10/10/2023

Um planeta B

 


— O dinheiro que o Estado já meteu nos bancos, desde a crise de 2008, dava para construir 100 hospitais — atirou Carlos, como quem bate um trunfo na mesa de sueca. — O Público diz que são dezoito mil milhões de euros.

Luís e Carlos costumam encontrar-se no regresso a Odivelas e, ao longo do tempo, criaram uma competição intelectual, para entreter a viagem de metro: ver qual consegue apresentar a notícia mais fantástica. O que também lhes permite ocupar as horas mortas no trabalho com pesquisas e cálculos. Luís dá apoio às fotocopiadoras da biblioteca da Faculdade de Letras e passou a apanhar o amigo Carlos que trabalha na casa de fotocópias da Faculdade de Ciências, no Campo Grande, logo ali.

Catano! 100? Isso é escandaloso! — concedeu Luís.

Se é! Um hospital médio, como o CUF Tejo, custa 180 milhões. Consegues imaginar o volume de dinheiro que representam 100 como ele?

Deve dar para encher de notas até ao teto as salas de supervisão do Banco de Portugal — ironizou Luís.

Eh, eh, acho que mais! Há bocado pus-me a fazer umas contas. Achei que imaginar uma passadeira de notas talvez fornecesse uma imagem elucidativa. Então, pensei num percurso de dezoito mil passinhos de meio metro — tantos quantos os milhões —, o que dá nove quilómetros. Assim, tomando como meta o Terreiro do Paço, os nove quilómetros começam mais ou menos no Lumiar. Agora, imagina, caminharmos calmamente do Lumiar até ao Terreiro do Paço, a um milhão de euros por passada. Um passeio de magnatas desaparafusados! É essa a quantia que o Estado tirou do bolso dos contribuintes para não deixar falir empresas incompetentes. Bancos! Não produzem, fazem negócios gananciosos com o dinheiro que nós lá pomos; e mesmo assim conseguem perdê-lo.

Caramba! Isso é inacreditável! Fomos mesmo endrominados!

Agora, escuta — sorriu-se Carlos, a consultar o telemóvel e a antecipar o efeito do aumento de nitidez da imagem que aí vinha. — Já tens a distância; mas... a espessura da passadeira? Imaginei uma base quadrada, com a amplitude de cada passo — meio metro. E forrada com notas de 500 euros. Sabendo as medidas da nota, cheguei à conclusão que se consegue ladrilhar esse quadrado com 18 notas de 500 euros. Como um milhão são 2000 notas de 500, são precisas 111 camadas para perfazer o milhão de euros… Eis uma imagem que já dá uma ideia da enormidade do escândalo: uma caminhada apoteótica sobre uma fofa passadeira de 111 camadas de notas de 500 euros desde o Lumiar ao Terreiro do Paço...

Cuidado! — exclamou Luís.

Tão absorto ia Carlos, que quase tropeçava numa trotineta elétrica abandonada em frente ao Museu da Cidade. Um pano na fachada indicava que o piso térreo se encontrava encerrado para obras de remodelação.

Se há dez anos me dissessem que andaria agora a tropeçar em trotinetas, dizia ao tresloucado para tomar os comprimidos…

Bem, estou abismado — voltava Luís à conversa. Um milhão por passada é uma imagem incrível.

Mas uma camada de 111 camadas de notas pareceu-me ainda pouco visual. Pensei antes numa única camada. Cheguei então a isto, escuta!: as 111 camadas, lado a lado, são equivalentes à largura de uma autoestrada de 15 faixas de rodagem de 3 metros e meio cada. Desde o Lumiar até ao Terreiro do Paço. Totalmente asfaltada de notas de 500 euros. Já imaginaste 15 faixas de carros em hora de ponta a esfarrapar notas de 500?

Entretanto tinham subido as escadas da estação e posicionavam-se no cais. Havia alguns olhares furtivos e gente a fingir que não estava a ouvir. Luís, percebendo o tamanho da audiência, aumentou ligeiramente o tom de voz:

Uau! Não dá para acreditar! E o vento a levantar farrapos de notas e a levá-los pelo ar até caírem lá longe e apodrecerem durante uma dúzia de anos... — pegava Luís na sugestão. — Apresentado assim, parece ainda mais alucinante.

Como foi possível, não é?

Incrível! Fizeste o trabalho de casa... Agora escuta a minha, que apanhei no Expresso e confirmei na revista científica de origem. Uma equipa de investigadores, que tem estudado o aumento de temperatura dos oceanos, fez cálculos e chegou à conclusão que a energia fornecida aos oceanos pelas atividades humanas, nos últimos 25 anos, é tanta como se tivéssemos feito explodir 3600 milhões de bombas atómicas, iguais à de Hiroxima.

Milhões? — era a vez de Carlos se admirar.

Milhões! — reafirmava Luís. — Três mil e seiscentos milhões.

Fiu! — assobiou Carlos.

Entretanto chegou o comboio, bastante cheio. Era por meados de janeiro de 2020; as pessoas ainda nem sonhavam com as terríveis alterações de vida que um vírus lhes traria, em breve. Arrumaram-se como puderam, envolvidos pela multidão cansada, mas agarrada a telemóveis.

Parece que é o equivalente a bombardear os oceanos com cinco bombas semelhantes à de Hiroxima... por segundo... todos os segundos... 365 dias por ano. Durante 25 anos. Luís martelava os dados com pequenas pausas, para aumentar o efeito.

