10/05/2022

Amigos

 


Foi ao almoço, em casa da minha prima no Cartaxo, que o assunto da amizade foi levantado.

Pai, o Bruno quer que eu lhe empreste o street-skate — lançou o meu priminho Sérgio, logo no princípio do creme de ervilhas.

Porquê? Ele não tem? — retorquiu Estêvão, o marido da minha prima, meio desinteressado.

Só tem um dos básicos. Mas, como vai passar o fim de semana a Lisboa, quer ir ao passeio do Parque das Nações com uma máquina a sério.

E então, emprestas?

Achas? Só entrou na escola o mês passado. Eu sei lá se ele mo perde ou o estraga? — argumentava o Sérgio, para encobrir o egoísmo dos seus 13 anos.

Isso é que não pode ser — devolveu o pai. — Se estraga, tem de pagar. Ou comprar novo. Fora isso… Porque é que só entrou agora?

O pai veio trabalhar para cá. Acho que é técnico de máquinas na fábrica.

E esse Bruno já te emprestou alguma coisa? Ou é daqueles que só pede, mas nunca empresta? — tentava o pai avaliar o amigo do filho pelo critério da reciprocidade.

Ele é um egoísta; está sempre a dar desculpas. Só me emprestou três jogos para a playstation. E foi porque eu lhe pedi muito.

Mas, vocês não são amigos?

Sim — concedia Sérgio, a contragosto. — Mas eu mal o conheço…

Foi nesse ponto da conversa que eu intervim, aproveitando os momentos antes do prato principal.

A questão da amizade, e de como lidamos com ela, é das mais importantes, sobretudo para quem está a crescer, porque pode moldar toda a futura maneira de estar na vida. A História e a Literatura têm-nos fornecido inúmeros exemplos de amizades, desde Os 3 mosqueteiros, em que há um companheirismo igualitário, à amizade, digamos, assimétrica de D. Quixote e Sancho Pança.

Lá vem o momento Acontece — ironizou a minha prima, referindo-se ao extinto programa cultural da televisão.

Na verdade — continuei eu, ignorando acintosamente a provocação —, confunde-se frequentemente amizade com coleguismo. No coleguismo, há apenas confluência de interesses.

Então, e na amizade, não há interesse? — avançou Estêvão, fisgado no interesse, mas no interesse na conversa.

A amizade é algo bem mais desinteressado. Pode mesmo dizer-se que o interesse está afastado da relação de amizade. É uma afeição desinteressada, até altruísta, alicerçada na longa convivência anterior, na qual todas as provas de lealdade e honestidade foram superadas. A partilha é então praticada naturalmente, sem esperar contrapartidas. Vou contar-vos o que me aconteceu em 1976, quando fui às vindimas a França.

Imediatamente, cessaram as perguntas e a atenção redobrou. Histórias antigas eram o gáudio do Serginho, e até a restante família não as desdenhava.

Eu não ia bem às vindimas; ia a caminho de Inglaterra, zangado com o nosso país, mas aproveitei para fazer o caminho à boleia pelo sul de Espanha. Demorei quase um mês a chegar a França e quando lá cheguei estava com pouco dinheiro. Então, parei duas semanas numa quinta acima de Bordéus para me reabastecer de algum dinheiro.


«Na altura, ganhei uns 400 e tal francos.» — Algumas lembranças pediam passagem, mas nem todas encaixavam na coesão da narrativa.


Chateado com o frio que o início de outubro trazia e eu não previra, em vez de progredir, resolvi voltar. E, como antes, aconteceram-me as peripécias mais bizarras.


«Estive mais de duas horas à espera por uma ligação telefónica para Portugal.»


Entretanto, os anfitriões apresentavam um bacalhau com batata doce que devia estar suculento. O Serginho, esse, já estava preso à história.

A questão é que eu, para não gastar dinheiro desnecessariamente, continuei à boleia. Fartava-me de andar a pé, e aceitava todo o tipo de transporte. Antes de Bordéus aceitei boleia de uma ambulância, que entrou numa via rápida, mas logo a seguir ficou sem gasolina. O enfermeiro, em vez de me deixar ali, vestiu-me uma bata e fomos ambos à boleia buscar gasolina. Simpático, não?


«Para sair de Bordéus, andei 14 quilómetros a pé.»


Ainda nesse fim de tarde, a começar a chover e sem encontrar dormida a preços aceitáveis, o que me valeu foi um empregado português de um hotel, que me cedeu, de graça, o modesto quarto dele, porque nessa noite não dormia lá. Estão a ver o que é solidariedade, ajuda desinteressada?

Sem te conhecer, primo Mário? Fogo!

Lá fora, um compatriota é um meio amigo. No dia seguinte, ia eu caminhando pela berma da estrada, no meio de uma paisagem deslumbrante de verde, quando vi que outro caminhante se aproximava. Era outro português que vinha das vindimas. Chamava-se Zé Duarte e era um tipo surpreendente. De 26 anos — menos dois que eu — e cabelo comprido, muito alegre, disse que tinha andado quinze dias à procura de vindimas, sem êxito, e tinha gastado a “massa” toda.


«Logo aí, desconfiei que podia ser mentira, talvez com medo de que eu o “cravasse”.»


