10/05/2023

Um crime suburbano

 

Não é um feito de que me orgulhe, mas tenho de confessar: eu apanho coisas no lixo. De vez em quando, percebo que uma peça interessante está poisada junto a algum dos grupos de caixotes que estão distribuídos um pouco por todo o bairro. Já trouxe para casa uma pequena mesa de apoio de sofá, uma prateleira para frascos de especiarias, uma moldura de madeira trabalhada e pintada de castanho, mas, geralmente só apanho livros. Apesar de poucas pessoas os comprarem, vão aparecendo livros, geralmente escolares, junto aos caixotes.

Esta história começa há uns quatro meses, em uma das minhas voltas de caminhada e exploração, que, invariavelmente, tentam percorrer itinerários menos habituais, quando encontrei uma caixa de cartão com livros, junto a uns caixotes de lixo no “Bairro dos Sinistrados”. Tinham todos capa preta e eram da mesma coleção de especulação paracientífica, área que agora me interessa pouco, mas que fez sucesso nas décadas de 70 e 80. Percorrendo os títulos, acabei por me agradar de “Os arquivos do insólito”. No meio deles, uma agenda de 2007, de tamanho próximo do dos livros — menor que o A4 —, que aparentemente tinha sido usada como diário. Movido por uma curiosidade voyeurista, acabei por a trazer para casa, também.

Era uma dessas agendas com umas quantas folhas iniciais de informações supostamente úteis, como a conversão entre as medidas inglesas e as do sistema métrico, as distâncias quilométricas entre cidades europeias, os feriados municipais de dezenas de concelhos portugueses, os cálculos de volumes de sólidos simples, e outras irrelevâncias de uso incerto. O resto apresentava três dias por página e estava parcialmente manuscrito. Havia muitos dias em branco, mas o espaço de outros estava aproveitado até às margens, em letra tanto mais pequena quanto o autor percebia que tinha mais para dizer do que o espaço disponível. Havia mesmo dias que invadiam o espaço dos seguintes.

A letra era relativamente bem desenhada e fui lendo as observações do quotidiano de alguém que, aparentemente, vivia de apanhar e vender metal, além de explorar uma horta urbana clandestina. Nada de especialmente movimentado ou excitante, mas, a certa altura, o relato terminava abruptamente e percebia-se que a folha seguinte tinha sido rasgada pela base. Caramba! Este pormenor acicatou-me mais a curiosidade do que o facto de ter encontrado a agenda. Teria a folha sido rasgada por conter alguma peripécia comprometedora ou o autor do diário tinha simplesmente precisado dela para escrever um recado? A curiosidade era grande, mas nada podia fazer.

Nada podia fazer em estado de vigília, mas, quando acordei na manhã seguinte, o trabalho do meu espírito, enquanto dormia, deu frutos. Lembrei-me de ter visto num filme, talvez policial, uma situação semelhante em que o protagonista tinha conseguido reconstituir o que tinha sido escrito, pela análise laboriosa dos sulcos produzidos nas folhas adjacentes pela pressão da ponta da esferográfica na folha arrancada. Inclinando a página seguinte, percebi a existência desses sulcos. O principal estava provado; a técnica para conseguir ler os ditos sulcos fui buscá-la à Internet. Após uma semana de trabalho paciente e meticuloso — polvilhamento com pó de café, meia-linha a meia-linha, aplicação de luz rasante, fotografia de alto contraste —, consegui reconstituir todo o texto desaparecido, que tinha ocupado as duas faces da folha. Aplicar a técnica à folha anterior e já escrita foi mais delicado e moroso, mas no fim consegui ler tudo.

Fiquei alarmado. Realmente, havia razões muito fortes para o autor do diário tentar esconder o que tinha acontecido naquele dia. Tão grave era a situação que a primeira coisa que me ocorreu foi ir à Polícia denunciar o autor, fosse ele quem fosse. Algo, no entanto, me levou a enveredar por uma investigação pessoal: talvez o medo de me expor como testemunha; talvez a necessidade de ocupar os dias de uma reforma monótona. Primeiro, havia que caracterizar o autor do diário e eventual criminoso, pela análise ponderada dos seus escritos. Acompanhem-me nessa análise e avaliem também que tipo de pessoa é esta.


23 de março

Gosto do cheiro das manhãs, da luz limpa e verdadeira do sol nascente. De manhã sou mais eu, mais o jovem que dormia de janela aberta para receber os primeiros raios refletidos no Mar da Palha. Fumava um cigarro a contemplar os alvores rubros em luta contra a neblina do rio, o fumo do meu cigarro a evolar-se pachorrento, como os indolentes vapores da fábrica da farinha que ronronava todo o dia e onde eu trabalhei dez anos. Se fosse dia de folga, voltava a deitar-me para mais umas horas de sono. Uma manhã — maldita seja —, o rubro não era o do astro da vida, era o do génio da morte. A minha fábrica, o meu ganha-pão, era uma garra de fumo negro a esganar o meu futuro e o dos outros operários. Por detrás, o diabo em cabriolas de chamas por entre as máquinas, a cortar tapetes de transporte de grão, a derreter alcatruzes e roldanas, a comer o pão de todos. No momento, ainda suspeitei dos homens de negro de cuja existência os meus livros me avisavam, o que me pareceu que era corroborado pelas luzes estranhas que por vezes via pairar sobre o mouchão, mas não descortinei as suas sinistras silhuetas a assegurarem-se que o mal feito se cumpria na totalidade. Nunca mais lá voltei.

Hoje, o céu estava assim vermelho, potente. Ao pé da escola de baixo estava uma máquina de roupa. Arranquei-lhe o tambor e umas seis peças que consegui cortar, com a mesma raiva de há vinte anos.


2 de abril

Marteladas, o raio que os parta! Quem é que eles pensam que são? Têm a mania que são aristocratas, por afocinharem no gargalo da mini ao fim da tarde na esplanada do café do Sr. Manel. Estes tipos veem-me andar ao cobre, ao latão e ao alumínio e pensam que sou um tipo qualquer, que me podem tratar de qualquer maneira. Não sabem nada de mim, em que ofícios trabalhei, como me realizo, o que sou. Não lhes passa pela cabeça as coisas que eu sei. Nunca viram a minha estante de livros… Devem pensar que Heisenberg é um corredor de automóveis. Não sabem quem é, muito menos o que disse.

«Ó, Marteladas, bebe aqui uma mini, que pago eu.» — grasnou um, de olhinhos apertados pelo prazer do deboche, a querer mais caçoar do que oferecer.

«Marteladas deve ser aquilo que tu já não dás há muito tempo» — foi a minha resposta pronta. Tenho pouca vontade de servir de chacota aos outros, muito menos de tipos que não merecem respeito.

Veio para mim com ar agastado: «Mas, ouve lá, é assim que agradeces? Tu não te enxergas.» Dei-lhe um empurrão que o fez estatelar no chão de mármore, a garrafa a escaqueirar-se e o líquido a espalhar-se. «Quem não se enxerga és tu, que deves estar bêbado desde ontem. Vai mas é beijar o rabo ao teu patrão.» Levantou-se de um salto, os olhos muito abertos a correr para mim, mas eu só levantei o martelo. Hesitou, a ver a questão de outra perspetiva, a olhar para os parceiros a ver se tinha apoio. Só grunhiram uns resmungos de apaziguamento. Já todos me conhecem… Se fosse preciso, tinha a navalha.


8 de abril

Entrou um rato na horta. Não foi nenhum cão, não foi uma rabanada de vento. Foi alguém que entrou lá deliberadamente para roubar. Destorceu o arame que tenho na porta, andou a cheirar e arrancou duas couves. Podia simplesmente tirar umas folhas, mas não. Esta gente não sabe nada de nada. Veem as couves inteiras no supermercado e acham que é assim que se colhem. Estúpidos.