Heich! Isso é horrível! Como é possível? Bate a minha aos pontos.

Só para Portugal continental, dá mais de 250 bombas atómicas por dia, desde 1995. Fiz as contas.

És sempre o mesmo, Luís! — ouviu-se atrás deles. — Só tu!

Olha o Eugénio! Que é feito?

Há quanto tempo! — saudou Carlos, que também o conhecia do secundário. — Por onde tens andado?

Ajeitaram-se, de modo a ficarem mais próximos.

Eh, pá, em novembro estive na Flat Con, em São Paulo. Aquilo foi fantástico! — desvanecia-se o recém-aparecido.

Flat Com? O que é isso? Imobiliário?

Convenção Terraplanista! Não ouviram falar? Dah! Estive lá de pleno direito. Sou correspondente em Portugal da Federação Mundial da Terra Plana…

Carlos e Luís entreolharam-se. Em volta era possível detetar alguns sorrisos complacentes e uns poucos esgares de desaprovação.

Ok! Já li sobre essa moda — concedeu Carlos. — A Terra é plana, está coberta por uma espécie de cúpula e é limitada por um rebordo de montanhas geladas que impedem que se caia no vazio. Não acreditam nas viagens à Lua, nem em nenhuma das provas tradicionais da esfericidade do nosso planeta. E esse pessoal juntou-se para quê?

Ora, para reforçarmos as nossas convicções e falarmos do futuro. Eu próprio apresentei um projeto — empolgava-se Eugénio, ao perceber o interesse dos amigos. — Já viram esses cartazes todos que estão espalhados por aí, a dizer que não há planeta B? Foram eles que me deram a ideia principal. Não há planeta B? Pois parece-me evidente que há. E a minha ideia pode ser a solução dos nossos problemas e a salvação da Humanidade.

Eugénio calou-se a fazer render a expectativa e a saborear a curiosidade dos amigos, mas estes mantiveram uma atenção sóbria. Em volta apurava-se o ouvido, tentando contrariar o ruído do metro, naquele ponto do trajeto.

A Terra é uma espécie de disco plano e grosso, como uma tarte, não é? Ora, o outro lado do disco o que é senão uma outra Terra plana? O tal planeta B! Claro como água. Só falta descobrir como vamos conseguir passar para lá. Ultrapassando a borda e virando para baixo? Ou furando o chão? De uma maneira ou de outra, quando o conseguirmos temos o problema resolvido.

Carlos e Luís estavam constrangidos. Em volta manifestavam-se sorrisos abertamente.

Um furo parece-me o mais prometedor. Mesmo que a gente não consiga colonizar a outra face… por exemplo, se lá não existir este efeito a que chamam gravidade… nesse caso, o furo pode ser a solução para a subida dos oceanos, se ela for real. Foi a ideia que eu lancei lá na Convenção. Abre-se o furo e esvazia-se o excesso! Lógico, não?

A dois corpos de distância, alguém tentava conter uma gargalhada. Eugénio acusou o toque.

Sempre houve grandes pensadores escarnecidos pelos seus contemporâneos, mas depois tiveram que lhes dar razão — declarou, solene. — Precisamos de um novo paradigma que denuncie a grande fraude com que nos têm enganado e prove a verdade da Terra plana, na sua simplicidade e beleza.

A chegada ao destino não deixou Eugénio continuar. Saiu na Ameixoeira, permitindo a vários passageiros alargarem os sorrisos, mas contristou outros que esperavam mais galhofa. Luís estava incomodado e levantou um pouco a voz, para afastar de si os mais que prováveis preconceitos circundantes.

Isto não era possível antes do Youtube. Pelo menos com esta dimensão. Uma convenção… Os algoritmos, ao apresentarem inúmeros vídeos relacionados com a teoria maluca a que começámos a assistir, fornecem-nos mais e mais a ilusão de que toda a gente está de acordo com ela. É com a Terra plana e é com as milhentas teorias de pseudociência que são visionadas e difundidas sem reflexão, sem verificação, sem racionalidade.

É um falhanço da escola — corroborou Carlos. — Não consegue fixar os ensinamentos transmitidos, muito menos um modo de pensamento racional. As provas da esfericidade da Terra dão-se em Estudo do Meio, no 4º ano do ensino básico. Básico!

Todos os terraplanistas se tornam terraplanistas a ver outros terraplanistas no YouTube — continuou Luís, claramente escandalizado. É a força das imagens, com a sua potência emocional a influenciar o fenómeno cognitivo; e são outros mecanismos psicológicos, sociais e culturais. Muitas vezes, são pessoas com formação, mas a desconfiança em relação ao conhecimento especializado e uma maneira errada de entender o ceticismo leva-as a pôr em causa esteios bem firmados do conhecimento científico. E acabam por se convencer que eles é que pensam com lógica e raciocínio científico.

No Senhor Roubado saiu muita gente. Luís pegou na conversa, mas já em tom de voz normal.

E não vale a pena argumentar com um terraplanista ou outro crédulo desse tipo. Nada os demove do seu erro. Agarram-se à sua ilusão com unhas e dentes; tudo o resto são manipulações da Grande Conspiração Global. Não há paciência!

Eu fico possesso com teorias maradas e notícias falsas. Estou farto de apanhar com imbecilidades, desonestidades, fanatismos no Facebook. Às vezes, só me apetece desamigar toda aquela gente que prefere viver com os neurónios desligados. As pessoas não têm a mínima sensibilidade para detetar a treta, o disparate, a falsidade. Acreditam em tudo!