Disse que tinha 6 passaportes conseguidos quando se lhe acabava a “massa”. Ia aos consulados portugueses, dizendo que fora roubado, e aí pagavam-lhe a viagem de regresso, davam-lhe dinheiro para comida — 200 ou 300 francos — e novo passaporte. Partilhei logo com ele uns “comes” e cigarros. Nada de mais, se pensarmos que éramos ambos portugueses e jovens e estávamos na difícil condição de “penduras”.


«Nada de mais, realmente. Mas se ele me tivesse pedido dinheiro? Hum, não sei, não!»


Nessa noite, depois de algumas boleias, ora separados ora juntos — numa delas, fui eu que intercedi por ele, que ia na estrada depois de uma boleia —, alugámos um quarto baratinho com cama de casal e lá jantámos também uns “comes” que comprámos.

Assim, sem o conheceres, primo? — estranhou o jovem Sérgio.

Pois, arrisquei, mas confiei no bom tipo que parecia ser. Aliás, eu é que pressionei, porque ele queria dormir numa gare ou num prédio em construção, como tinha feito nos últimos dias. Disse que só tinha 100 francos.


«Arrisquei, reconheço! Devo ter confiado no esconderijo em que tinha o grosso do dinheiro — um bolso falso de umas calças que iam no fundo da mochila.»


Deixa lá agora a história, senão não comes nada — ralhou a minha prima. Realmente, quase todos estavam a acabar e eu a meio do bacalhau.

Desculpa; está ótimo. A batata doce dá-lhe um toque exótico — redimi-me.

Concentrei-me na tarefa degustativa, enquanto os restantes faziam alguns comentários, realçando a imprudência de me relacionar tão proximamente com um desconhecido, ainda por cima com indícios preocupantes. A minha cabeça, entretanto, debitava lembranças.


«Era possível dormir por 60 escudos em Portugal, 100 pesetas em Espanha e 12 francos em França. A peseta estava a cerca de 50 centavos e o franco a cerca de 8 escudos. Muitos bancos espanhóis e franceses não aceitavam escudos, devido à proximidade temporal da revolução portuguesa. Só se podia sair do país com um máximo de 7500 escudos. Nas fronteiras havia que passar por uma alfândega e por um controlo de polícia.»


Quando atacámos o queijo de pasta mole, continuei.

No dia seguinte, a partir de Bayonne esteve sempre a chover. Resignámo-nos a apanhar um autocarro e depois o comboio para Hendaye e dali para Vitória, já em Espanha, tentando esgotar os últimos trocos franceses. O tempo das moedas nacionais tinha destas bizarrias. Na estação de Hendaye, o nosso grupo cresceu: um casalito francês pediu-nos ajuda para passar a fronteira, porque não tinha passaporte.


«Ele talvez tivesse, mas era um menor de 17 anos. Ela nem idade, nem papéis. Ambos a fugir aos pais.»


Em Irun — a fronteira espanhola — o Zé disse-lhes para seguirem ao longo da gare e da linha e saltarem o muro, para não passarem na alfândega. Pouco depois, apareceram do outro lado da estação, já na parte espanhola, mas ainda cheios de medo.

Andavas metido com boa gente... — ironizou Estevão.

Quando se passa por situações precárias, está-se mais disponível para ajudar outros em situações semelhantes. Esse foi um dos meus dias mais longos. Começámos por esperar três horas pelo comboio. Eu distribuí os meus “comes” e fomos os quatro até Vitória.


«O Zé tinha “erva” e o francês mostrou-se interessado em comprar. Foram ambos fumar um “charro”. Voltaram eufóricos.»


O Zé todo o caminho cantou todas as canções e mais uma, desde revolucionárias portuguesas, algumas da autoria dele, até egípcias, brasileiras e chilenas. Não se calou durante o tempo todo, enquanto os franceses e quatro espanhóis que iam no mesmo compartimento, vindos das vindimas, adormeceram. Em Vitória, à uma da manhã, todos os hotéis estavam cheios — disseram-nos — e os que tentámos estavam fechados.


«Não podíamos ir para a gare, por causa da miúda que tinha medo de ser apanhada pelos flics [polícias].»


O Zé sugeriu dormir debaixo de um viaduto, eu alvitrei ir andando até amanhecer, mas chovia um pouco e acabámos por entrar na porta de um prédio e dormimos na entrada: eles metidos nos sacos de dormir, ela sentada num saco e encostada a outro e eu sentado num degrau e reclinado sobre a mochila, e depois deitado em cima de um tapete de arame.


«O francês pagou por “erva”, que daria para fazer talvez uns dois cigarros, 400 pesetas, contadas ali na obscuridade e no silêncio imposto de uma entrada de residências.»


O frio não foi nada meigo. Posso garantir-vos que é das piores maneiras de passar uma noite.

Então, e a solidariedade e a amizade que tens estado a apregoar? — voltava ao ataque Estêvão. — Eles no saquinho e tu ao frio!

Estávamos todos irmanados no sacrifício e continuávamos juntos, que era o principal. Não havia era sacos para todos… — tentei eu a justificativa pelo circunstancial.

E depois, primo?

De manhã, nada se via ainda e já havia muitas pessoas a passar na rua. Alguém começou a descer as escadas do prédio onde estávamos e eis-nos a levantar de um salto, a arrumar as coisas e a “cavar” porta fora. A rapidez não foi suficiente porque o fulano que desceu viu bem que tínhamos saído do prédio e que tínhamos ar de ter estado por ali “acampados”. Os outros voltaram a deitar-se. Eu apenas me sentei — o frio era muito e eu ansiava pelo dia. Outros moradores desceram, mas dessas vezes sem reação da nossa parte. Daí a bocado, fomos para a estrada e separámo-nos. Nunca mais vi os jovens franceses.