10 de abril

Foi um dia para esquecer. Dei voltas e voltas, cheguei a ir aos Pombais, mas só encontrei umas calhas de estore. Tive de fazer uma saída à noite. A mulher na telenovela a querer saber aonde ia. Por acaso eu chateio-a por ela estar sempre a ver televisão? Felizmente, tenho os meus livros e o escritório. À noite são as novelas, de manhã são aqueles vendedores de rifas. Interessa-lhes lá a música de qualidade ou a formação de cidadania; só querem que se telefone para os sorteios deles, pagando, claro. Deve haver umas centenas de milhares de estúpidos que telefonam todos os dias e não fazem as contas ao que gastam. Se calhar, já ultrapassa o prémio. Creem na sorte e não nas probabilidades. Uma hipótese em duzentas ou quinhentas mil? Parvos.

Só achei mais umas caçarolas e um escadote partido. Não gosto de sair à noite, porque não se pode estar a fazer barulho com o martelo.


13 de abril

Este ano vou plantar morangueiros e espinafres. Aos poucos, vou tendo de tudo. É incrível como um espaço de uns 40 metros quadrados dá tanta coisa: batatas, couves, alfaces, tomates, cenouras, cebolas, alhos, favas, beringelas, feijão grande. Fica caro comprar as ferramentas, as sementes, o adubo — quando encontro, prefiro comprar estrume; é mais natural. Se fôssemos contabilizar o trabalho, então… Mas sei o que como. Parece que me sabe melhor. As batatas têm um sabor que não tem nada a ver com as do super. E passar ali umas horas a tratar das plantas não tem preço. São tão generosas. Se as pessoas tivessem metade da generosidade das plantas…

A primeira horta que arranjei era lá em baixo, ao pé da ribeira. Já lá vão uns anos valentes. O espaço estava baldio e eu precisava de ganhar alguma coisa. Ou, pelo menos, de não gastar. E de ocupar o tempo. Nessa altura estava com subsídio de desemprego e tive de me desenrascar. Pareceu-me que poupar nas compras era uma espécie de complemento do subsídio. E era. Cheguei a ter três macieiras, uma pereira, um pessegueiro, uma ameixieira. Para nós dava. Ou tinha de dar. Passei a ir ao super só para comprar arroz e massa. E alguns enlatados. Mas depois quiseram melhorar o trânsito e fizeram para ali uns viadutos e umas rotundas e usaram o terreno à vontade deles. Enfiaram um pilar mesmo no meio da horta. Tive de procurar outro local. Aqui ao pé de mim tinham andado a mexer na ribeira, quando rasgaram uma rotunda, e deixaram uns espaços que davam umas leiras estreitas e inclinadas. Vedei uma tira com canas, aos poucos endireitei o terreno e criei um ponto firme na berma da ribeira para tirar água. Desloquei para lá uma arca congeladora velha, para fazer de tanque, e uns bidões de plástico. Quando tenho mais tempo, encho tudo. E rego quando é preciso. É quase como se tivesse água canalizada.

O que eu sinto é que aquilo dá-me trabalho, mas tiro de lá compensação mais do que suficiente. De víveres e de serenidade. Quando posso tirar. Porque esta noite o rato voltou e levou as beringelas todas: umas cinco ou seis. Andava a olhar para elas, à espera de ficarem maduras, para fritar às rodelas… Fiquei fulo. Que tipo de pessoa se vem aproveitar do trabalho de outro em seu proveito? Bem, qualquer um. Vivemos numa sociedade podre. Se apanho o ratinho…


16 de abril

Dia de entrega de material. O fulano de Torres Novas apareceu logo às 8 e meia. Só queria dar 50 cêntimos, o quilo, pelo alumínio, 2 euros pelo latão e 3 pelo cobre. Ferro, nem vê-lo. Isto cada vez está pior. Argumentava que as poucas coisas que eu juntei mal davam para a deslocação, porque tinha de pagar o gasóleo, os pórticos e as portagens.

Pouca coisa, para ele, que a mim bem me custou catar peça a peça. E cortá-las aos bocados, de modo a caberem nos bidões. Tinha quatro de ferro, dois de alumínio e meio com coisas de latão e de cobre. Acabou por subir um bocadinho e levou também o ferro. Tudo junto, pouco passou dos 150 euros. Enfim. Podia ser melhor, mas bom jeito dá. Com o que poupo com a horta, vai ajudando a esticar as reformas. E mortinhos que os do Governo andam para lhes meterem a unha.

Ninguém imagina a economia que representa a reciclagem de metal puro, em vez de ser extraído do minério. Ninguém suspeita que se economiza mais de 90% da energia elétrica que seria utilizada na produção do metal a partir da bauxita, li num artigo. Se fizessem as contas à energia que o país poupa ao reciclar os metais que nós, os coletores de sucatas, fornecemos, talvez nos dessem mais valor. É preciso é acabar com os que geram mais prejuízos que poupanças, esses que vão pelos campos de zonas pouco habitadas e desmontam centenas ou quilómetros de cabos de cobre — o “bife do lombo” dos metais —, quer da rede telefónica, quer da de distribuição de energia elétrica. E que roubam tudo o que aparece, desde floreiras e estátuas nos cemitérios, até esculturas, em praças ou rotundas, algumas com centenas de quilos. Vendem por umas dezenas de euros o que pode ter custado milhares. Não tenho nenhum respeito por essa gente. Olham para os trocos no bolso deles, não olham para o mal que fazem. O património artístico não lhes diz nada. Vivem para quê? Em dias fracos, quantas vezes olhei para os puxadores de cobre de algumas portas, mas seria preciso eu estar muito desvairado. Não, comigo não.


Aqui terminavam as páginas escritas. Só transcrevi as que me pareceu que melhor caracterizavam o autor, ao qual podemos chamar Marteladas, à falta de um nome. O que se segue é o texto recuperado, o tal que, aparentemente, o nosso homem quis esconder.


28 de abril

Se calhar, não devia escrever isto, mas preciso de desabafar. Nos últimos dias, houve três assaltos à minha horta. Ontem, depois de a ver patinhada, destruído um alfobre de alfaces e roubadas mais três couves e umas duas dúzias de cenouras, decidi-me. Quem rouba tais quantidades não é para comer, deve ser para vender. Arranjei um banquinho e um cobertor escuro e, à noite, instalei-me na horta, num nicho de canas que improvisei. Pelas duas da manhã, já estava arrependido. Achei que precisava de saber primeiro se o rato vinha à noite ou de manhãzinha. Estava quase a decidir regressar a casa e acolher-me ao quentinho da cama, quando ouvi um restolhar na vereda que dá acesso à horta. O meu coração partiu para uma prova de velocidade. Até tive medo que o barulho que fazia denunciasse a minha presença. Então, vi a sombra de um homem que, cautelosamente, destorceu o arame da porta e entrou quase sem ruído. Pela silhueta, parecia o tipo a quem eu dera um empurrão na esplanada do Sr. Manel. Sacana! Não era por fome, era por vingança. Senti um afrontamento no pescoço. Tentei dominar a raiva. Peguei, silenciosamente, no sacho que tinha posto à mão, disposto a dar uma coça no intruso. Na minha horta não entrava um ratoneiro impunemente. O ratinho olhou, a orientar-se no escuro e, fiado na vedação de canas, acendeu uma lanterna de bolso, mas não consegui divisar-lhe as feições. Momentos depois, já tinha cortado uma couve com uma navalha de bolso. Antes que cortasse outra, saí de trás das canas a gritar. O tipo assustou-se, mas depois cresceu para mim, com a navalha e a lanterna a encandear-me. Estava a ver o caso mal parado. Felizmente, o cabo do sacho era muito mais comprido do que o da navalha dele. Puxei-o de trás de mim, numa rotação lateral acelerada em direção à luz. Ouvi um som abafado e senti que o movimento foi travado por alguma coisa pouco rija e, imediatamente, apenas o escuro, a lanterna no meio das canas, o vulto do malandro a esmagar o canteiro das cebolas. Totalmente aturdido com a rapidez dos acontecimentos, mantive-me em pé, alerta não sei para quê. Passado um tempo que me pareceu infindo, tomei finalmente consciência plena do que acontecera. E da situação melindrosa em que me colocara. Baixei-me a apalpar o vulto caído, mas, pela brecha na cabeça, logo percebi que o irremediável estava feito. O calor de pouco antes deu lugar a um frio intenso. Perigo era o que sentia. Era preciso atuar rapidamente. Desfazer-me do corpo. Atirá-lo à ribeira, escondê-lo, desmanchá-lo. Na escuridão, percebi as manchas claras dos bidões e da arca congeladora. Esta era quase do tamanho do corpo. Não tentei provar a mim mesmo que era a melhor solução. Era uma solução.