Não é em tudo. Parece que têm uma preferência por histórias estapafúrdias. Se a história parece inverosímil, é certo e sabido que vai ser partilhada por muita gente. Mas não perdem uns segundos a tentar perceber se é falsa. Eu acho mesmo que, para eles, é irrelevante se é verdadeira ou falsa. Interessa é a espetacularidade. Como se a sua vida fosse tão desinteressante que precisasse de grandes ficções para lhe dar um pouco de animação. De vida real estão eles fartos. Só não os desamigo porque gosto de pensar que, enquanto forem meus “amigos”, posso influenciá-los. Mas acho que não consigo.

Saíram em Odivelas e encaminharam-se para o bairro Codivel, pelo túnel decorado pelo graffiter Styler. As pinturas murais de grande intensidade figurativa, do tema de Alice no País das Maravilhas, ilustravam, oportuna e ironicamente, a nossa grande apetência por mundos fantásticos, maravilhosos e mágicos.

Joaquim Bispo

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Uma versão reduzida deste conto foi selecionada para a 41ª edição (setembro/outubro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 87 a 90):


https://drive.google.com/file/d/1wPLcRgJ6Fq-QxtODn9PNxe_rxtrJ6xkR/view


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Imagem: Styler, Alice no País das Maravilhas (pormenor do Gato de Cheshire), 2016–2017.

Odivelas.

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10/09/2023

Os vertiginosos dias de uma escritora diletante

 

Quando a inspiração chegou, a escritora ainda dormia. Eram nove horas de sábado.

Keravnós, o muso relutante, já estava habituado a escritores. Com o seu ar vagamente monástico, a fazer lembrar Afonso Cruz, sentou-se num cadeirão de canto e esperou. Eram quase onze horas quando a escritora apareceu, mole e olheirenta, e foi logo para o computador.

Estás com pica para escrever?

Ah, que susto! — sobressaltou-se a escritora. — Olá! Sim, mas primeiro vou enviar uns mails, ver as notícias e consultar as entradas no meu site. É só uns minutos.

Três quartos de hora depois, o muso voltou à carga, com bonomia:

E agora, podemos começar?

Ó pá, deixa-me só enviar mais uns mails.

Mas não tinhas já enviado?

Já te expliquei que eu envio mails de divulgação do meu último conto publicado para milhares de endereços. E não posso enviá-los todos logo, porque o sistema só permite cem de cada vez. E também há um limite diário. Aguenta um pouco!

O muso respeitou o envio de mais um pacote de divulgação. Logo depois:

Porque é que não publicas um livro e já evitas esse trabalhão?

Keravnó, as editoras não querem saber dos meus contos. É por isso que optei pela divulgação virtual.

...vnós, Keravnós! — corrigiu o muso. — Se calhar, é porque não prestam… Comercialmente falando, claro!

Ó caríssimo transportador da inspiração — matraqueou a escritora —, eu não preciso de sarcasmos desses! Mas Vossa Senhoria pode atirá-los à vontade, sabe porquê? Porque os meus contos estão fartos de ser reconhecidos em dezenas de concursos literários. Concursos não mentem.

Achas? Queres dizer que comprovam que os teus contos têm qualidade?

Quero acreditar que sim. Só que as editoras não arriscam. Se eu fosse uma figura pública era mais fácil. E também podia pagar uma edição, mas as editoras depois querem que seja o escritor a vender os livros aos amigos. E isso eu não quero. Prefiro enviar-lhes os contos de graça.

Já pensaste em desistir?

O gozo que me dá escrever não tem igual. Sobretudo, saber que sou lida. Desistir está fora de questão. As novas tecnologias permitem-me contornar a barreira entre escritor e leitor que as editoras, paradoxalmente, significam. Obtenho cerca de duzentas, trezentas entradas em cada conto. Tomaram muitos livros ter esta saída!

Dá-te gozo escrever ou ser adulada? Imagina que enviavas os mails e ninguém te ia ler!

A escritora baixou a cabeça, pensativa.

Aí, não sei! Agora não quero pensar nisso. Vou fazer uma pausa para almoço.

Mas quando é que tu escreves?

Tenho tempo. Só quando tiver a história toda articulada na cabeça.

Ok! Mas toma atenção que não és o centro do mundo; tenho muita gente à espera; cada vez mais…


Pelas duas da tarde, Keravnós voltou à carga:

É agora?

Oh, agora estou mole. Deixa-me fazer uma pausa para ver a minha série. Depois falamos: mas primeiro vou enviar mais cem mails.

Hora e meia depois:

E agora?

Oh, que chato! Tá bem… Eh, pá, mas hoje não dá muito jeito. Tenho que escolher o conto para um concurso que termina depois de amanhã.

Isso é rápido, não?

Nem por isso. Tenho de ver que número de páginas pedem, se o tema é livre ou não. E, sobretudo, se exigem ineditismo. Se não exigirem, tenho muitas dezenas de contos; já inéditos são menos de vinte. Depois de escolhido, tenho de o voltar a ler com atenção. Há sempre coisinhas para alterar. Olha, porque é que não voltas amanhã? Aí víamos isso com calma.

Vê lá se não te arrependes…


No dia seguinte, às nove da manhã, Keravnós apresentou-se ao serviço. Instalou-se no cadeirão que já conhecia e entreteve-se a folhear a Odisseia que estava por ali. A olheirenta e desgrenhada escritora apareceu pelas onze e meia.

