O
continente de Atlântida era uma ilha
Que
existia antes da grande inundação
Na
área que agora chamamos Oceano Atlântico.
Donovan
— Atlantis
Paulo
estava a dar as primeiras chuveiradas no “Ruca”, quando recebeu
uma chamada em tom de secretismo de Henrique, o seu ex-colega do
secundário e companheiro esporádico de pesca no paredão de Paço
d’Arcos.
— Podes
falar? — perguntou Henrique, encostado ao ancinho metálico, a um
canto de um relvado de Odivelas que fora incumbido de varrer nessa
manhã pelo chefe da brigada municipal de jardineiros.
— Espera
só um momento — pediu Paulo, a arranjar tempo para ligar o sistema
de auricular ao telemóvel. — Diz lá!
— Voltaste
a saber mais alguma coisa da Andreia? A “Coca-bichinhos”!
Henrique
referia-se a uma colega de ambos do secundário, morena e de
oculinhos, que tinha sempre boas notas, especialmente a Estudo do
Meio. Na altura, chegaram a fazer todos parte do mesmo grupo, mas a
faculdade separara-os: Henrique fora para Antropologia, Paulo para
Veterinária, e Andreia para Oceanografia.
— Não,
porquê? — respondeu Paulo, de novo a aspergir com a mangueira o
cavalo de pelo avermelhado da escola de equitação de Fontanelas, em
que trabalha a recibos verdes.
— Encontrei
uma publicação dela na Net, uma tese. Parece que está a fazer o
mestrado em Paleoceanografia na Universidade do Algarve.
— Ah,
fixe! Conseguiste o contacto?
— Não,
na tese não tem nada. Nem encontro a página dela no facebook. Mas
bem que gostava de lhe falar. Se calhar, um dia destes, ligo para a
Universidade. Queria tirar umas dúvidas… A tese dela deu-me volta
à cabeça — desabafou Henrique, também de auricular no ouvido e
de novo a recolher a folhagem que as árvores largaram sobre a relva.
— Então,
porquê? Agora interessas-te por Oceanografia?
— Lembras-te
da nossa conversa sobre lendas, há quinze dias? — lançou
Henrique, sem responder à pergunta. —
Falámos da Atlântida… Porque tínhamos estado a ouvir o velhinho
Atlantis,
do Donovan. Estive a pesquisar sobre esse mito e fui parar à tese da
Andreia — esclareceu Henrique. — É por isto que te estou a
ligar: ou o relato do Platão sobre a Atlântida reflete um
acontecimento histórico, no sentido de verdadeiro, acontecido, ou a
coincidência é inacreditável. Mas depois falamos melhor. Vamos lá
no domingo?
— … Atlântida?
Oh, pá, um continente no meio do Atlântico, com uma civilização
avançadíssima, e que ainda ninguém encontrou… — gracejou
Paulo, depois de uma hesitação, ao ouvir na mesma frase “Atlântida”
e “acontecimento histórico”.
Sentindo
que o ponto da conversa era crucial, Henrique encostou a vassoura ao
carrinho de dois contentores cilíndricos em que tem acumulado os
resíduos vegetais do jardim e acendeu um cigarro. Parece-lhe que o
fumo o ajuda a pensar.
— Ok,
ok! Sabemos que os mitos são construções mentais em dívida com a realidade, mas, mesmo assim,
tomamos alguns senão como verdades, pelo menos como conceções do
mundo que estruturam as nossas vidas. Talvez por terem caráter
inspirador e gerador de atração sobre as pessoas — nós. Olha os
anjos-da-guarda, olha as fadas, olha as mouras encantadas! Ao longo
dos séculos, temos vivido, e vivemos, embebidos e em boa harmonia com as mitologias da época, não é verdade?
— Sim,
sem dúvida — condescendeu Paulo, a espalhar espuma sobre o pelo do
cavalo, que vai buscar a um balde com uma esponja. — Os mitos fazem
parte da nossa cultura, formatam-nos, mas não passam de uma espécie
de histórias de um universo maravilhoso, sem fundamento objetivo ou
científico. Por isso é que lhes chamamos mitos, coisas pouco
credíveis, crenças injustificadas.
— Pois,
mas, se calhar, alguns são sedimentações de algo real, mas cujos
fundamentos se perderam — insistia Henrique.
— Diz-me
um!
— Olha,
por exemplo, o Adamastor dos Lusíadas é muito credível como
hiperbolização das enormes vagas oceânicas! E as mouras encantadas
como exorcização das tentações suscitadas pelas belas e
enigmáticas mulheres berberes. E o dilúvio, que aparece na tradição
oral de todas as culturas?