E o outro gandulo? — mais uma “farpa” do Estêvão.

Até Burgos, ora intercedia eu por ele, ora ele por mim. O pior é que caía uma chuva gelada, de que nem a toalha que pus pela cabeça protegia. Na última boleia, no quentinho do carro e com a noite mal dormida, o sono atacou-me bem. Em Burgos, fui trocar 1000 escudos por pesetas e nem me despedi do Zé, pensando que voltaria a encontrá-lo mais tarde, mas não.


«Estava cansado, chateado com o frio e talvez temesse que o dinheiro do Zé acabasse e ele se “pendurasse” em mim. Pequenices pessoais que mesmo aquela tão especial viagem ainda não conseguira apagar.»


Nunca mais o vi. Como gostava de o reencontrar para reavivar estas memórias! Daí para a frente, talvez pela falta do otimismo do Zé, talvez pelo frio, não aguentei muito. Vesti mais uma camisa — o que perfazia uma camisola interior, duas camisas, uma camisola de gola alta e um casaco de malha —, mas apesar de me abrigar atrás de uma árvore, o frio entrava-me por todos os lados. Fui tomar um café à gare dos comboios e lá fiquei a cabecear com os cotovelos apoiados numa mesa. Depois, comprei bilhete para Portugal. Que se lixasse a sovinice. E a boleia e Espanha e mais o frio. Estava “pelos cabelos”. Às 11 da noite estava na Guarda.

Ó Mário — chateou-se a minha prima, que às vezes não é “boa de assoar” — achas que isso são histórias edificantes para o Sérgio? Andar feito vagabundo, a acamaradar com tipos sem eira nem beira?


«E não ouviste tu o que eu pensei entre aspas!»


Se calhar, afastei-me do assunto principal. O que eu queria mostrar é que podemos ajudar alguém, ser solidários e amigos, mesmo que não conheçamos bem esse alguém. Há sempre uma incerteza no primeiro contacto. O reverso é: como podemos ser generosos e magnânimos, sem nos arriscarmos a ser usados e abusados? O que achas, Sérgio?

Sim, vou emprestar o street-skate ao Bruno. Já antes me tinha decidido. Mas se ele mo estragar, nunca mais lhe empresto nada.

O licor de ameixa após o café soube-me maravilhosamente.


Joaquim Bispo

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Imagem:

Georg Baselitz, Os Grandes Amigos, 1965.

Museu Städel, Frankfurt am Main, Alemanha.

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10/04/2022

A confraria do macho ibérico

 

Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira em 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Lourenço, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona velha da Quinta de S. Vicente.

Os primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem ordenados de datilógrafa e de eletricista; valia-lhes não pagarem renda de casa. Depois ela conseguiu entrar para hospedeira de terra, no Aeroporto, e ele para técnico do Rádio Clube, mas, se entrava mais dinheiro, a separação determinada pelos horários ditou um maior afastamento.

Quando o 25 de abril de 74 rebentou com os dias negros da Ditadura, abriu também janelas de esperança a todos os que viviam vidas de cinza. Amélia desfrutou as euforias das manifestações, das lutas por melhores salários, das liberdades conquistadas. Passou a sair com colegas que, como ela, terminavam o turno à meia-noite, para beber um copo. Era bem mais apetecível do que ir a correr para casa, onde a esperava a sogra controladora. Lourenço fazia geralmente o turno da meia-noite às oito da manhã.

No grupo de quatro ou cinco colegas, rapidamente se aproximou de João Paulo, que, além de uma boa figura, tinha carro e era a boleia certa para casa. Por fins de novembro, Amélia passou a ser visita frequente do quarto dele na Estrada do Desvio. Nunca o marido suspeitou, embora a mãe não deixasse de o informar das horas a que ela chegava a casa.

Certa noite, lá por maio, o desejo não pôde esperar por um quarto — amaram-se no banco do pendura do carro de João Paulo, numa rua ainda sem casas dos altos do Restelo. A lanterna acesa da polícia de giro, tentando descortinar o que se passava para lá dos vidros embaciados, foi um final desagradável — pós-final, felizmente. Os dois agentes identificaram os amantes e aconselharam maior discrição.

No dia seguinte, o alarme: um dos polícias telefonou para casa de Amélia — sabe-se lá com que intuitos lúbricos — e não houve como negar a relação extra-conjugal. Depois de discussões violentas, Amélia saiu de casa. João Paulo recolheu-a e durante umas semanas parecia que a situação era o melhor que lhes podia ter acontecido, a não ser…

A não ser pelos meandros escuros da natureza humana. Pareceu a João Paulo que a situação de Amélia era de dependência, e tornou-se um pouco sobranceiro. Além disso, a relação perdera aquela fulgurância de chama que só a clandestinidade atiça. Sem ser furtivo, o sexo perdia parte da graça. E Amélia não deixou de o perceber. Dois meses depois, mudou-se para um quarto que dividia com uma amiga.