Bom dia! — cumprimentou o muso em tom festivo.

Ai, que parvo! Não me apareças assim.

Vamos à obra?

Já te disse: a primeira coisa é enviar mails, depois ver quantas entradas tive no meu site, depois mais mails, depois almoço, depois série. Depois… O que não falta são tarefas: responder a quem me comentou, pesquisar concursos... Ó pá, hoje não dá. Tenho de publicar um conto num site coletivo. Já sei que conto vou publicar, mas tenho de revê-lo mais uma vez e escolher uma imagem adequada para o ilustrar, geralmente, uma pintura. Volta amanhã, se te der jeito! Mas só depois das sete, que amanhã é dia de trabalho.

Amanhã não sei se posso, mas diz-me ao menos que tema pensas tratar. Também tenho de me preparar!

Não desarmas; és incrível! Quero falar sobre a situação especial da mulher; da sua traiçoeira condição física, digamos assim. Há dias, pensando nisso, surgiu-me a ideia geral do tema: “enfrentar o mundo com uma vagina”. Não sei de onde me veio a ideia.

Keravnós sorriu subtilmente.

E é tudo?

Tenho vindo a desenvolver a ideia. De “enfrentar” adveio-me a ideia de confronto, guerra, armas. E de como o espírito agressivo do homem macho se alimenta da testosterona e da imagem potente do pénis. Para o homem, o esplendor do seu pénis ereto só é comparável à majestade de uma espada refulgente erguida em glória. Ora o equivalente “feminino” da espada é… a bainha. “Enfrentar o mundo com uma bainha” deverá ser o título, para não ser tão sexualmente explícito.

Interessante! É por causa dessa ideia que andas a ler a Odisseia?

Sim, como é que suspeitaste? Lembrei-me da Penélope. Em que outra mulher famosa é tão evidente a impotência física feminina, perante a ausência da espada do marido? O que pode ela fazer com uma bainha? Pode muito, mas não numa lógica de confronto e violência. Terá de ser através da suavidade e da astúcia: a arma dos “fracos”. E é a astúcia que Penélope vai usar. Mas amanhã falamos melhor. Tens tempo?

Se já sabes o que vais escrever, escuso de cá vir…

Tens de vir! Entre esta ideia, que nem sinopse é, e uma história intensa e luminosa há uma multidão de aspetos a criar e a articular. Vá lá! Não me abandones agora. Preciso de um início que desperte curiosidade imediata, de uma trama com peripécias engenhosas, mas verosímeis, de um clímax intenso e de um final surpreendente e inspirador.

Vamos a ver... Às seis da tarde tenho uma miúda talentosa do Norte, que está agora cheia de pica. Talvez ela se despache! Senão, começa sem mim! Pelo menos, podes continuar a ler a Odisseia. A pesquisa dá sempre bons resultados.


Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos 20 selecionados no concurso literário do Motus — Movimento Literário Digital, da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e integra — páginas 35 a 38 — o número #3 da revista digital Motus de outubro de 2019.

https://issuu.com/motus-unipampa/docs/motus3

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Imagem: Aaron Shikler, Mulher lendo, 1922.

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10/08/2023

A Grande Extinção

 

O sol iniciava o percurso descendente sobre a área predominantemente agrícola que será conhecida, sessenta e cinco milhões de anos depois, por Lourinhã e se estende bem para dentro do espaço que será mar no futuro. Em todos os ninhos urbanos terminaram já as diligências alimentares do período zenital, exceto no ninho de Albbano. Alddina mantinha quentes as fatias de ovos de anquilossauro com caules tenros de rhynia, enquanto, inquieta, espreitava o caminho, na esperança da chegada iminente do companheiro. A certo momento, resolveu pedir ajuda ao filho de ambos, através do comunicador.

Não te preocupes, mãe. Assim que o encontrar, aviso-te — sossegou-a ele.

Alccino transpôs rapidamente a distância até à exploração pecuária do pai. Com o olhar percorreu as suaves ondulações cobertas de polipódios, onde pastavam pachorrentamente uma dúzia de torossauros. Não viu a silhueta altiva do pai, um parassaurolofo corpulento, mas um pouco dobrado pela idade. Entrou na chocadeira central, e os funcionários disseram que ficara abatido quando soubera de mais três eclosões goradas.

Após um tempo de caminhada atenta pela vertente da ladeira, alcançou o alto da colina. Cheiros adocicados embebiam-no. Por momentos, abstraiu-se do que o trouxera ali. Olhou a toda a volta. Para norte, a vista admirável e querida do seu Vale Fetal, com o verde de vários matizes a colorir a distância até à vertente oposta e mais além. Para sul, a dois vales de distância, as manchas redondas e ocres dos ninhos urbanos da povoação. Mais perto, os vales dos vizinhos e amigos Esppinos e as suas explorações pecuárias de alamossauros, os enormes herbívoros ternos e pachorrentos. Seria possível que o pai tivesse vindo visitar os amigos?

Veio-lhe à memória outro episódio de há muitos anos, quando uma epidemia lhe matara dezenas de animais. Nessa altura, foram descobri-lo amodorrado numa enorme rocha lisa virada ao sol do oeste, de onde se avistava o mar e aonde só se chegava por uma vereda.