— Tá
bem, mas não me venhas falar da
Atlântida! Só porque o Platão falou dela com tantos pormenores
como se alguém a
tivesse visitado,
não quer dizer que não tenha inventado tudo!
— Não!
A descrição dele é realmente impressionante, mas qualquer escritor
mediano consegue descrever um local com tal carga de pormenores que
parece falar de coisas
reais, que conhece. Não; eu falo de uma coincidência tal que leva a
admitir que, se a Atlântida não existiu, há conclusões
científicas indiretas que apontam causas para a sua destruição na
data indicada por Platão.
— Causas
para a destruição do que se calhar não existiu? Que formulação
mais bizarra! Que coincidência
é essa? — interessou-se Paulo, a secar o cavalo com panos de
feltro.
— Assim
à distância, é difícil explicar-te. Queria mostrar-te um gráfico
das temperaturas médias do mar nesses tempos da Atlântida. Podemos
falar disso no domingo? Apareces?
*
Claro
que no domingo seguinte Paulo apareceu no paredão, munido de duas
canas, um saquinho de isco e um balde. Atacou de imediato:
— Então,
mostra lá esse gráfico!
Henrique
puxou do telemóvel e mostrou ao amigo um gráfico que supostamente
representava as temperaturas médias na Gronelândia entre há 80.000
anos e o presente. Parecia haver uma constância relativa muito
grande entre o início do gráfico e a zona de há 15.000 anos,
altura a partir da qual o gráfico mostrava várias enormes
oscilações, encerrando com
outro longo
período de grande constância entre os 10.000 anos e o presente, mas
de temperatura uns vinte graus mais elevada.
— Antes
de mais, como é que sabem
isso?
— perguntou Paulo, desconfiado e farto de teorias da conspiração.
— Não
acredito que
comeces
por uma pergunta dessas…
— começou
Henrique, mas achou por bem tentar explicar: — Também não te sei
detalhar as técnicas; sei que os cientistas engendram os mais
incríveis processos para conseguirem as respostas que precisam,
ainda que por métodos indiretos. Para a temperatura da Gronelândia,
extraem amostras
cilíndricas verticais
da
capa
gelada e analisam a composição dos vários estratos temporais em
quantidade e tipo de micropartículas. Para determinarem a
temperatura da superfície dos oceanos ancestrais, medem o volume e o
tipo de micro-organismos mortos, contidos no estrato de lodo de cada
período. Esses seres eram plâncton que vivia à superfície e cada
espécie tinha a sua maior população a determinadas temperaturas.
Conseguem assim aproximações muito fiáveis. Foi nessas medições
que a Andreia trabalhou, para a tese.
— Ok,
acredito — avançou Paulo, a afastar a chateza do discurso técnico.
— Mas o que é que a Atlântida tem que ver com micro-organismos?
— Então,
relembrando: Platão escreveu
no Timeu
e no Crítias
que um sacerdote egípcio contou ao grande Sólon que, para lá das
colunas de Hércules — o atual estreito de Gibraltar —,
havia
uma ilha enorme, em pleno Oceano Atlântico, com uma grande
civilização e um grande poderio militar, mas que foi destruída por
terramotos e se afundou 9.000 anos antes dele, Sólon, isto é, 9.600
anos antes de Cristo.
— Hum,
já não retinha esses pormenores. E então?
— Então,
olha para o gráfico e diz-me o que vês aqui, nos 9.600 anos antes
de Cristo… — apontava Henrique.
Paulo
olhava, mas não
tinha a certeza do que o amigo queria mostrar. Henrique prosseguiu,
apontando com o dedo:
— Depois
de um longuíssimo
período glacial, iniciado mais ou menos há 80.000 anos, houve um
violento aquecimento, aí há 14.500 anos. É este traço quase
vertical. Voltou a arrefecer, aos solavancos, durante quase 3.000
anos e voltou a subir violentamente há… 11.600 anos. Ou seja,
9.600 anos antes de Cristo. É este traço que mostra um aumento
“brusco” de temperatura de uns 12 graus. Depois, pesquisa
“Younger Dryas”!
Henrique
fez uma pausa, à espera de uma reação.
— Não
dizes nada? — acabou por perguntar.
— Tá
bem, aqueceu, e daí?