João Paulo não gostou. Mesmo sem a excitação de coisa proibida, sexo em casa, disponível sem muito trabalho, agradava à sua preguiça inata. Agora voltava a ter de se esforçar: combinar encontros, organizar e acompanhar passeios, fazer trabalho de sedução. E tornou-se altamente ciumento. Quando soube que Amélia tinha saído com um grupo de outro colega, fez uma cena. Mas Amélia tinha crescido, à imagem do país, que estava muito mais aberto e liberal. Já não estava para aturar manápulas de controlo. E rompeu com João Paulo.

Ao contrário do homem de ideias arejadas que João Paulo parecera ser, revelou-se, afinal, um tipo misógino e vingativo: no auge do ressabiamento, telefonou para o ex-marido de Amélia; identificou-se, pediu desculpa pelos procedimentos anteriores — “qual é o homem que não aproveita, não é?” —, declarou-se solidário com a sua situação de marido enganado e pediu solidariedade para a sua similar situação de amante traído. Por palavras hábeis, demonstrou como ambos tinham sido atirados para a mesma humilhante condição por uma mesma pessoa, uma mulher volúvel, sem caráter. A terminar, indicou pormenorizadamente o local onde ela se encontrava com o novo namorado.

Lourenço, querendo recuperar alguma dignidade que julgava perdida, dispôs-se a mostrar firmeza conjugal. Dirigiu-se ao local indicado e efetivamente apanhou os amantes em flagrante. Uma moca de Rio Maior, que nessa altura era muito popular nas lutas políticas norte-sul, foi a ajudante que convocou para dar o necessário corretivo na ex-mulher. Deixou-a inanimada com escoriações e hematomas nas pernas, nas costas, no peito e um traumatismo craniano. O namorado escapou antes que Lourenço pudesse apanhá-lo.

A Polícia tomou conta da ocorrência e o processo da agressão foi a tribunal em novembro. Depois de ouvir as queixas de uma e as razões de outro, o despacho do juiz foi claro: admoestava-se o ex-marido pela conduta descontrolada, mas tomava-se em conta a humilhação a que tinha sido sujeito. Verberava-se com ênfase a conduta traiçoeira de Amélia, causa primeira das posteriores agressões. Referia-se que, felizmente para ela, já não se apedrejavam adúlteras, como era de lei nos tempos sagrados relatados na Bíblia.

De nada valeu que o advogado de Amélia lembrasse que não era ela que estava a ser julgada, que ela é que fora agredida barbaramente, e que era uma injustiça culpabilizar a vítima.

Amélia ouviu uma repreensão verbal por conduta indigna; o ofendido um pedido de comiseração, tendo em conta os tempos desvairados que se atravessavam. A mulher saiu calada. Sentiu-se outra vez género menor. Percebeu que a onda de liberdade e luz que a sociedade cavalgava não tinha tocado alguns setores.

Pouco depois, o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 75 punha um ponto final nas aspirações progressistas pós-ditadura de Salazar. Nada que ainda causasse perplexidade a Amélia. Claramente, o 25 de abril não chegara à Justiça, mas também já não ia chegar. Três meses depois, aceitou a carta de chamada de um primo e mudou-se para o Canadá. De vez.

Joaquim Bispo

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Este conto, com o título “Cinzas da vida”, foi um dos selecionados para a 32ª edição (março/abril de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 114 a 116).

https://drive.google.com/file/d/1G3VbQg7s19peE-PweF0EsaN7FZO9JfIB/view

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Também com o título “Cinzas da vida”, integra a coletânea “Direitos humanos e minorias” da Revista Gueto, 2º semestre de 2017, edição especial, pp. 64–66.

https://gueto.files.wordpress.com/2018/01/gueto_especial_02.pdf

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Imagem: José de Brito, Mártir do Fanatismo, c. 1895.

Coleção Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa.

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10/03/2022

A final olímpica

 


Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.


No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros. No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.

Victor Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em 2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.

O polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança, mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço — o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente. A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a bomba atómica?


Horas mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão. A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos necessários, a qualidade das comunicações com os satélites geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual, indetetável sem aparelhagem sofisticada.

Quase hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada um com a sua espingarda nos joelhos.

Deviam estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado, percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres, vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.

Era um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.

Meu major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que faço?

O superior hierárquico observou as imagens, por um momento.

Esborracha essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.

Sooter posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo, movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:

Tudo pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis prontos. Aguardo autorização de disparo.

Dá-lhes com tudo o que tens! — gritou o oficial.

Sooter recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene. Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.

Os treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as explosões ofuscaram a imagem de seguida.

Não pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava. Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no Afeganistão, em total segurança.

Duas horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso. Era um grande país! Tinha orgulho nele.


Uns dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT GUNS [Dutares não armas].

Dias depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read my stones [Leiam as minhas pedras]!


Joaquim Bispo


Imagem: Drone americano MQ-9 Reaper. Da net.

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Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — edição especial — História, da Elemental Editoração, 2017, pp. 61–63.

https://www.smashwords.com/books/view/758968


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10/02/2022

As tentações de São Batráquio

 

Ao depararem-se com uma capelinha perdida junto à desolada foz do Sorraia, poucos saberão as peripécias por que passou o santo do seu orago.