Também agora foi encontrar o pai alapado na Pedra do Poente em grande prostração. A crista, habitualmente alaranjada, era agora cinzento-esverdeada. Não parecia ferido, só abatido. Aproximou-se suavemente. Queria ajudá-lo, não invadir a sua privacidade.

Então, pai! Estás aqui! Estávamos a ficar preocupados...

Não obteve reação. Albbano mantinha um olhar de enorme tristeza perdido na lonjura.

Não fiques assim, pai! — disse Alccino cheio de ternura. — São só mais três ovos gorados. Já aconteceu muitas vezes.

Alccino comunicou com a mãe a sossegá-la e continuou a tentar animar o pai, com argumentos racionais. Finalmente, Albbano começou a falar em voz baixa, pausadamente.

Não são só mais três ovos gorados, filho, nem só mais um animal morto! Nós estamos a extinguir-nos. O ambiente está envenenado com os compostos de irídio que servem para tudo. As crias não conseguem romper a casca. Está cada vez mais dura e inquebrável. E não é só com os animais. Como já te contei algumas vezes, para tu nasceres houve que quebrar a casca artificialmente. Nós, os parassaurolofos, praticamente já só nascemos de crustatomia. Se não fossem os cuidados obstétricos, desaparecíamos. O panorama geral é preocupante. As crias não conseguem romper a casca, os ovos não são fertilizados, as populações de todas as espécies estão a diminuir a um ritmo assustador. Todos os anos desaparecem muitas espécies para sempre.

Calou-se, por momentos, a ganhar alento. Alccino respeitou o silêncio do idoso.

A destruição da vida no planeta, tal como a conhecemos, está a tomar proporções gigantescas. Dantes, além, avistava-se o tremeluzir da superfície do mar. Agora, o que se vê são reflexos de objetos a flutuar. Mantas de lixo a cobrir enormes áreas de oceano. Há quanto tempo lá não vais? É triste, deprimente, apetece não voltar lá mais. Como nos deixámos chegar a esta situação? Estamos mesmo em perigo, acredita!

Fez uma pausa, a rememorar, a organizar leituras.

Eu vou-me informando, sabes! Já houve outras épocas da Terra com indícios semelhantes e que resultaram em enormes extinções. A maior foi há 185 milhões de anos, que fez desaparecer 96% das espécies marinhas e 70% das terrestres. Devido à gravíssima situação que atravessamos, os cientistas já falam na Extinção em massa do Cretácico, a época atual, ou a Quinta Extinção. Estão registadas cerca de oitocentas espécies que se extinguiram nos últimos quinhentos anos, mas, como a maioria não está documentada, os cientistas calculam que é mais provável que se tenham extinguido entre vinte mil e dois milhões de espécies, só no último século. E, tendo em conta os limites do conhecimento atual, a taxa anual de extinção pode chegar às 140.000 espécies. Estamos no limiar da catástrofe.

Alccino agachou-se, abatido pela força terrível dos números.

Mas, pai — reagiu —, não são só teorias malucas de tipos que veem um mosquito e lhes parece um alamossauro? É que eu nunca ouvi falar disso…

Não, Alcci, quem afirma que a extinção atual é um facto são cientistas conceituados entre os seus pares. Dão conferências, mostram dados, mas parece que ninguém os ouve. E dizem mais; dizem que somos nós — a espécie dominante —, que estamos a provocar a extinção em curso. Com a caça intensiva, a introdução de organismos perigosos para os nativos, a destruição dos ambientes naturais, a desflorestação, a sobreexploração agrícola, a poluição, o envenenamento com agrotóxicos e hormonas pecuárias. Infelizmente, o que está na raiz de todos estes problemas é o crescimento populacional contínuo da nossa espécie e o consequente superconsumo. Já viste que os animais, sobretudo os grandes, não têm áreas onde possam viver em liberdade? O planeta está praticamente todo ocupado por nós...

Mas sempre houve espécies a desaparecer de maneira, digamos, natural…

Sim, só que com a nossa ação, a que alguns também chamam natural, mas de extensão e intensidade avassaladoras, a perda de biodiversidade é dez a cem vezes mais rápida. E seremos nós que acabaremos por pagar um preço demasiado alto, pela rápida diminuição do único conjunto de vida que conhecemos no Universo. Ficaremos sozinhos. Sem a concorrência que vencemos, extinguimo-nos também. Foi uma má opção termos dado ouvidos ao venerado texto que nos aconselhou a multiplicar-nos e a prevalecer sobre todos os outros companheiros de viagem desta nave cósmica.

Isso não pode ser assim tão dramático, pai. Nós somos a espécie mais bem sucedida de toda a história do planeta...

Este sucesso começa a parecer demasiado catastrófico. Quando deteriorarmos o planeta a um nível irreversível, seremos nós a extinguir-nos. Ironicamente, essa pode ser a solução para o planeta e para a vida que restar: livrar-se de nós.

Albbano calou-se. Pai e filho mantiveram-se pensativos ainda por algum tempo. Talvez por ter desabafado, Albbano começou a sentir-se com forças para regressar. Em passos brandos, porque anoitecia e a vereda podia ser traiçoeira, dirigiram-se para o ninho, em silêncio. Por cima do horizonte, ia nascendo o cometa, que, havia semanas, iluminava as noites em todo o mundo, fazendo os agourentos predizer desgraças iminentes. A majestosa cauda ocupava já boa parte do lado nascente do céu. Caminhar para aquele esplendor celeste não atenuava a sombra de preocupação com a saúde do pai com que Alccino vinha a cismar.

