Hiroxima.

Milhões? — era a vez de Carlos se admirar.

Milhões! — reafirmava Luís. — Três mil e seiscentos milhões.

Fiu! — assobiou Carlos.

Entretanto chegou o comboio, bastante cheio. Era por meados de janeiro de 2020; as pessoas ainda nem sonhavam com as terríveis alterações de vida que um vírus lhes traria, em breve. Arrumaram-se como puderam, envolvidos pela multidão cansada, mas agarrada a telemóveis.

Parece que é o equivalente a bombardear os oceanos com cinco bombas semelhantes à de Hiroxima... por segundo... todos os segundos... 365 dias por ano. Durante 25 anos. Luís martelava os dados com pequenas pausas, para aumentar o efeito.

Heich! Isso é horrível! Como é possível? Bate a minha aos pontos.

Só para Portugal continental, dá mais de 250 bombas atómicas por dia, desde 1995. Fiz as contas.

És sempre o mesmo, Luís! — ouviu-se atrás deles. — Só tu!

Olha o Eugénio! Que é feito?

Há quanto tempo! — saudou Carlos, que também o conhecia do secundário. — Por onde tens andado?

Ajeitaram-se, de modo a ficarem mais próximos.

Eh, pá, em novembro estive na Flat Con, em São Paulo. Aquilo foi fantástico! — desvanecia-se o recém-aparecido.

Flat Com? O que é isso? Imobiliário?

Convenção Terraplanista! Não ouviram falar? Dah! Estive lá de pleno direito. Sou correspondente em Portugal da Federação Mundial da Terra Plana…

Carlos e Luís entreolharam-se. Em volta era possível detetar alguns sorrisos complacentes e uns poucos esgares de desaprovação.

Ok! Já li sobre essa moda — concedeu Carlos. — A Terra é plana, está coberta por uma espécie de cúpula e é limitada por um rebordo de montanhas geladas que impedem que se caia no vazio. Não acreditam nas viagens à Lua, nem em nenhuma das provas tradicionais da esfericidade do nosso planeta. E esse pessoal juntou-se para quê?

Ora, para reforçarmos as nossas convicções e falarmos do futuro. Eu próprio apresentei um projeto — empolgava-se Eugénio, ao perceber o interesse dos amigos. — Já viram esses cartazes todos que estão espalhados por aí, a dizer que não há planeta B? Foram eles que me deram a ideia principal. Não há planeta B? Pois parece-me evidente que há. E a minha ideia pode ser a solução dos nossos problemas e a salvação da Humanidade.

Eugénio calou-se a fazer render a expectativa e a saborear a curiosidade dos amigos, mas estes mantiveram uma atenção sóbria. Em volta apurava-se o ouvido, tentando contrariar o ruído do metro, naquele ponto do trajeto.

A Terra é uma espécie de disco plano e grosso, como uma tarte, não é? Ora, o outro lado do disco o que é senão uma outra Terra plana? O tal planeta B! Claro como água. Só falta descobrir como vamos conseguir passar para lá. Ultrapassando a borda e virando para baixo? Ou furando o chão? De uma maneira ou de outra, quando o conseguirmos temos o problema resolvido.

Carlos e Luís estavam constrangidos. Em volta manifestavam-se sorrisos abertamente.

Um furo parece-me o mais prometedor. Mesmo que a gente não consiga colonizar a outra face… por exemplo, se lá não existir este efeito a que chamam gravidade… nesse caso, o furo pode ser a solução para a subida dos oceanos, se ela for real. Foi a ideia que eu lancei lá na Convenção. Abre-se o furo e esvazia-se o excesso! Lógico, não?

A dois corpos de distância, alguém tentava conter uma gargalhada. Eugénio acusou o toque.

Sempre houve grandes pensadores escarnecidos pelos seus contemporâneos, mas depois tiveram que lhes dar razão — declarou, solene. — Precisamos de um novo paradigma que denuncie a grande fraude com que nos têm enganado e prove a verdade da Terra plana, na sua simplicidade e beleza.

A chegada ao destino não deixou Eugénio continuar. Saiu na Ameixoeira, permitindo a vários passageiros alargarem os sorrisos, mas contristou outros que esperavam mais galhofa. Luís estava incomodado e levantou um pouco a voz, para afastar de si os mais que prováveis preconceitos circundantes.

Isto não era possível antes do Youtube. Pelo menos com esta dimensão. Uma convenção… Os algoritmos, ao apresentarem inúmeros vídeos relacionados com a teoria maluca a que começámos a assistir, fornecem-nos mais e mais a ilusão de que toda a gente está de acordo com ela. É com a Terra plana e é com as milhentas teorias de pseudociência que são visionadas e difundidas sem reflexão, sem verificação, sem racionalidade.

É um falhanço da escola — corroborou Carlos. — Não consegue fixar os ensinamentos transmitidos, muito menos um modo de pensamento racional. As provas da esfericidade da Terra dão-se em Estudo do Meio, no 4º ano do ensino básico. Básico!

Todos os terraplanistas se tornam terraplanistas a ver outros terraplanistas no YouTube — continuou Luís, claramente escandalizado. É a força das imagens, com a sua potência emocional a influenciar o fenómeno cognitivo; e são outros mecanismos psicológicos, sociais e culturais. Muitas vezes, são pessoas com formação, mas a desconfiança em relação ao conhecimento especializado e uma maneira errada de entender o ceticismo leva-as a pôr em causa esteios bem firmados do conhecimento científico. E acabam por se convencer que eles é que pensam com lógica e raciocínio científico.

No Senhor Roubado saiu muita gente. Luís pegou na conversa, mas já em tom de voz normal.

E não vale a pena argumentar com um terraplanista ou outro crédulo desse tipo. Nada os demove do seu erro. Agarram-se à sua ilusão com unhas e dentes; tudo o resto são manipulações da Grande Conspiração Global. Não há paciência!

Eu fico possesso com teorias maradas e notícias falsas. Estou farto de apanhar com imbecilidades, desonestidades, fanatismos no Facebook. Às vezes, só me apetece desamigar toda aquela gente que prefere viver com os neurónios desligados. As pessoas não têm a mínima sensibilidade para detetar a treta, o disparate, a falsidade. Acreditam em tudo!

Não é em tudo. Parece que têm uma preferência por histórias estapafúrdias. Se a história parece inverosímil, é certo e sabido que vai ser partilhada por muita gente. Mas não perdem uns segundos a tentar perceber se é falsa. Eu acho mesmo que, para eles, é irrelevante se é verdadeira ou falsa. Interessa é a espetacularidade. Como se a sua vida fosse tão desinteressante que precisasse de grandes ficções para lhe dar um pouco de animação. De vida real estão eles fartos. Só não os desamigo porque gosto de pensar que, enquanto forem meus “amigos”, posso influenciá-los. Mas acho que não consigo.

Saíram em Odivelas e encaminharam-se para o bairro Codivel, pelo túnel decorado pelo graffiter Styler. As pinturas murais de grande intensidade figurativa, do tema de Alice no País das Maravilhas, ilustravam, oportuna e ironicamente, a nossa grande apetência por mundos fantásticos, maravilhosos e mágicos.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 41ª edição (setembro/outubro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 87 a 90):


https://drive.google.com/file/d/1wPLcRgJ6Fq-QxtODn9PNxe_rxtrJ6xkR/view


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Imagem: Styler, Alice no País das Maravilhas (pormenor do Gato de Cheshire), 2016–2017.

Odivelas.

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