As duas horas seguintes foram de trabalho esforçado. Afastei a arca e cavei uma cova suficiente para o corpo. Não a afundei mais que uns 60 centímetros, porque depois havia rocha. Para já, chegava. Arrastei para lá o corpo, tapei-o bem e arrastei a arca para o sítio dela, por cima do corpo. A terra que sobrou espalhei-a nas zonas pisoteadas e aumentei o cômoro das couves.

Voltei para casa, mas não consegui dormir. Nem ontem, nem hoje. São quatro da manhã e estou tão desperto como se tivesse dormido oito horas. Oiço um melro que não para com a cantoria. E só imagino coisas. Lembrei-me outra vez dos homens de negro. A cor negra do pássaro não é por acaso. Deve ser um sinal deles. Será que eles viram tudo? Não sei o que fazer.

*

Caramba! Tinha pensado em inúmeras situações que podiam ter obrigado o Marteladas a desfazer-se de uma folha do diário, desde roubos inconfessáveis, até maroteiras lúbricas, mas nunca suspeitei que ia encontrar um crime de sangue. Era disso que se tratava, sem dúvida. E tudo indicava que, apesar de alguns aspetos delirantes, o Marteladas era um indivíduo imputável. Tinha de ir à Polícia. Estava certo de que, apesar de não dispor da folha de diário original, facilmente conseguiria que a Polícia se interessasse pelo provável homicídio perpetrado por ele.

Chamem-me a mim delirante, se quiserem, mas, por um momento, tive medo de uma improvável construção ficcional do Marteladas. Um lampejo fez-me temer que aquela mente desvairada tivesse arquitetado um episódio excitante na monotonia da sua vida. Recobrei rapidamente o bom senso e afastei a apreensão de um possível ridículo ao perceber que, nesta hipótese, fazia pouco sentido a folha arrancada. Ainda assim, antes de ir à Polícia, resolvi obter maiores certezas. Sabia da existência de algumas referências — o “Bairro dos Sinistrados”, as hortas junto à rotunda, o café do Sr. Manel —, e foi por este que comecei: se conhecia alguém com a alcunha de Marteladas e se se lembrava de um recontro dele com outros clientes, uns anos atrás.

Oh, esse já está engavetado há muito tempo. Então o senhor não se lembra? O tipo matou um desgraçado que ia à horta dele apanhar qualquer coisa para comer, em vez de andar aos caixotes. Coitado!

Inesperada, é o que posso dizer desta revelação. Andava eu com tantos pruridos, com tantas cautelas e, afinal, já estava tudo resolvido.

Ah, sim? Sabe, eu moro aqui há poucos anos. E como é que o apanharam?

Parece que foi ele que se entregou. Eu não sei bem a história, mas acho que foi isso que veio nos jornais.

Isto também não me pareceu normal. Todos os criminosos tentam esconder o crime para salvarem a pele e este entregou-se? Pelo Sr. Manel soube onde era a casa do Marteladas — que, vim a saber, se chamava Francisco Gomes —, onde a mulher continua a viver e para lá me dirigi, um pouco sem pensar.

A mulher recebeu-me com a típica farda das donas de casa — uma bata às florinhas miúdas. Sem nunca referir a questão do diário, apresentei-me como um conhecido do marido, dizendo que nos encontrávamos por aí, quando também eu andava ao metal, mas que tinha estado fora uns anos e que só agora tinha sabido da prisão dele.

Ele nunca lhe falou no Esteves?

Fez que não. Se desconfiou, não o manifestou. Mandou-me entrar, “para as vizinhas não darem fé”, e, às minhas perguntas orientadas, foi informando que o marido, depois de ter morto o homem, andava alterado.

E eu sem saber porquê. Não dormia, estava sempre irritado, achava que andava a ser vigiado. O que, pelos vistos, era verdade.

Ah, sim? — incitei.

Pois! A certa altura, recebeu uma carta anónima com insinuações sobre algo que essa pessoa sabia. O meu marido ficou desvairado. Tudo o que ele suspeitava se confirmava. Ficou muito tempo a pensar, tão impaciente que eu não lhe podia dizer nada. Andou a remexer nos papéis dele, a rasgar coisas. Depois foi à horta, mas não se demorou. Dias depois, outra carta. Era a confirmação da chantagem. Exigia cinco mil euros, senão denunciava-o à Polícia, sem nunca explicar o que sabia.

E, então, pagou? — perguntei genuinamente curioso.

O meu marido tinha lá cinco mil euros para dar assim! Se calhar, até arranjava, se pedisse uns adiantamentos, sei lá! Mas resolveu não pagar. Sabe, ele era muito reto. Isto que lhe estavam a fazer era tudo o que representava podridão para ele. Então, resolveu ir à Polícia com as cartas do chantagista, sem eu saber que era para se entregar. Não quis que a barafunda fosse aqui em casa.

Esta revelação não me apanhou completamente desprevenido. Pelo que tinha lido no diário, pareceu-me que ele tinha uma espécie de ética pessoal.

Em que prisão é que ele está?

Está em Pinheiro da Cruz. Mas acho que não fica lá muito tempo. Ele apanhou oito anos; já vê, a coisa não foi premeditada, aconteceu, e teve a atenuante de se ter entregado. Quando foi preso, foi um grande choque para mim, que não sabia de nada. Pensei que ia lá ficar para sempre, digamos assim. Até dei uma limpeza a fundo ali no escritório dele.

Posso ver? — apontei com o queixo para a direção que ela tinha indicado. — Só para saber se ele ainda gosta de livros esquisitos — sorri, atenuando a impertinência do pedido.

Gostar, gostava, mas deitei tudo fora. Aquelas palermices só lhe faziam mal. Qualquer dia está aí e, se calhar, ainda se vai zangar comigo por ter deitado aquilo fora.

Entrámos. Era uma marquise fechada com uma escrivaninha minúscula e uma cadeira. A parede tinha estantes de cima a baixo, organizadas em prateleiras temáticas. Ao nível dos olhos era a secção de divulgação científica: Sagan, Asimov, Gould, Dawkins, Clarke, e outros nomes menos conhecidos. À direita, ficção científica e policiais. À esquerda, seria a secção “arrumada” pela mulher: restavam uns títulos “esquisitos”, relacionados com religião e marianismo. As prateleiras cimeiras deviam corresponder a ciência, propriamente dita, onde identifiquei nomes como Galileu, Crick, Darwin, Freud, Jung. Surpreendi-me de ver História e Política a partilhar uma prateleira e de uma inteira com livros sobre Arte e outra com Poesia. Este Marteladas — não é fácil adaptar-me a Francisco Gomes, depois de o ter tratado tanto tempo pela alcunha — é um indivíduo surpreendente, pensei.

E o morto? Sempre era um que tinha tido uma rixa com ele, além no café? Contaram-me… — disse eu, cautelosamente, com medo de denunciar o pormenor do diário.

Não, veja lá! Era o vizinho aqui da cave. Então, se nós soubéssemos a miséria em que ele vivia não lhe tínhamos dado as hortaliças que quisesse? É a pobreza escondida. Olhe, tenho feito um esforço para tomar atenção a algum caso parecido que haja por aí. E já tenho dado aos vizinhos. Agora, sou eu que trato da horta, sabe? Temos que nos desenrascar, não é?

E o chantagista, apanharam-no?

Acho que não, mas preferia não falar muito disso. Nunca se sabe. O meu marido suspeitava de alguém que tem uma janela que dá lá para a horta. Mas ainda fica desviada. Não sei.

Despedi-me e prometi visitar o marido na prisão. Não só precisava de manter a coerência da minha história, como fiquei verdadeiramente curioso por conhecê-lo.