Alddina recebeu-os ainda apreensiva, mas já calma. Depois de uma refeição ligeira, Albbano aninhou-se. Alccino chamou a mãe e agacharam-se a conversar.

Mãe, o pai não está bem. Fez-me uma conversa completamente alucinada. Só fala em fim do mundo e em catástrofes. Temos de o levar ao cuidador mental.

O olhos de Alddina humedeceram. Em esgar, pronunciou:

Já há algum tempo me tinha apercebido de que algo não estava bem, mas não queria admitir. Deve ser excesso de trabalho. Meu querido Albba!

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos selecionados para a 40ª edição (julho/agosto de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 92 a 95):

https://drive.google.com/file/d/1G4TeTsjwPjDlu8mb5xDhUbiNF-TyToIY/view

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Imagem: Parassaurolofo. Da Internet.

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10/07/2023

Na Praia do Osso da Baleia

 


Naquela altura, praticávamos geocaching, para tornar o exercício ciclista mais motivador. Ir à procura das caixinhas escondidas em locais aprazíveis, ou só curiosos, através da sua localização GPS, obrigava-nos a pedalar para chegar aos locais indicados no respetivo site da Internet, mas sem a carga de exercício físico obrigatório que o andar de bicicleta tinha tido até então. Isto, porque pedalávamos, quase diariamente, uma dezena de quilómetros, não tanto pelo gosto, mas para manter alguma forma física, aconselhável a um casal sexagenário.

Naqueles dias de férias, a nossa base era a Praia de Vieira de Leiria, uma localidade muito animada, em época de veraneio, mas que naquele meado de um setembro invulgarmente nebuloso, mesmo para aquelas paragens litorais, perdera parte do bulício habitual. No primeiro dia, fomos à procura de uma cache escondida junto ao parque de campismo da Praia de Pedrogão. Era um pequeno tupperware com um boneco pokemon e um caderninho minúsculo — coisa de miúdos. Assinámos: “Rolling biker 56” o meu nickname e “Fiftie Agnes” o da minha companheira Inês.

No dia seguinte, fomos para sul, para encontrar, junto ao farol de São Pedro de Moel, num buraco da falésia em que pescadores amadores se empoleiram para lançar as linhas ao mar, uma caixa de VHS com três florinhas secas e um pequeno texto: «Este farol chamado “do Penedo da Saudade” foi construído no promontório onde, segundo a lenda, a duquesa D. Juliana Máxima de Faro, dona destas terras, vinha, através destas flores chamadas “Saudades” e que só aqui crescem, relembrar o marido, mandado executar pelo rei D. João IV, por traição, no século XVII.» Assinámos também o registo, conforme a norma.

No terceiro dia, rumámos a norte, para a zona da Lagoa da Ervedeira zona bonita e ainda arborizada, felizmente poupada aos grandes incêndios de 2017. Não foi fácil encontrar a cache escondida num pinhal, uns quilómetros depois. Até aonde a vista alcançava, a paisagem, que acompanhava a ondulação arenosa do solo, era um mar lúgubre de pinheiros queimados, com os seus braços negros e nus pedindo clemência. Com eles, ardeu, provavelmente, a caixinha que procurávamos. Decidimos que só podia ser um resíduo plástico calcinado que encontrámos no local que as coordenadas GPS indicavam, junto a um tronco queimado. Como passava pouco das três da tarde, resolvemos continuar para uma cache escondida na Praia do Osso da Baleia, a uns doze quilómetros, segundo indicava o GPS.

Pedalar com um objetivo definido é bem mais fácil do que fazê-lo para cumprir um número de quilómetros vagamente combinado. Como, além disso, as autarquias dotaram toda aquela zona costeira de ciclovias ao longo das estradas principais, o nosso exercício podia ser um passeio aprazível, apesar do céu nublado; infelizmente, o aspeto desolador da paisagem acabrunhava-nos. Os pinheiros, já de si retorcidos por ação dos ventos marítimos, assim reduzidos a troncos negros sugeriam formas espectrais inquietantes. Pedalávamos calados, de olhos no ecrã de GPS, lançando olhares apreensivos à multidão tétrica e torturada que nos envolvia.

Entretanto, lembrámo-nos do crime horrendo que aconteceu naquela mesma praia há uns trinta anos, em que um tipo, aparentemente normal e integrado, matou a mulher, a filha e mais cinco amigos com quem estava a confraternizar na praia. O que fará alguém enlouquecer de um momento para o outro? Que transtorno mental invadirá o cérebro de uma pessoa e a fará não reconhecer os seus próximos, ou, reconhecendo-os, odiá-los ao ponto de os matar à machadada? Ainda que incomodados com a evocação, decidimos que não havia, atualmente, nenhum motivo para evitar aquela praia e falhar o nosso objetivo.

A Praia do Osso da Baleia não tem uma povoação associada, não tem um restaurante nem um bar, nada. Pelos vistos, não passa daquela enorme extensão de areia, na altura, nevoenta, apoiada por um pequeno parque de estacionamento, então, deserto. O GPS fez-nos subir a duna baixa que nos separava da praia e caminhar uns trezentos metros para sul, mas nada havia ali, além de areia, naquela base de duna a cem metros da água. No entanto, o localizador por satélite era claro: «Chegou ao seu destino!».