São Batráquio nasceu em Sarilhos Pequenos numa família de apanhadores de amêijoas. Moço calado e solitário, desde cedo manifestou problemas de relacionamento e comportamentos desviantes. Era presa frequente de terrores noturnos e várias vezes desapareceu de casa, sendo sempre encontrado escondido em locais isolados, como casebres em ruínas ou abrigos de pescadores em canaviais. Mostrando-se avesso à apanha de bivalves, acabou por aceitar tarefas de sacristão na igreja de uma terra próxima, o que custou ao pai umas boas sacadas de amêijoas para o senhor padre da dita freguesia. Tinha então dezassete anos.

Durante meses, o serviço foi aceitável, com exceção do irritante jeito de imitar amiúde e em surdina o som de algum dos animais com que se cruzara, sobretudo gaivotas e rãs. Era muito prestável no apoio ao padre, no preparo dos paramentos e das alfaias litúrgicas, na limpeza da igreja e no arranjo dos altares e dos santos aí expostos. Quando não havia serviços religiosos, refugiava-se no despojado cubículo da pia batismal, em busca de solidão, ou no escuro e reservado confessionário. O que poderia ser um tempo de relaxamento e reflexão tornava-se, frequentemente, em eternidades de pesadelo. É que o demónio sabe todas as fraquezas de cada homem. Conhece as suas aspirações mais inconfessáveis, os seus anseios mais pecaminosos. E se, com muitas pessoas, — que alegremente se entregam aos prazeres mais obscenos —, nem se dá ao trabalho de as tentar, em relação a São Batráquio sabia que ele procurava resistir, se amarfanhava de desejos reprimidos, lutava com quantas forças tinha. Por isso o diabo tinha de lançar ilusões e insinuar as doçuras e os encantos das práticas pecaminosas. Os cálices pareciam abarrotar de iguarias, fazendo São Batráquio salivar e resmungar:

Huarrh!

As portinholas de todas as caixas de esmolas abriam-se por si, oferecendo-se ao futuro santo em dezenas de moedas brilhantes. E ele, de mãos trementes, grasnava:

Huarrh!

Pelos espaços vazios da igreja o diabo fazia desfilar belezas femininas de provocante luxúria, de irresistível apetibilidade. E ostentavam o rosto angélico das santas dos altares. O pecador, fremente de desejo, coaxava:

Huarrh!

Estas eram as fases de maior penar, os tempos infindos em que ele agonizava de dores do espírito, tentando conter-se. De dia, geralmente, conseguia. Cravava as unhas na pele, lavava o rosto com pedras de gelo, açoitava-se com o azorrague dos carrascos de Cristo atado à coluna. À noite, era mais difícil. Muitas vezes, sucumbia: empanturrava-se da bolacha de hóstias e do vinho de missa; com demorado empenho e habilidade, conseguia retirar algumas moedas das caixas; acariciava com redobrada sensibilidade os contornos dos rostos sagrados de Santa Eufémia e da Virgem da Assunção e as pregas da madeira pintada dos seus vestidos, temente, mesmo assim, de se atrever a imaginar o hipotético corpo santo que se esconderia por dentro.

Huarrh!

Depois, relaxava. Parecia que os seus atos não tinham consequências, chegava a sentir-se feliz e confiante. Mas então, vinham as penas. Os remorsos faziam-no amarrotar-se por dentro, o medo dos infernos fazia-o tremer e chorar convulsivamente. Tudo piorou, depois de ter bisbilhotado alguns livros de arte do padre e se ter deparado com as estampas das pinturas de Jerónimo Bosch. Via demónios que ameaçavam esquartejá-lo com navalhas de amanho de peixe e arpões, com redes que o arrastavam para o fundo das águas, criaturas horrendas cujos olhos lançavam fogo, cuja urina derretia as lajes da igreja e cuja boca cuspia vermes e exalava miasmas nauseabundos.

Huarrh!

Então o santo pecador jurava ser ainda mais forte da próxima vez que as tentações o assaltassem. Mas os demónios que regem as pulsões dos sentidos não desaparecem nunca. Às vezes parece que estão esquecidos, que o pobre mortal foi relegado para a montureira dos objetos usados e vencidos, mas há sempre um outro dia que amanhece maldito. E mesmo os futuros santos, antes de vencerem os seus demónios, são marionetas nas mãos nefandas do demo. E os pobres pecadores voltam aos velhos pecados, com a mesma certeza do condenado perante o cadafalso, mas com o entusiasmo das alegrias do êxtase. Nunca tão bem é aplicado o conceito de “ciclo vicioso”.

Este jovem pecador escolhia sempre o fim do dia para pôr em prática os seus desvarios mais obscenos, com os quais mais se comprazia o diabo. Depois de a igreja se esvaziar e o padre sair, fechava as portas, apagava as luzes e mantinha acesa só meia dúzia de velas elétricas das promessas. Certa vez, foi negligente. Não vendo o padre nem na nave, nem na sacristia, convenceu-se de que ele já tinha saído. Na verdade, o clérigo ficara sentado no confessionário, após uma confissão particularmente deprimente, meditando nas atribulações das vidas dos pobres, e acabou por adormecer. Quando saiu de trás do pano, deparou com o jovem sacristão em cima do altar de Santa Iria, roçando-se e acariciando a escultura da santa, com as roupas descompostas.

Huarrh!