No dia seguinte, fui a Pinheiro da Cruz, armado de bloco de notas e minicâmara. E o último livro do João Magueijo, como prenda. O Marteladas tinha uma tez levemente sanguínea, nariz um pouco abatatado, era alto e bem constituído, aparentando menos idade do que os 63 anos declarados. Estranhou a minha visita, por não me conhecer, mas eu disse-lhe que era um jornalista do Correio da Manhã e que estava a organizar uma reportagem que reabilitasse a imagem de presos que tinham matado por acidente. Contou-me tudo o que eu já sabia mas, quando lhe falei no chantagista, baixou a cabeça a sorrir.

Só falo disso se for off the record — exigiu.

Anuí, claro. Do meu lado era tudo off the record.

Sabe, eu vi-me muito apertado com a pressão dos remorsos, que vinha somar-se à vida atarefada e de pouca qualidade que eu levava. Estava farto. E cansado. Só queria sossego e descanso, mas o que me tinha acontecido não me permitia nenhuma serenidade. Fui eu que escrevi as cartas. Eu queria vir para a prisão, queria cumprir pena, para me livrar dos remorsos. Queria deixar de calcorrear as ruas à procura de metal. Queria deixar de ouvir novelas. Queria entregar-me, mas queria deixar a minha mulher a pensar que eu não tinha outra saída. Então escrevi as cartas, só para ela ler. Nem as mostrei à Polícia. E tive sorte, muita sorte. Aqui, Pinheiro da Cruz, é uma colónia penal agrícola. Os campos anexos da prisão são um paraíso para alguém que gosta de trabalhos do campo, como eu. Estou bem.

A minha capacidade de adaptação não me permitia mais surpresas. Despedi-me. A última visão que tive dele foi a de um rosto em grande serenidade. Antes assim!

Joaquim Bispo

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Este conto foi a base de um guião para cinema, desenvolvido pela realizadora Margarida Moreira, que intitulou “A Horta”, com o qual tem ganho vários prémios em concursos da especialidade. No passado dia 24/4/2023, em cerimónia realizada numa das salas do Cinema City do Campo Pequeno, recebeu dois desses galardões: “Best Short Screenplay” do Canada Independent Film Festival 2023; “Best Short Screenplay” do France International Film Festival 2023.

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Imagem: 

Eduardo Batarda, Néctar, 1984.

Centro de Arte Moderna, F. C. Gulbenkian, Lisboa.

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10/04/2023

Uma pedra no sapato de ténis

 

Casimiro Lopes começou a suspeitar de que qualquer coisa não estava bem quando, pela terceira vez, o seu parceiro habitual de ténis, Francisco Torrinha, deu uma desculpa para não fazerem a partida habitual. Não jogavam com muita regularidade — talvez de três em três semanas, muito longe das duas vezes semanais de uns anos atrás, quando ambos ainda estavam ao serviço da empresa —, mas era o suficiente para manterem a ilusão e a imagem de jogadores de ténis. Nem sequer eram grandes praticantes, apesar de jogarem juntos havia uns vinte anos. O ténis, agora, não passava de um pretexto para mexerem um pouco as articulações, calcificadas por tanto sedentarismo, e atualizarem o contacto.

Se, na primeira “nega”, Casimiro achou normal que o amigo não pudesse jogar por “ter de levar o carro à inspeção” e na segunda não pudesse, por andar “com uma dor lombar”, na terceira achou que as “compras no supermercado” bem podiam ser adiadas. Entre o surpreendido e o magoado, resolveu que não desafiava mais o amigo. Ele que telefonasse! Se a questão fosse circunstancial, Francisco haveria de arranjar um bocado da tarde para jogarem.

Passou-se um, passaram-se três meses e o telefone não cantou nenhum convite do amigo. Paciência! Casimiro é que não queria humilhar-se mais. Podia bem passar sem jogar ténis.

Quis o fado ou o diabo que Casimiro encontrasse um ex-colega da tropa, o Henriques, e chegassem à conclusão de que eram ambos jogadores de ténis a ressacar. E logo ali combinaram uma partida para o dia seguinte. Aziago dia esse!

Eram umas dez e meia, quando desceram dos balneários do Jamor para os campos de terra batida. O Henriques parecia jogar bastante melhor do que Casimiro, pelo que este se preparou para uma bela tareia. Na verdade, meia hora bastou para levar 6–2, na primeira partida.

Estavam a iniciar a segunda, com Casimiro a servir, quando este ouviu uma voz, seguida de uma risada, que muito bem conhecia. Estacou um momento, a determinar de onde vinha o som, e percebeu que vinha de um campo próximo, mas encoberto pelos arbustos de separação. Serviu, mas fez dupla falta. A seguir, meteu a bola na zona própria, mas um petardo do outro lado fê-lo ir buscá-la ao fundo do campo. Enquanto a apanhava, conseguiu espreitar por entre os arbustos e confirmar o que temia: Francisco Torrinha jogava ténis alegremente com outro tipo. E como se isso não bastasse, o outro era o Renato, o nojento Renato, o ex-colega de ambos que tinha das posturas mais irritantes na empresa. Irritante, manhoso e arrogante. Uma víbora com pernas.

O resto da partida correu ainda pior do que a primeira, se isso era possível. O sol queimava, a terra batida vermelha cegava, os olhos não conseguiam ver com precisão a trajetória das bolas. Quando a partida acabou com 6–0, Casimiro desculpou-se com o calor e voltaram aos balneários. Mais do que o calor, Casimiro já não aguentava a alegria que adivinhava no outro campo. Com o Renato!

O resto do dia não foi nada repousante para Casimiro. Pensou em mil e uma coisas que podia fazer, das mais vingativas às mais conciliadoras. A mais sensata, que acabou por prevalecer, quando, pelas três da manhã, o cansaço já se sobrepunha à raiva, foi a de confrontar Francisco com aquela facada nas costas.

No dia seguinte, foi esperá-lo à porta do infantário, aonde sabia que Francisco levava todos os dias a neta. Este não podia ter ficado mais surpreendido com a visita, mas pareceu a Casimiro que ele tentava disfarçar um ar comprometido:

Por aqui a esta hora? Pensei que a manhã era sagrada para ti!

Isso é um sarcasmo dos mais reles que já ouvi. Mais reles que isso é teres ido jogar ténis com o Renato — descarregou Casimiro, sem conseguir evitar o fel.

Mas o que é que estás a dizer? — ripostou Francisco, à defesa. — Quem é que te disse isso?

És capaz de negar na minha cara? Vá, diz; és? — faiscava Casimiro.

Sim, fui — admitia Francisco, vendo que não adiantava negar. — E daí? Qual é o problema?

O problema é que somos parceiros há vinte anos e ultimamente tens andado a evitar-me. E para quê? Para ires jogar com o mete-nojo do Renato! Com o Renato… Como é que foste capaz?

O que é que tem? Calhou! Encontrei-o no supermercado…

«Encontrei-o no supermercado» — repetiu Casimiro com voz de falsete. — Se te aparecesse o “Doninha” do Contencioso, também ias jogar ténis com ele, não? Agora vais com qualquer um? Não me admirava!

Ó Casimiro, qual é a tua? — aborrecia-se Francisco. — Mas, então, não posso ir jogar ténis com quem me apetecer? Era só o que faltava!

Pois, podes ir com quem te apetece, mas baldaste-te três vezes, quando te convidei. O que é que os outros têm a mais que eu não tenho?

Olha, por exemplo, estão dispostos a ir jogar de manhã, enquanto que tu…

Eu, quê? Se for o único período livre, posso ir de manhã. Ainda ontem fui — descaiu-se Casimiro — Tu é que nunca insististe!

Ah, tu podes jogar com outros e eu não posso! É essa a tua ideia de fidelidade?

Só fui porque tu nunca mais me ligaste. Assim, não! Também tenho sentimentos.

Ó Casimiro, não sejas assim! Não tem dado, mas podemos ir jogar um dia destes.

Amanhã? — apressou Casimiro, pela perspetiva de voltar a jogar com o amigo.

Eh, pá, amanhã não posso; tenho uma consulta no Centro de Saúde.