Depois de uma inspeção mais atenta, descobri uma pequena ponta negra a emergir da areia. Ali comecei a escavar com o canivete suíço, que anda sempre comigo. Não tardou que embatesse em algo rígido, que retiniu. Parecia um antigo frasco de compota ou de azeitonas e estava enterrado no que poderiam ter sido os restos de uma fogueira. Olhámo-nos sem dizer nada, a apreensão no olhar.

O interior era visível e mostrava apenas o que parecia uma pequena placa óssea. Abrimos o frasco e percebemos que a placa estava esgrafitada. Consegui ler: «Nós que aqui estamos», de um lado e «por vós esperamos», do outro.

O choque destas palavras tão simples, mas tão simbólicas, que aparecem escritas em cemitérios e “alminhas” um pouco por todo o país, foi brutal. Naquele momento, por coincidência, correu uma brisa fria e pareceu-nos que o nevoeiro se adensou. A Inês recuou dois ou três passos, o olhar em pânico. Eu larguei aqueles objetos, como se queimassem, a tentar racionalizar. «Que raio! Quem teria feito uma maldade destas? Brincadeira estúpida!»

Quero ir-me embora — articulou, por fim, Inês.

Estúpidos! — resmunguei eu, enquanto pegava no braço dela e nos encaminhávamos para a estrada.

Na parte norte da praia, avistámos a vaga imagem de um grupo de seis ou sete pessoas, que pareciam sentadas e reunidas em círculo, talvez à volta do início de uma fogueira. Não as tínhamos visto ao chegar, mas aquela visão de normalidade reconfortou-nos. Ver membros da nossa espécie num local inóspito transmite-nos um sentimento de segurança, de solidariedade potencial. Passou-me pela cabeça, momentaneamente, a ideia de nos aquecermos um pouco, antes de partirmos, porque a temperatura tinha caído fortemente. Uns metros andados, pareceu-nos que olhavam para nós. Para quebrar o desconforto, acenei-lhes. Não responderam.

Quero-me ir embora! — acentuou Inês.

Tem calma!; está tudo bem — tentei eu sossegá-la, mas pouco convencido.

Nesse momento, levantaram-se dois ou três vultos e começaram a dirigir-se para nós.

Calma! Não dês a entender que tens medo — disse eu, para travar a minha parceira que apressara muito o passo.

Entretanto, calculava distâncias, apesar do nevoeiro cada vez mais cerrado. Nós estaríamos a duzentos metros da passagem da duna, mais cinquenta até às bicicletas. Eles estariam a uns trezentos metros da passagem da duna. Com passo ligeiro chegaríamos antes deles, sem problema. Além disso, não tínhamos razões para temer ameaças vindas daquelas silhuetas, embora escuras. Era só uma questão de prudência. O homem pode ser a salvação de outro homem, mas também pode ser a sua perdição. E, em locais ermos, uma pequena diferença de força ou de número pode transformar os homens em predadores brutais. Impregnados de “selva”.

Nessa altura, levantou-se vento vindo de norte. Empurrava-os a eles e travava-nos a nós. Procurei conter o pânico, mas Inês já tentava correr, sem grande êxito. Chegámos à passagem, quando os três desconhecidos, com os outros mais atrás, já pareciam demasiado próximos, mas sem conseguirmos distinguir-lhes as feições. Então, já gesticulavam e gritavam. Ou assim parecia, por causa do vento.

Corremos para as bicicletas e arrancámos, desvairados, Inês à frente e eu, sem olhar para trás, concentrado na pedalada. Durante aqueles metros iniciais de inércia da bicicleta, ouvi distintamente as pancadas dos pés deles, em corrida, mesmo atrás de mim.

Acelera, Inês — gritei, apavorado. — Se me apanharem, foge tu!

Eu sabia que lhe apetecia gritar e chorar, mas aguentou uma pedalada vigorosa, durante centenas de metros, demonstrando um sangue-frio notável. Aos poucos, para minha grande surpresa, as passadas pesadas dos nossos perseguidores deixaram de se notar. Ouvia-se só o som soprado do vento nos troncos calcinados, a abafar o ruído “textural” dos pneus no asfalto vermelho. Olhei, enfim, para trás, mas só discerni o trilho deserto da ciclovia. Talvez uma hora depois, estávamos no quarto do hotel.

Raramente voltámos a falar daquele anoitecer na Praia do Osso da Baleia. Não sabemos o que vimos ou o que pensámos que vimos. Não faço ideia do que veria, mas tenho para mim, que, se naqueles momentos iniciais da fuga me tivesse distraído um momento a olhar para trás, não estaria aqui para contar.


Joaquim Bispo


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Por seleção em concurso literário, este conto integra (páginas 112 a 114) a coletânea MIRAGE — Miscelânea de Narrativas Irreais, do projeto “Delírios” do coletivo editor Coverge, Curitiba, Brasil:


https://pt.scribd.com/document/409016246/Mirage-Miscelanea-de-Narrativas-Irreais


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Imagem: Iberê Camargo, Ciclistas, 1989.

Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, Brasil.


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10/06/2023

Cioccolato


Este relato começa quase no final da volta que Roberto Gama costuma dar pelo hipermercado local, ao fim da tarde, arrastando o cesto de plástico com rodas que vai fazendo o troc-troc típico no piso de mosaicos. A certo momento, conferiu o que já levava: uma piza pré-cozinhada em forno de lenha, um frasco de azeitonas, leite, tostas, nêsperas... Para esse dia, chegava, mas, antes de se dirigir às caixas de pagamento, era altura de passar pelos corredores onde gostava de se apropriar de algum bem facilmente escamoteável: uma embalagem de fatias de presunto; uma caixa de preservativos; uma escova de dentes — tudo mercadorias achatadas e leves. Desta vez, escolheu um chocolate de leite de uma marca conhecida e, com a destreza do hábito, meteu-o por dentro da camisa previamente forrada de papel de alumínio, por causa da deteção eletrónica.