Ao pecador apanhado não pareceram muito diferentes os tratos que o padre lhe aplicou, dos habituais pesadelos pós-pecado. Mas, desta vez, o verdugo brandia uma vara de marmeleiro e envergava batina. Durante uma semana, mal conseguiu conciliar o sono, com as dores que o percorriam. Curiosamente, parecia que os açoites tinham afastado os pesadelos. Durante meses, o pecador não se atreveu a pensar em santas, de modo carnal. Até o padre começou a pensar que talvez o corretivo tivesse sido remédio santo. Mas o mafarrico está sempre à espreita. Só ele terá congeminado um plano tão malévolo: conseguiu que este eficaz padre fosse deslocado para a igreja de uma das freguesias de Alcochete, a freguesia deste que tal vos conta. E terá incutido na ideia do padre de que era melhor levar aquele problemático sacristão, então com 20 anos, do que deixá-lo ao cuidado incerto de um incerto substituto. Quando São Batráquio viu o interior da nova igreja e as formosas santas que ocupavam os altares, temeu pela tentação. Santa Teresinha pareceu-lhe a mais sensual. De olhos ingénuos, não era uma santa de madeira pintada como as que conhecia — um manto branco cobria o burel que lhe vestia o corpo, sob o qual apareciam dois pezinhos descalços...

Huorrh!

O diabo que nele habitava sabia que a partir daquele momento o trajeto de pecado do nóvel sacristão estava traçado. Era uma questão de tempo e oportunidade. E ela chegou tão cedo quanto esperava. Foi no domingo de Páscoa. Padre e sacristão percorreram toda a freguesia, casa por casa, a dar o Senhor a beijar. Depois das maratonas de confissões próprias da época, aquela correria de sobe e desce escadas deixaram o clérigo de rastos. Percebia-se que iria tombar na cama exausto. São Batráquio manteve-se acordado no escuro do seu quarto, como presa encurralada. Pelas três da manhã, decidiu-se. Abriu a porta em silêncio e deixou-se conduzir pelas sombras das ruas desertas, a caminho da igreja. Ao entrar, sussurrou:

Huorrh!

Fechou tudo, deixou só a lamparina do Santíssimo, para conferir um certo mistério exaltante, tapou com um pano negro os rostos das outras figuras sagradas, Sagrado Coração de Jesus incluído, para não sentir os seus olhares nas costas, e trepou para o altar onde Santa Teresinha parecia esperá-lo.

Huorrh!

Como seria acariciar aquelas vestes? Sentiria logo as formas que se escondiam no interior? O coração batia-lhe. Seria capaz de meter a mão por dentro do hábito? A excitação emocionava-o.

Huorrh!

Acariciou a face sedosa da imagem. Abriu-lhe o manto, contemplando a graciosidade austera do hábito. A mão hesitou em tocar a sua superfície. Era denso e rústico. Percorreu-o, tentando encontrar as formas do corpo da santa francesa. Avançou mais e mais, mas os seus dedos não encontravam qualquer resistência. Num desvario aterrado, agarrou o hábito com ambas as mãos, em vão. Finalmente, em urgência, abaixou-se e levantou-o por inteiro.

Huorrh!

Manteve-se por muitos segundos, boquiaberto, sem atinar no sentido do que via: a santa era um cabide só com pés e cabeça, em que estavam dependurados o manto e o hábito. Apenas. Não havia corpo algum. Apenas um espaço vazio por baixo do hábito. Em vez da sensualidade esperada, aquela estrutura transmitia escárnio. Zombaria. Imaginou quanto terá rido o sádico santeiro, ao fazer aquela artimanha. Em que ele tinha caído.

Huooooorrh! — berrou.

Enlouquecido, começou a pontapear todo aquele embuste. Saltou para o chão, arrancou as toalhas dos altares, derrubou lampadários e tocheiros, partiu quanto pôde. O incêndio começou na precária lamparina do Santíssimo e rapidamente alastraria à igreja inteira, mas São Batráquio, assustado, subiu à torre sineira e tocou a rebate. Apareceu muito povo e uma ambulância acabou por levar o tresloucado.

Quando teve alta, São Batráquio não voltou para nenhuma das suas igrejas. Caminhou sem destino e foi assentar-se num lameiro perto da foz do Sorraia, na freguesia de Póvoa de Santa Clara. Aí passou a alimentar-se de moscas, imitando as rãs. De vez em quando, oferecia punhados de moscas aos pescadores que por ali passavam. Foram eles que lhe criaram a fama de santo. As moscas que ele lhes oferecia eram um isco milagroso na pesca. E foram eles que lhe deram o nome. Na verdade, São Batráquio fora batizado como Eustáquio, mas a parcial semelhança fónica, os sons que emitia e a sua atividade de caça-moscas, como os batráquios, fizeram o resto.

Quando morreu de pneumonia, ergueram-lhe uma capelinha no meio do lameiro, toda forrada por dentro de painéis de azulejos com cenas da sua vida. Fazem-lhe uma festa em maio, a que acorrem quase todos os habitantes da Póvoa de São Batráquio — o novo nome da terra. A sua imagem, que ostenta na mão o atributo de um pequeno mata-moscas, é levada em andor em volta da capela. Dizem que ajuda nas artes da pesca, protege dos incêndios e cura resfriados.

Joaquim Bispo

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Imagem: Santa Beatriz da Silva

Casa-Museu Santa Beatriz da Silva, Campo Maior.