Eu não acredito que estava a ir na tua cantiga! — desesperou Casimiro. — Já percebi. Percebo até bem de mais. Sabes o que te digo? Vai-te catar! Eu não preciso de ti para nada. Se eu quiser jogar ténis tenho muito com quem.

Casimiro saiu de ao pé do amigo mais fulo do que nunca. «Falso!» — pensava para si. «Tu vais ver o que é bom...»

Daí a uns dias, tendo contactado um outro ex-colega que sempre conhecera como jogador de golfe, Casimiro deu as primeiras tacadas num campo de 9 buracos, num magnífico espaço dos arredores. Saboreando o imenso relvado tratado e a cavaqueira com este amigo que já não via há algum tempo, comprazia-se sobretudo na vingança que iria aplicar ao traiçoeiro Francisco, esfregando-lhe na cara o prestígio do golfe.

«Bem fria é que ela sabe bem!» — confirmou ainda nesse dia, ao publicar no facebook uma selfie com o amigo golfista, enquadrados numa esplendorosa paisagem verdejante, com um lago em fundo, de tacos na mão, felizes.

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos selecionados para a 38ª edição (março/abril de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 64 a 67):

https://drive.google.com/file/d/1SVBk91JJrG2NmG9y3lGsmNRRakP1bHI8/view

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Imagem: Pintura mural no interior do restaurante anexo ao “court” central do Jamor, c. 1945 (?).

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10/03/2023

A realidade

 

A minha mãe é alegria. E sabor. Ela junta açúcar num pratinho com requeijão ainda quente que o meu pai acabou de trazer. Delícia! Colhemos figos amarelos a escorrer um pingo de doçura dourada. Regalo! Vamos à fonte buscar água. Fresca! Eu corro à frente. A correr, ninguém ganha à Flecha, a cadela. Corro com ela, feliz. Correr é bom! E andar descalço pelos campos. E nas areias frescas da ribeira. Pela sombra dos amieiros. E estar deitado no meio da erva. Ouvindo os muitos pequenos sons do campo. E sentindo os muitos aromas das plantas. O cheiro a fumo da erva cortada de fresco…


Fumo? Pedro acorda.

Está no escritório. Sentado e com os cotovelos apoiados no tampo da secretária, tinha adormecido por momentos. No cinzeiro, um cigarro queimado até ao filtro. Olha o relógio. Já passa das seis. Arruma alguns papéis que estavam dispersos pela secretária, veste o casaco e sai. Ainda é cedo para ir para casa. Resolve passar pela tabacaria, para comprar o jornal, antes de se sentar na esplanada do fundo da rua.

Nada mais repousante num fim de tarde: uma cadeira, um jornal e um café.

Na tabacaria, olha os cabeçalhos de jornais e revistas e decide-se por uma de nome a branco sobre vermelho.

A Pesquisa, se faz favor!

Paga-a e sai observando a capa. Apresenta o desenho de um cérebro sob um título que promete revelar tudo sobre a fase REM do sono. Cruza maquinalmente o passeio e começa a atravessar a rua sem despegar os olhos da revista. Logo um guinchar estridente lhe assola os ouvidos e o seu olhar já lhe desvenda a origem. A poucos metros, vem um carro de rojo, agarrando-se desesperadamente ao alcatrão. Os olhos do condutor fitam-no aterrorizados, como que a pedirem-lhe o milagre de se desviar, a tempo, da trajetória do carro. O sol refletido nos cromados fere os olhos. Os travões gemendo desfazem-se em chispas de fogo. As pessoas detêm-se de olhos fixos no horror que se desenrola mesmo ali. Sabem que um homem vai ser atropelado e nada fazem. Algo as mantém presas. Há movimentos apenas esboçados. Parece que tudo decorre em grande lentidão. Lentidão apenas aparente. Àquela velocidade, o carro vai esmagar o homem.


Pedro dá um pulo na cama.

À sua frente desenrola-se um acidente do qual ele próprio é o atropelado iminente. Em escassos momentos, porém, o carro que vem ao seu encontro desvanece-se e desaparece, deixando em seu lugar apenas os ferros graciosamente enrolados da sua acolhedora cama.

Pedro pestaneja, olha em volta, e finalmente fecha a boca, que possivelmente gritara. Passam-se os segundos, mas na sua memória as imagens são nítidas. O carro parece estar ali. O carro, o chiar dos travões, o cheiro dos pneus, mesmo a cara do condutor que ele não conhece.

É difícil acordar de um pesadelo, mas no fim é um alívio. Pedro respira fundo, enquanto passa a mão pela testa. Da rua chegam-lhe ruídos de discussão. Levanta-se e vai à janela. Lá em baixo, no alcatrão, dois homens discutem. Um carro está atravessado na rua e outro em posição de ter surgido da lateral. Os rastos da travagem daquele atingem mais de dez metros. Aí está a explicação do aparecimento e do conteúdo do seu sonho.

Pedro volta para dentro, calça os chinelos, alisa o cabelo, e passa do quarto, onde dormira a sesta habitual dos sábados, à sala onde o seu filho se entretém com um automóvel de brinquedo e a sua mulher o recebe com um sorriso.

O quê? Já acabaste a sesta?

Ele beija-a e senta-se. Sabem-lhe bem os sofás macios, confortáveis. A sala acolhedora fá-lo sentir o contraste com a vivência de há momentos.

Nem queiras saber o pesadelo que tive... Ia sendo atropelado.

No sonho!

Sei lá se foi só no sonho. Era tão real! Eu ia a atravessar uma rua e de repente, sem esperar, aparece-me um carro a toda a velocidade.

Eu, às vezes, também tenho sonhos horríveis.

Mas as coisas estavam tão nítidas, tão coerentes, que eu chego a duvidar se era só sonho. Ainda me lembro da cara do tipo que conduzia. E das pessoas que assistiam. Sabes que a coerência interna das situações é o único indício que costumo tomar como certeza de que estou acordado.

Pela mente de Pedro, desfilam novamente as peripécias do sonho. Todos os pormenores permanecem vivos na sua memória: o rodado dos pneus, o aspeto da rua, o rosto da empregada da tabacaria, a revista...

E a revista era a Pesquisa. O engraçado é que é uma revista que já não compro há uns meses. Anunciava nesse número, em grandes letras, “Sono REM — o organizador da realidade”. Lembro-me bem.

Não sei que organização é essa, porque, para mim, isso de sonhos está cheio de incoerências.

Talvez não só incoerências! Repara que, na maior parte das vezes, o sonho reflete as peripécias do dia de quem sonha, ainda que sob uma capa surrealista. Posso sonhar que atravesso a vau um pântano onde outras pessoas chafurdam e não acho isso estranho. Quando acordo, se me lembrar do sonho e fizer um esforço de o relacionar com episódios do dia anterior, talvez me lembre de ter atravessado um relvado acabado de regar a caminho do trabalho. O terreno empapado está lá; o resto talvez seja um sentimento inconsciente do que penso do local de trabalho e de quem por lá se arrasta.

Hm, sim! Mas não seria mais lógico sonhares com o local de trabalho, mesmo, e não com o relvado?

Talvez, mas é a maneira como o nosso cérebro funciona. Aliás, os sonhos incongruentes perturbam-me menos do que aqueles que não distingo da realidade… Como é que eles acontecem? Sou eu, que estou a dormir, que consigo imaginar histórias, que nunca vivi, cheias de pormenores como na vida real? Chegam a ser tão coerentes e semelhantes à realidade que eu já me tenho perguntado o que é afinal real: o que vemos aqui, ou o que vemos nos sonhos? Ou ambos? Deixa-me cá beliscar… Ah! Outra curiosidade. Antes deste sonho, tive outro com recordações de infância. Esse era uma grande baralhada e já não me lembro bem. Mas evocava sobretudo sentimentos e emoções.

Eu chego a ter quatro e cinco sonhos só numa noite...

Sim, mas sabes o que me aconteceu? É que passei de um sonho para outro, como se passasse de um sonho para a realidade. Acordei, pensava eu. Mas era outro sonho, percebes? E olha que estava mesmo convencido que estava acordado.