— Não
é fantástico? Não achas extraordinária esta coincidência de
Platão indicar, com tanta precisão, uma data na qual a ciência
atual afirma que realmente aconteceu algo dramático, como prova este
gráfico — um brutal aumento de temperatura? E, como é lógico, há
uma consequência intimamente relacionada com o aumento da
temperatura global — o degelo das calotes polares e a subida dos
oceanos. Agora, andamos preocupados em travar o aumento global da
temperatura no planeta nos 2 graus desde a Revolução Industrial,
mas as temperaturas deduzidas de amostras da capa gelada da
Gronelândia indicam, para aquela época, uma subida de uns 10 ou 12
graus, em poucos anos, talvez menos de cem. E outros estudos são
perentórios de que o nível do mar subiu entre 100 e 140 metros,
desde então. Não é fantástico? Essa subida terrível das águas
pode ter simplesmente submergido a Atlântida, ou o aumento
avassalador e repentino do peso de tanta água pode ter provocado
fraturas dos estratos submarinos, com os consequentes terramotos.
— Eh,
pá! Realmente! Incrível! Isso é muito interessante!
— A
crosta terrestre é uma casquinha maleável, mas quebradiça. Por
essa altura — ouvi eu numa aula —, terão desaparecido um ou dois
quilómetros de espessura de gelo na Escandinávia, o que teve como
consequência a elevação dessas terras. O peso dos gelos
deslocou-se lá de cima para os oceanos, em água. É fácil aceitar
que esta basculação de enormes massas pode ter provocado reajustes
das placas submarinas, com abatimentos das placas e tsunamis
consequentes. Talvez tenha sido essa inundação avassaladora que deu
origem às lendas diluvianas que atravessam todas as culturas.
Paulo
manteve-se uns momentos calado, a digerir o que ouvira. Depois,
reagiu:
— Tudo
isso até pode ser verdade, mas não prova a existência da
Atlântida…
— Claro,
eu também não afirmo isso, mas temos de concordar que é de uma
coincidência perturbadora.
Depois
de iscarem os anzóis, lançaram-nos
para bem dentro do rio e
instalarem-se
nas rochas próximas. Continuar
a
discorrer
sobre o tema do
dia era
a conversa
mais aliciante que podiam ter,
enquanto esperavam que algum peixe picasse. Como seria
o estuário do Tejo, quando o nível do mar estava 100 metros mais
baixo? A quantos quilómetros estaria a costa? Seria fácil aos
africanos atravessar o Mediterrâneo, para a Europa. Talvez de ilhota
em ilhota, com a ajuda de troncos, como Henrique ouvira numa aula
sobre a Arte do Paleolítico.
— Se
calhar, não morriam
afogados aos milhares, como nos nossos tempos tão evoluídos… —
considerou Paulo, amargo.
E
imaginaram o drama de todos os grupos humanos
— vivessem na lendária Atlântida ou tão só nas inúmeras costas
da Europa Ocidental —, ao verem as águas invadirem em poucos anos
as suas áreas de instalação, a cada ano um pouco mais acima.
Refletiram em como estaremos em vias de viver tempos com problemas
semelhantes — de que a subida das águas é só o mais evidente —,
devido ao inquestionável aquecimento global.
— Sabes
que já se vão apanhando, nas nossas costas, peixes que antes só se
encontravam em meios sub-tropicais? — adiantou Henrique. — Li há
dias. Pescada do Senegal, sável africano, peixe-porco…
E
questionaram a clarividência das respostas de agora, que não
parecem muito diferentes das de então.
— Nesses
tempos, talvez se invocassem as divindades marinhas e se realizassem
sacrifícios para que elas se tornassem propícias — conjeturou
Paulo. — Agora vemos esforços igualmente inglórios e de aparência
mágica, como é tentar travar o avanço do mar lançando para as
praias ameaçadas milhares ou milhões de metros cúbicos de areia…
Que o mar leva de seguida.
— O
Homem continua
a não ter uma noção clara da sua pequenez, em face de forças
desta amplitude. E
se os oceanos subissem 100 metros em cinquenta anos?
— dramatizou Henrique.
A
conversa trouxera à tona da consciência alguma inquietação que
habitualmente se mantinha submersa.
Numa consulta ao smartphone,
Henrique mostrou-se alarmado.
— Está
a acontecer. Olha para isto!
A
notícia ecológica do dia era a separação de um iceberg
de 6000 quilómetros quadrados, da placa antártica. Um vídeo aéreo
mostrava uma falésia de gelo sobre o oceano, com uma extensão a
perder de vista.
— Diz
aqui que é do tamanho do Algarve e que corresponde a mais de 1.100
quilómetros
cúbicos de água — o cenho de Henrique carregou-se.
A
conversa cessou. Mantiveram-se calados por muito tempo, olhos postos
na água que até então sempre lhes parecera tão hospitaleira. A
ténue sensação de estarem a prever o futuro
— um futuro ameaçador — dava-lhes
um aperto no peito.
Joaquim
Bispo
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Imagem:
Luís
Louro, Alice
(na cidade das maravilhas),
2020.
Edição
especial 25 anos.
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