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Este texto foi um dos selecionados para a 31ª edição (janeiro/fevereiro de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 86).

https://drive.google.com/file/d/1aHqFkXwMRwbb3-YxgZi2wSUxZLIvNDyU/view

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10/01/2022

Meia dúzia de safanões

 



«O novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos terroristas, desde que nos salvemos e aos nossos compatriotas?»

Enquanto os colegas analisavam o conteúdo de uma escuta à comunicação de um suspeito, foi lendo o corpo do artigo. De repente, cresceu a agitação à sua volta. Parecia que as semanas de vigilância nas comunicações tinham dado frutos. Hasnain, o intérprete que trabalhava para os serviços secretos, foi perentório:

Bomba! Eles falar em bomba. Falar “Baixa-Chiado”. Passar gravação outra vez!

Não foi possível detetar a origem da chamada, mas o SS já conhecia a morada do recetor: uma casa decrépita na zona da Mouraria.

Eram sete e meia da manhã quando os agentes entraram na rua do Capelão, já de saídas bloqueadas. O suspeito, um paquistanês de menos de 30 anos, não ofereceu qualquer resistência. Uma busca minuciosa encontrou uma dúzia de telemóveis e uns vinte sacos, de cinco quilos, de farinha. Antes das nove, iniciou-se o interrogatório nas instalações dos Serviços. Ahmid, o suspeito, garantia que não sabia quem lhe tinha telefonado.

Tu não me venhas com tretas! Quem é que te telefonou? Era uma ordem para um atentado? Fala, senão faço-te engolir esses dentes! — irritava-se o agente Moreira.

Eu não sabe. Telefone tocar, Ahmid ouvir.

Parecia sincero, mas com terroristas nunca se sabe.

Mas quem foi e o que queria?

Não sabe. Falar Lisboa, perguntar loja fruta.

Não se passou disto toda a manhã, até que, pelas duas da tarde, os quatro agentes envolvidos na detenção, cansados e irritados, resolveram fazer uma pausa para comer qualquer coisa. Um deles sugeriu uma conhecida adega do Lumiar, ali perto. Àquela hora já devia ter lugares.

Assim que se sentaram, veio o assunto de serviço à baila:

Eh, pá, não podemos ficar nisto, conversa, conversa… e nada — equacionava o Martins.

E uma chapada de vez em quando — brincava o Mendes. — Só para aquecer…

Isto se fosse na América não ficava por aqui. O Trump já disse que os serviços lhe garantiram que a tortura resulta — lançava o Moreira. — «Absolutely!»

Eles lá não são de modas. Vai tudo a waterboarding — concordava o Martins.

Mas eles não tinham proibido isso? O Obama!

Esta cena da verdade alternativa, de que agora se fala muito, já tem muita tradição por aquelas bandas — teorizava Neves, o mais calado. — Eles têm um problema com a verdade. Condenaram a Manning; e vão engavetar o Snowden e o Assange, se os apanharem lá. A verdade está amordaçada e emparedada nas masmorras da Administração.

Eh, lá! Temos poeta — ironizava o Mendes.

Quando atacaram o “borrego no forno”, passaram a falar abertamente da técnica de tortura conhecida como waterboardind ou afogamento simulado, talvez por uma mórbida associação de carnes indefesas.

Dizem que aquilo resulta mesmo. Porque o tipo com o pano encharcado na cara não consegue respirar, porque, se respirar, respira água. Se a água entra na faringe, o tipo engasga-se e a sensação de morte iminente por afogamento é avassaladora — explicava o Martins.

Eh, pá, como é que sabes isso tudo? — perguntava o Mendes. — Andaste a pesquisar... Não me digas que queres aplicar isso ao nosso Ahmid?

Mendes! Porra. Contém-te! — ralhou o Martins, que parecia a voz que congregava as dos outros. — Mas temos da fazer alguma coisa — adiantou em voz baixa, enquanto rastreava o resto da sala.

Eu também acho — apoiava o Moreira. — Até uma gaja como a Meryl Streep disse uma vez que, meditando sobre o assunto, chegou à conclusão que, se a tortura de um suspeito de terrorismo evitar milhares de mortos, então acha a tortura aceitável.

Nem de propósito — atalhou o Neves, enquanto sacava do bolso interior do casaco a revista que estava a ler nessa manhã. — Em 1932, Oliveira Salazar dizia isto: “Os presos maltratados eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas. Só depois de empregar meios violentos é que eles se decidiam a dizer a verdade. E eu pergunto a mim próprio se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não justifica, largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras.” Salazar e Meryl Streep, a mesma luta...

— “Meia dúzia de safanões”… O tipo era um cómico — ironizava o Mendes, refeito.

Eh pá, não vamos misturar — reagia o Moreira. — Esta gaja é lá dos direitos humanos e dessas merdas, que agora até disse, referindo-se ao Trump, que “desrespeito convida ao desrespeito e violência incita à violência”.

Adoro coerências — adiantou o Neves. — O desrespeito do Trump incomoda-a, mas estava disposta a torturar prisioneiros.

Para salvar vidas…

Eh, pá, se a gente cede nos princípios, às tantas estamos a fazer o mesmo que os terroristas — reincidia o Neves.

Nós estamos a defender os nossos concidadãos. Esses terroristas não têm nada que ver com os nossos valores, com a nossa cultura. Se for preciso dar a volta a algum… temos pena.

Os nossos valores... antes ou depois de torturarmos pessoas?