Pedro fica calado a pensar. Depois adianta:

Quem me diz a mim que isto tudo não é outro sonho igual ao do acidente?

Entreolham-se. Pedro belisca-se novamente. A mulher finge que se zanga:

Então e eu sou o quê?

Tens razão, querida. Tu és mesmo real. E ainda bem.

Passa-lhe a mão pelos cabelos e pela face macia, olha-a no azul dos olhos e beija-a no quente dos lábios, longamente. O miúdo, que brincava com o carrinho, mas sem perder pitada do ambiente, vem a correr meter-se entre eles, para não ficar de fora na distribuição de carícias. Os três estão abraçados e a rir com a brincadeira, quando soa uma campainha. Ele pega no telefone, mas ninguém responde.

Deve ser a porta.

Ela vai abrir, mas volta logo.

Não está ninguém à porta...

Ele desliga o televisor, mas a campainha continua a tocar sem interrupção. Entreolham-se todos, com olhares um pouco assustados, sem trocarem palavra. O miúdo corre a abrigar-se nos braços da mãe. Olham para todos os cantos da sala, para o teto... O som da campainha continua, mete-se pelos ouvidos adentro, parecendo vir de todos os lados ao mesmo tempo.


Pedro começa a tomar consciência das cores escuras e pesadas. Depois as formas aparecem-lhe com mais nitidez. Os seus olhos abrem-se definitivamente e com eles percorre o aposento: roupa amarrotada numa cadeira; um poster de revista na parede; uma mesa com um prato sujo em cima; do outro lado da cama, um banco com um cinzeiro e um despertador.

O barulho do despertador é já insuportável. Pedro trava-o com um murro. Fica a olhar para ele e para tudo o que ele significa: trabalho, submissão a horários, salário de miséria...

Seis e meia. Merda de vida!

Senta-se na cama, encostado à parede. O leito é um colchão de espuma com um saco-cama em vez de lençóis. Acende um cigarro. Acodem-lhe ao pensamento imagens do sonho que acaba de viver. Detém-se nos sofás confortáveis, na estante cheia de livros, nos quadros, no menino adorável, na mulher linda e deliciosa…

Não querias mais nada: boa casa, um bom emprego e uma mulher boa!

Um sorriso amargo aflora-lhe a boca. Acaricia a ponta do travesseiro, sonhador, pensativo.

Sonhos!

Os seus olhos percorrem o local onde poderia estar deitada uma mulher. «É difícil viver sem mulher.» Mais difícil e amargo ainda lhe foi viver com uma mulher em desarmonia. «Que fazer?» Volta a olhar a miséria monótona do quarto. Não é preciso beliscar-se. Esta realidade conhece ele bem.

Ou não? Afinal, que crédito pode dar ao que, de todas as vezes, lhe pareceu realidade? Por que aceitar esta, se ela parece tão desagradável? «Não quero esta merda!», decide. «Qualquer das outras é preferível.» Acabado o cigarro, estende-se outra vez, relaxado.

Que se lixe!

Umas três horas depois, sonha que voa por cima do parque da cidade. Controla tão bem o seu corpo que bastam poucos movimentos dos pés para se elevar, e pequenas inclinações do tronco para orientar a trajetória. Acaba por poisar num enorme relvado junto a uma mata. Desta sai um urso que se prepara para o atacar. Pedro pega num pau e bate com ele fortemente na cabeça da besta. O animal tem a cara do seu patrão, que lhe aponta o indicador:

Estás despedido!


Pedro salta da cama com um forte sentimento de angústia. Está outra vez atrasado. Muito. Lava os olhos à pressa, veste-se num ápice e sai do quarto a correr. Lá fora, a realidade parece saída de um quadro de Bosch.

«Socorro! Quem me acorda?»

Joaquim Bispo

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Este conto — escrito em 1976 e reescrito em 2016 — foi um dos 15 selecionados para integrar a 5ª edição da Fluxo — Revista de Criação Literária, de junho de 2019 (páginas 36 a 41):

http://bit.ly/fluxof5

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Imagem:

John William Waterhouse, Sono e seu meio-irmão Morte, 1874.

Coleção privada.

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10/02/2023

A gruta da moura encantada

 

No tempo de D. Dinis, todos os mouros ligados ao controlo militar e administrativo do território lusitano tinham já sido expulsos das terras do Algarve. Mantinham-se, no entanto, as populações há muito arabizadas e mais ligadas ao solo e ao mar da região do que às elites do califado.

Ali Agat, por esses tempos apanhador de medronho na serra de Estoi, que depois vendia nas povoações ribeirinhas, andava certo dia embrenhado na mata arbustiva, atarefado a apanhar os frutos maduros e a encher com eles uma cesta de vime. Os demasiado maduros e os já debicados pelos pássaros iam-lhe enganando a fome. Quando o calor apertou, recolheu-se a uma sombra cerrada e foi roendo o pão de grão de bico que tinha trazido de casa. Depois, deitou-se a dormir debaixo de uma alfarrobeira de copa densa. Quando acordou, manteve-se ainda um pouco, de costas, no chão forrado de folhagem, a saborear o fresco, de olhar perdido no interior da copa da árvore, atravessada aqui e ali pelos raios de sol de princípio da tarde.

Percebeu então, uma alfarroba de brilhos dourados e maior do que as outras. Apanhou-a e logo suspeitou, pelo peso e pelo brilho, que devia ser de ouro. Foi tomado de enorme orgulho e alegria. Possuir uma alfarroba de ouro era algo que nunca se atrevera a desejar. Tomou-lhe o peso, admirou-lhe os reflexos, a curvatura elegante. Durante um bocado, brincou com ela, como uma criança que tem um brinquedo novo. Quando ficou satisfeito, meteu-a no bolso da jelaba e apressou-se a voltar para casa, para a mostrar à mulher. Andou, andou toda a tarde, mas a sua aldeia ficava longe e a alfarroba cada vez lhe pesava mais no bolso. A certa altura, sem poder mais, resolveu enfiá-la na loca de uma árvore. Viria buscá-la depois. Pôs-se à procura de uma apropriada e foi então que uma cabra, que por ali andava a pastar, o interpelou:

Dá-me essa alfarroba, Ali Agat! É do meu pai; essa e muitas outras alfarrobas de ouro que deixou à minha guarda, quando teve de fugir para Granada.

Perante a atitude surpreendida dele, a cabra explicou-se:

Eu sou uma princesa moura, filha do emir de Al-Ulya. Como teve de fugir à pressa, quando o rei cristão entrou na nossa cidade, lançou-me um encanto, para eu ficar sempre de guarda aos seus tesouros.

Como sei que não me estás a mentir? — respondeu Ali Agat, desconfiado.

Vem comigo e verás! — disse a cabra, tomando uma vereda estreita.

Ali Agat seguiu a cabra por muito tempo. Depois de serpentearem pela vereda da serra, chegaram, à noitinha, à entrada de uma gruta, meio escondida por baixo de um grande arbusto.

Baixa a cabeça e entra! — comandou ela, mas Ali Agat não queria entrar na gruta da cabra, sem saber o que viria depois. — Lá dentro vais conhecer tesouros como nunca imaginaste — insistiu ela.

Ainda desconfiado, o algarvio acabou por entrar. A gruta era espaçosa e profunda e o chão estava ladrilhado de alfarrobas de ouro.

Uma por cada súbdito do meu pai — esclareceu a cabra —, mas ele fugiu há tanto tempo que já não deve vir buscar-me, nem livrar-me deste encanto. Só tu podes salvar-me. Basta dares-me um beijo. Quando mo deres, quebra-se o encanto e eu volto a ser a jovem princesa que era. Para isso, estou disposta a dar-te todo este ouro. Mas, com uma condição: tens de retirá-lo da gruta antes do nascer da lua.