Como se percebe, esta prática a que ele chamava “taxa de cliente frequente” era mais um jogo lúdico e rebelde que lhe vinha da adolescência do que uma manha de falsário. Agradava-lhe uma certa tensão que sempre experimentava e gostava de pensar que introduzia uma minúscula, mas real, reposição de justiça de tipo “Robin Hood” nas relações comerciais que os magnatas das mercearias impõem ao grande público. Mas sempre sem exagerar, não se desse o caso de ser apanhado. Dirigia-se já para as caixas, quando deu de caras com uma antiga namorada no corredor das conservas.

Roby! Que surpresa! — quase gritou ela, ao vê-lo. — Moras por aqui?

Olá! Há quanto tempo! — exteriorizou também Roberto, em luta mental para se lembrar do nome da amiga. — Moro ali na Arroja. E tu?

Moro em Loures. Vim à Loja do Cidadão e acabei por entrar aqui no Super.

Que interessante! Não nos vemos desde quando?

Eu sei lá… Para aí há dez anos. Eu devia ter uns vinte e cinco! Casaste?

Não; e tu? Na altura foste atrás dum tipo mais velho…

Não, não correu bem. Continuo solteirinha e boa rapariga… Nem sempre por opção… — riu-se com a graça da queixa.

Nesse momento, Roberto lembrou-se da tablete de chocolate. Desconfiou que tinha amolecido. Era natural; havia já um bocado que estava próxima do calor do corpo. Ainda mais em junho

Olha, eu preciso de ir à casa de banho. Ainda vais fazer mais compras?

Não, só levo aqui uma lasanha, para logo; e achei barata esta garrafa de vodka.

A passagem pela caixa não foi tão rápida como convinha a Roberto. A dupla tensão fez os seus estragos — começou a sentir nitidamente uma massa pastosa a escorrer-lhe pelo umbigo.

Depois de saírem, o problema já não parecia tão grave; só um pouco constrangedor. Prosseguiram a conversa pelos corredores do centro comercial, em direção ao parque de estacionamento.

Roby; quem havia de dizer que te encontrava aqui! Lembras-te que nos conhecemos também num centro comercial? E tu não eras de modas… convidaste-me logo para ir ao teu quarto.

Bons tempos! As paródias que a gente fazia…

Tu eras muito maluco! Daquela vez que querias no elevador!

Do elevador não me lembro; mas quando fomos apanhados no provador da Zara? — Roberto riu-se com gosto, relembrando o episódio. «Tinham sido tempos realmente desvairados. Como é que ela se chamava?»

Ela também se riu, comprazida com as recordações. Praticamente, saltitava ao seu lado. Para ele, estas lembranças estavam a piorar sensivelmente a situação. Fechou um pouco o riso quando sentiu que a pasta de chocolate estava cada vez mais fluida e vencera a resistência do cinto na cintura. A invasão das zonas íntimas não era completamente desagradável, mas não era o momento... De qualquer modo, tinha de se livrar rapidamente da companhia, para poder compor-se. «Mas, com esta conversa, não é o momento...»

E as experiências que tu inventavas… Uma vez arranjaste ovos cozidos… Outra, chantili… Lambuzámos o lençol todo. “Ganda” bodeguice!

Olha se tivesse sido chocolate!

Hum! Cioccolato! — o trejeito de deleite indicava que a sonoridade da língua italiana lhe trazia boas emoções. Sou doida por cioccolato. Era o que devias ter arranjado... Até o lambia...

Sabe-se que os mais brilhantes homens perdem parte da capacidade racional quando as funções cerebrais responsáveis pelo pensamento lógico são atordoadas pelas emoções. De um momento para o outro, Roberto deixou de se preocupar com a tablete liquefeita que descia pelo seu corpo e vislumbrou uma promessa de resto de dia como antigamente. E, antes que o córtex pré-frontal retomasse o comando, saiu-lhe da boca o convite:

Lá em casa tenho cioccolato

Maroto! E é bom o teu cioccolato? — perguntou ela, em tom insinuante.

Do melhor. Suíço! — abriu-se Roberto em sorriso. — Vou só ali à casa de banho.

Aproximavam-se das casas de banho e da escada rolante para o estacionamento, quando a jovem reparou que as pessoas se viravam à passagem deles. Viu então que Roberto tinha os sapatos manchados e ia deixando um rasto de pingos castanhos. Estacou e encarou-o, em pedido mudo de explicações.

É chocolate! — respondeu ele, confrangido, mas o esgar no rosto dela afastando-se indicava que não tinha sido convincente.

Olha! Olha! Amiga! Eu posso explicar — lançou ainda Roberto, ignorando os olhares de censura que o cercavam.

Regina! — respondeu a rapariga, virando o rosto sem abrandar o passo.


Joaquim Bispo


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Por seleção em concurso literário, este conto integra a antologia “Doçaria Cristal” — páginas 48 a 50 — da Editora Jogo de Palavras:

https://www.jogodepalavras.com/antologias

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Imagem: Mel Ramos, Virnaburger, 1965.

Museu Coleção Berardo, Lisboa.

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