Arre, que é estúpido! — exagerou o Moreira. — Desculpa. Ó Neves, porra!; não somos todos iguais. Eles são outra coisa. E se ainda por cima nos querem matar…

Eu também já li — defendia-se o Neves. — Parece que aquilo é lixado. Mesmo que o tipo desconfie que é simulação, nunca tem a certeza. A aflição é aterradora. O tipo fica traumatizado durante muito tempo. E há tipos que desistem e deixam entrar demasiada água nos pulmões e, se não morrerem, ficam com sequelas graves. Mas o mais ingrato, nesta cena de torturar ou não torturar, é que os resultados não são fiáveis. Um tipo nessas circunstâncias diz qualquer coisa para se livrar do que lhe parece uma morte certa.

É isso que é preciso, que fale, que diga o que nos interessa. Achas que um tipo a afogar-se vai pensar em dizer uma mentira? — racionalizava o Martins.

Se ele não tiver uma verdade para dizer, ou se a verdade que está a dizer não for aceite, ele diz o que lhe vier à cabeça. É o caso dos inocentes.

Sempre me saíste um lírico, ó Neves… Achas que aquele tipo que lá temos está inocente? Achas que não sabe quem lhe estava a telefonar? O Hasnain ouviu bem falar em bomba. Eh, pá, temos que dar este pequeno passo. Para defendermos a vida dos nossos concidadãos, que é a nossa missão sagrada. Ficas de consciência tranquila se falharmos e explodir uma bomba na estação de metro da Baixa-Chiado? Era uma carnificina.

O Mendes tinha-se calado de vez. As piadas não cabiam ali. O Moreira estava intimamente satisfeito com a argumentação do Martins. Concordava a cem por cento. O Neves sentia-se desconfortável, mas tinha dificuldade em arranjar argumentos. Não era fácil contrapor postura humanista, civilizacional, ao perigo de atentado potencial. Como arriscar? Havia uma enorme assimetria de risco envolvido.

Sem autorização de cima, temos de ser muito cautelosos. Não podemos forçar demasiado. Se o tipo não falar às primeiras, paramos, ok? — tentou ainda o Neves.

De regresso aos Serviços, passaram o resto da tarde com perguntas marginais.

Para que queres tanta farinha em casa? É para fazer uma bomba lenta?

Fazer frito, senhor. Ahmid vende na loja.

E os telemóveis?

Ahmid arranja.

Depois de todo o pessoal administrativo ter saído, levaram o suspeito para uma garagem e amarraram-no de costas sobre uma bancada, com a cabeça um pouco mais baixa.

— “It’s now or never”, Ahmid. Ou falas agora ou já não falas mais. Quem é que te telefonou?

O paquistanês apresentava um olhar aterrado. Até ali, tudo tinha sido mais ou menos esperado, mesmo as bofetadas. Agora as movimentações dos quatro homens indicavam que vinha aí violência extrema. Esqueceu-se até de responder. Um dos agentes colocou-lhe um pano sobre a cara, enquanto outro começou a verter água de um jarro sobre a zona entre boca e nariz. Ahmid manteve a boca fechada por uns momentos, sentindo alguma a inundar o nariz e a entrar para a garganta. Aguentou quase meio minuto sem respirar, mas um engasgamento irrefreável tomou conta do seu corpo. Conseguiu expelir alguma água, mas outra entrava e nenhum ar. Tossia água para fora e para dentro. Começou a estrebuchar violentamente. Uma angústia terrível assaltou-o. O coração ribombava. A morte devia ser aquilo. Lançou um último e desordenado pensamento para o seu jovem irmão que ficara no Paquistão.

Quem é que te telefonou? — foi o som que se ordenou um pouco, depois de lhe tirarem o pano da cara. O coração batia freneticamente. Inspirou num urro, tossiu convulsivamente, sentiu o ar a queimar nos pulmões. — Quem, quem? — repetia a voz. Antes que lhe colocassem o pano de novo sobre a cara, Ahmid gritou:

Allahu Akbar!

Eu não disse? — afirmava-se o Moreira, segurando o pano ensopado sobre o rosto de Ahmid. — Dá-lhe mais!

Pessoal, calma! Tínhamos combinado não exagerar — afligia-se o Neves.

Alguns sons sarcásticos dos colegas foram a primeira resposta.

Ó Neves, estamos nisto juntos — ripostou o Martins. — Se não assumes as tuas responsabilidades, sai daqui. Cá estão os colegas para fazer o trabalho que o menino não quer fazer. Sem problema. Vai! Vai lá! Mas já sabes… Não fales disto a ninguém, ok? Ok?

Neves aceitou a sugestão ordenada e humilhante. Meteu-se no carro e foi para casa, profundamente deprimido. Sentia-se incompetente e desenraizado. Começava a questionar seriamente a sua vocação para agente secreto. Parecia ser uma questão de estômago.

Joaquim Bispo

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Imagem: Fernando Botero, Abu Ghraib (série), 2005.

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Este texto foi um dos selecionados para a 30ª edição (novembro/dezembro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 134 a 138).

https://drive.google.com/file/d/1qxX4CyYq2aNHEmXCLUBZOq6w0gIc__-y/view

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Também integra a coletânea Civilização e Barbárie da Revista Gueto, 1º semestre de 2017, edição especial, pp. 63–68.

https://gueto.files.wordpress.com/2017/07/001_revista_especial.pdf

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