Ali Agat, muito relutante, mas pensando como ficaria imensamente rico só por beijar uma cabra, acabou por aceitar. Apenas lhe deu um beijo na boca, ela transformou-se numa linda jovem, de belos cabelos negros e vestida com uma longa e leve jelaba verde-água. Ali Agat ficou encantado com a beleza da princesa, mas precisava apressar-se a recolher o ouro. Boa parte da noite entrou e saiu da gruta, carregando pesadas alfarrobas de ouro. Finalmente, quando, já cansado, arrastava a última alfarroba para fora da gruta e rejubilava com o sucesso, aconteceu o que temia: o grande halo prateado da lua já se erguia majestoso no céu escuro. Imediatamente, todo o ouro desapareceu, suspeitando ele que tivesse voltado para a gruta, cuja entrada se fechou silenciosamente. E a linda princesa voltou a ser a cabra de antes.

Vê o que fizeste! — ralhou ela. — Com os teus vagares dobraste-me o encanto.

Ali Agat não sabia o que dizer, mas acabou por se desculpar com o cansaço. Disse-lhe que se esforçara tanto que até se esquecera da mulher, que já devia estar preocupada à espera dele. A cabra compreendeu:

Volta lá para a tua mulher, já que, a mim, só me fizeste mais infeliz. Mas sempre pelo mesmo caminho e sem olhar para trás. E leva estes dois saquinhos de figos para a viagem.

Ali Agat voltou pela mesma vereda, recolheu a cesta de medronhos e dirigiu-se para casa. Quando sentiu fome, tentou comer os figos que a cabra lhe dera, mas ainda estavam verdes e leitosos e já lhe tinham posto os bolsos a colar. Chegou finalmente a casa, onde a mulher já estava muito aflita, sem saber onde o procurar. Contou-lhe então tudo o que lhe tinha acontecido e porque se tinha atrasado:

Quando acordei da sesta, dei com uma alfarroba de ouro mas, quando vinha ter contigo, encontrei uma cabra, que, na verdade, é uma princesa moura encantada e que tem uma gruta maravilhosa cheia de ouro. Disse que seria todo meu se eu lhe desse um beijo e o tirasse da gruta antes de a lua nascer. Não consegui retirá-lo a tempo, porque entretanto nasceu a lua. Mas trouxe esta cesta de medronhos e estes dois saquinhos de figos. Só que ainda estão verdes.

Ai, Ali Agat, é sempre a mesma coisa! — queixou-se a mulher. — Apanhaste outra vez uma barrigada de medronhos, deitaste-te a curtir a bebedeira e voltaste a sonhar com aventuras com mouras encantadas. Aposto que a cabra é que se regalou com a alfarroba, se já estava bem dourada. Porque é que não deixas o medronho e voltas para a amêijoa?

Joaquim Bispo

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Este conto foi um dos selecionados para a 37ª edição (janeiro/fevereiro de 2023) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 58 a 60):

https://drive.google.com/file/d/1ZvV1BrRONgQeHflAHjFqcDaO6hUFDA7z/view

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Imagem: Joana Vasconcelos, Lilaea (secção), 2017.

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10/01/2023

A ponte

 

Viajar para Saturno não fazia parte das aspirações de Oleg, em criança. As leituras de juventude — muita ficção científica, muita divulgação científica — levaram-no, no entanto, para caminhos insuspeitos, mas empolgantes. Aos trinta e dois anos via-se a caminho de Encélado, uma lua de Saturno com aparentes boas possibilidades de desenvolver vida: tem água líquida, atividade hidrotermal e uma composição gasosa com algumas semelhanças com a da Terra. Tais condições, talvez amigáveis para humanos, desencadearam mais uma corrida espacial entre as nações do planeta azul. Haverá um momento em que pequenas colónias de homens terão necessariamente de procurar alternativas de espaço e de recursos naturais fora da superlotada e envenenada Terra.

Oleg integra a minúscula equipagem da Moct, a nave que já navega há quatro anos e ainda precisa de mais dezasseis para chegar a Saturno. Os três membros viajam em regime de oito meses de semi-hibernação induzida, por quatro meses de vigília/sono. O tempo custa a passar. Ainda falta quase um mês para Oleg voltar a ser submetido à fase letárgica. O isolamento é penoso e pérfido. Trocar palavras com a base terrestre é um exercício kafkiano, devido ao desfasamento temporal provocado pela distância. Uma palavra que ele lançasse agora para a Terra demoraria mais de três minutos a chegar lá; se devolvida logo, a resposta chegaria a Oleg mais de seis minutos depois. Não dava para conversar; só parodiar um patético diálogo de afásicos.

Oleg não estava tão isolado assim, tinha consciência. A enorme equipa que programara a missão a Encélado previra as intermináveis horas de solidão, estudara os gostos e a personalidade de cada cosmonauta. A Oleg forneceu três mil “teras” de filmes e livros, distribuídos por vários unidades de armazenamento.

No final da adolescência, Oleg continuava muito reservado. Era frequentador da biblioteca da sua cidade natal. Gostava de se internar no universo fantástico das secções; como descobridor de mundos, costumava aterrar numa galeria, explorar o continente de uma estante, deambular pelos vales surpreendentes das prateleiras, deslumbrar-se com as residências dos habitantes, entrar nas páginas de uma e tomar contacto com os inesperados moradores, às vezes, seres bizarros e inquietantes; outras, criaturas simpáticas e calorosas. À despedida, um conforto espiritual acompanhava-o, animando a sua condição de homem em busca de enriquecimento íntimo.

Da adolescência guardou aquele gosto pelo inesperado: entusiasmava-se com o que a sorte lhe atribuiria, em pesquisas aleatórias de leitura. Instalou-se no conforto de uma ténue gravidade artificial da zona de lazer, posicionou o visor a uma distância cómoda e lançou a pesquisa. A máquina apresentou-lhe “O jovem pastor e a fadazinha”, um conto valáquio de Gorki. À memória acorreu a imagem de um prado de extensão inimaginável. E do deslumbramento juvenil do pastorzinho aconchegado entre céu e planura.

Lembrava-se de todos os grandes clássicos: da monumentalidade de Tolstoi, da sátira social de Gogol, dos contos suaves e realistas de Chécov. Este conto tinha estado encoberto; havia tanto tempo que não o lia... Dentro em pouco, estava embrenhado nas peripécias ingénuas e carinhosas do pastor e da pequena fada nas margens do Danúbio:


«O pastor sentou-se à sombra de uma árvore solitária que, amante da liberdade, se afastara da floresta para crescer em plena estepe; erguia-se orgulhosa e altivamente, balouçando suavemente os ramos sob a carícia do vento que soprava do mar.»


Oleg deitou-se no chão da câmara, o corpo enclausurado, separado da sua Terra por centenas de milhões de quilómetros; na mente, a ponte que o terno e inspirador conto lançara e o ligava ao seu chão natal.


«O rumor dessa folhagem formava uma longa onda sonora que se alongava pelo céu de um azul vivo onde flutuavam suavemente brancas nuvens macias que fundiam sob os raios ardentes do alegre sol primaveril.»


Imagens aprazíveis das juvenis deambulações pelas margens do Volga afagaram-lhe a superfície da alma. Vislumbres de campos, mares verdes ondulantes sob a claridade infinita do céu…


«A fada balouçava nos ramos da grande faia e cantava:

A brisa é suave e perfumada.

Traz até nós, de toda a parte

suspiros, murmúrios e ruídos…»


Ah, a magia de uma árvore, a liberdade de um campo aberto, o seu deslumbramento de criança…

Oleg, o sorriso tristemente feliz, afastou os olhos do visor, inundados, incapazes de prosseguir a leitura.

Lá fora, a noite espacial era a eterna e infinita estepe que o separava de casa.


Joaquim Bispo

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Imagem:

Claude Monet, A ponte pedonal japonesa e o lago de nenúfares, Giverny, 1899.

Museu de Arte de Filadélfia, EUA

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10/12/2022

Do lado de fora

 

Com o passar do tempo, perdemos a localização temporal exata de certo facto. Desta personagem, lembro-me que apareceu de súbito a dormir por baixo das arcadas do meu prédio, mas perdi a memória sobre a estação do ano em que tal aconteceu. É provável que fosse outono.

A princípio, todos pensámos que ficaria por ali umas noites e partiria, tanto mais que não acumulava muitos cobertores e agasalhos, como outros sem-abrigo. Limitava-se a deitar-se sobre um cartão grande, daqueles que acondicionam eletrodomésticos, para se proteger minimamente do frio do mármore. Às vezes, acrescentava um cobertor. De dia, desaparecia durante a maior parte do tempo, talvez por se envergonhar da maior exposição a que se sujeitaria. Era alto, um pouco curvado, barba e cabelo grandes, olhos encovados sempre baixos, vestia um eterno sobretudo e parecia ter bem mais de cinquenta anos, mas nestas situações de fragilidade social é um pouco difícil fazer uma avaliação etária rigorosa.

Nunca soubemos de onde viera, porque estava ali, porque dormia na rua. Habituámo-nos à sua presença e quase nos passava despercebido. O incómodo inicial por ter ali um sem-abrigo desvaneceu-se aos poucos, porque o homem não sujava, não pedia dinheiro, não pedia comida, não dizia nada — literalmente. Nas várias tentativas que os vizinhos mais piedosos fizeram, perguntando-lhe se tinha família, se precisava de alguma coisa, obtiveram sempre a mesma reação. Ele virava a cara, mudo, e chegava a afastar-se do local, mas sem ares de rudeza. Mas não recusava o que lhe trouxessem. Várias vizinhas lhe levavam comida, de vez em quando. A mais admirável era a velhota indiana que trazia do minimercado um saquinho de plástico, já com víveres separados, que entregava ao homem. Ele recebia, fazia um gesto de agradecimento com a cabeça e recolhia-se.

Certa vez, tendo eu achado uma chave junto à porta, achei que tinha um bom pretexto para interagir com ele e, eventualmente, pô-lo a falar. Abordei-o e pedi-lhe que a desse a quem a tivesse perdido. Aceitou. Um ou dois dias depois, apontou-me umas palavras a lápis no mármore, informando que a chave era da mulher da limpeza, escritas com uma excelente caligrafia. Fiquei a suspeitar que o homem tinha a sua instrução e já teria tido uma vida bem mais confortável.

Esta recusa em comunicar foi talvez um obstáculo a que alguém conseguisse aliviar-lhe o mal-viver. A sua atitude asceta dava a impressão de querer castigar-se, sabe-se lá porquê. Lembro-me de muitas noites, de vários invernos, em que eu, chegando do trabalho pelas duas ou três da madrugada, o via a contorcer-se em cima do cartão, talvez com fome ou frio, talvez com dores de alguma mazela que se desconhecia. Algumas vezes acreditámos que um dia acordaríamos com a notícia de que fora encontrado morto na sua cama de cartão.

Certo dia de folga, resolvi seguir-lhe o deambular diurno, para saber por onde gastava o tempo. Levantei-me com o raiar do dia, mas quase se me escapava. Com a sua carga de sacos às costas, foi percorrendo o caminho para Loures, através da Quinta Nova. Ali, sentou-se uma boa hora à sombra de uma figueira, mastigando algo indefinível. Perto do meio-dia, atravessou para o Olival e, numa rua interior, aproximou-se da porta de uma tasca e esperou. Pouco depois, um homem saiu e entregou-lhe um pequeno embrulho, que ele guardou no bolso direito do sobretudo. Sem dizer nada, como sempre, acenou com a cabeça e afastou-se em direção ao Vale do Forno. Um pouco antes, subiu uma vereda na encosta até uma antiga fonte, com vista sobre o vale de Odivelas. Nesta parte, foi difícil segui-lo sem me expor, apesar de estar disfarçado com um boné e uns óculos escuros. Dei uma volta larga e aproximei-me do local numa posição sobranceira. Libertara-se da carga de sacos e estava sentado num banco de pedra, a olhar o vale. Tirou o embrulho do bolso e começou a comer, pausadamente, como quem não tem apetite. Devia ser uma sandes qualquer que o taberneiro lhe dera. Eu próprio já sentia o estômago a reclamar, pelo que desci o monte e comi uma sandes de ovo e chouriço, numa cervejaria, mas voltei rapidamente ao meu posto, com medo de lhe perder o rasto.

Não havia pressa. O almoço tinha acabado, mas não a digestão. O meu vizinho circunstancial estendera-se ao comprido no banco de pedra e parecia dormir a sono solto. Nada mais me restava que esperar. Ou ir-me embora. Resolvi ficar. Durante umas duas horas, entretive-me, eu próprio, a contemplar o vale, com a ribeira e as pequenas hortas clandestinas, rodeadas por prédios a perder de vista. Sem dúvida, era uma vista esplêndida. Era de estranhar que os prédios ainda não tivessem invadido as hortas.

Feita a sesta e reposta a carga, o meu vizinho (como seria o nome dele? É incrível como nos interessamos tão pouco pelos outros) atravessou novamente a ribeira e dali subiu o Bairro dos Pombais. Sentou-se num ponto estratégico, um pouco encoberto com umas árvores, e ficou-se a espreitar longamente algo lá longe, do outro lado do riacho. Passado um bocado, percebi que se agitava com o que estaria a ver. Lá em baixo, nada de especial acontecia: a mesma fila de casinhotos toscos, com arremedos de quintal nas traseiras, em que alguns tinham improvisado galinheiros e outros procuravam ganhar terreno à ribeira para fazer horta. Ao voltar os binóculos para o meu vizinho, para apurar a direção em que olhava, fui surpreendido pelas lágrimas que lhe rolavam macias pelo rosto barbado. Quase saltei de curiosidade. O que havia lá em baixo que lhe provocava esta comoção? Concentrando a atenção, julguei descobrir a causa de tanta emoção: duas crianças de uns quatro ou cinco anos brincavam despreocupadas num dos quintalecos, correndo atrás de uma galinha.

Estava descoberta uma ponta do segredo do vizinho. Apostaria que havia ali família dele. Seriam as crianças seus filhos? Ou netos? Ou, tão só, sobrinhos? Alguma ligação profunda existia entre o estranho vizinho e aquelas crianças. E, claro, as crianças teriam pais ou avós dentro de casa. Ou que chegariam mais tarde. Porque não se aproximava mais era, certamente, a chave do enigma.

Meditando sobre o assunto e congeminando das mais simples às mais abstrusas hipóteses, segui-o o resto do dia, só para cumprimento do plano decidido. Regressou placidamente às arcadas do meu prédio. E eu a casa, embrenhado nos mais piedosos pensamentos e imbuído das mais caritativas intenções.

No silêncio da noite, sentindo a presença dorida do pobre diabo deitado lá fora num chão rijo, decidi-me a procurar soluções junto da autarquia, assim que amanhecesse. Mas de manhã estava frio, eu tinha dormido pouco e tinha sono. Nem sabia muito bem aonde me devia dirigir. De tarde fui trabalhar e adiei a diligência. Mais dias passaram, há muitas coisas para fazer, as anteriores preocupações são substituídas por outras mais frescas e tudo passa.

Aparentemente, terá havido pessoas e entidades que quiseram tirá-lo dali, mas ele sempre recusou. Uma vez, já no fim dos cinco anos que ali passou, vi uma mulher, acompanhada de uma assistente social da autarquia, a tentar convencê-lo a ir com elas. Sem êxito. No entanto, talvez um mês depois, aceitou relutantemente sair dali com a tal mulher. Correu o boato de que era filha. Que dramas escondia ele, que misérias estavam por detrás daquela situação, nunca o soubemos. Ou nem quisemos saber.

Joaquim Bispo

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Por uma daquelas coincidências significativas tão comuns nas Ciências e nas Artes, como se as ideias “andassem no ar”, foi criado em dezembro de 2022, no Porto, um grupo de teatro empenhado em puxar para esta atividade inclusiva e socializante pessoas sem-abrigo, a que foi dado exatamente o nome de “Do lado de fora”. Ao seu dinamizador, Rui Spranger, o meu voto de bom sucesso!

https://portocanal.sapo.pt/noticia/319918?fbclid=IwAR1JF5rnOImzqxTfffayg4hYpgATMqjvhkKuK-9BBWJBWoo4mY8f0nE3p6o

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Imagem:

Dominguez Alvarez, Louco, 1934.

Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, Lisboa.

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