10/04/2022

A confraria do macho ibérico

 

Ficou-lhes sempre na lembrança que tinham casado uns dias antes de Salazar ter caído da cadeira em 1968. Escolheram a igreja de São João Batista ao Lumiar, para a cerimónia religiosa, e o Castanheira de Moura, um restaurante da Estrada da Torre, para a boda. Vieram muitos familiares de Amélia, do Alvito, e alguns outros convidados do noivo Lourenço, da zona de Lisboa. Enquanto não arranjavam casa, ficaram a viver em casa da mãe dele, que tinha um andar espaçoso na zona velha da Quinta de S. Vicente.

Os primeiros anos correram bem, tanto quanto podem correr a quem tem ordenados de datilógrafa e de eletricista; valia-lhes não pagarem renda de casa. Depois ela conseguiu entrar para hospedeira de terra, no Aeroporto, e ele para técnico do Rádio Clube, mas, se entrava mais dinheiro, a separação determinada pelos horários ditou um maior afastamento.

Quando o 25 de abril de 74 rebentou com os dias negros da Ditadura, abriu também janelas de esperança a todos os que viviam vidas de cinza. Amélia desfrutou as euforias das manifestações, das lutas por melhores salários, das liberdades conquistadas. Passou a sair com colegas que, como ela, terminavam o turno à meia-noite, para beber um copo. Era bem mais apetecível do que ir a correr para casa, onde a esperava a sogra controladora. Lourenço fazia geralmente o turno da meia-noite às oito da manhã.

No grupo de quatro ou cinco colegas, rapidamente se aproximou de João Paulo, que, além de uma boa figura, tinha carro e era a boleia certa para casa. Por fins de novembro, Amélia passou a ser visita frequente do quarto dele na Estrada do Desvio. Nunca o marido suspeitou, embora a mãe não deixasse de o informar das horas a que ela chegava a casa.

Certa noite, lá por maio, o desejo não pôde esperar por um quarto — amaram-se no banco do pendura do carro de João Paulo, numa rua ainda sem casas dos altos do Restelo. A lanterna acesa da polícia de giro, tentando descortinar o que se passava para lá dos vidros embaciados, foi um final desagradável — pós-final, felizmente. Os dois agentes identificaram os amantes e aconselharam maior discrição.

No dia seguinte, o alarme: um dos polícias telefonou para casa de Amélia — sabe-se lá com que intuitos lúbricos — e não houve como negar a relação extra-conjugal. Depois de discussões violentas, Amélia saiu de casa. João Paulo recolheu-a e durante umas semanas parecia que a situação era o melhor que lhes podia ter acontecido, a não ser…

A não ser pelos meandros escuros da natureza humana. Pareceu a João Paulo que a situação de Amélia era de dependência, e tornou-se um pouco sobranceiro. Além disso, a relação perdera aquela fulgurância de chama que só a clandestinidade atiça. Sem ser furtivo, o sexo perdia parte da graça. E Amélia não deixou de o perceber. Dois meses depois, mudou-se para um quarto que dividia com uma amiga.

João Paulo não gostou. Mesmo sem a excitação de coisa proibida, sexo em casa, disponível sem muito trabalho, agradava à sua preguiça inata. Agora voltava a ter de se esforçar: combinar encontros, organizar e acompanhar passeios, fazer trabalho de sedução. E tornou-se altamente ciumento. Quando soube que Amélia tinha saído com um grupo de outro colega, fez uma cena. Mas Amélia tinha crescido, à imagem do país, que estava muito mais aberto e liberal. Já não estava para aturar manápulas de controlo. E rompeu com João Paulo.

Ao contrário do homem de ideias arejadas que João Paulo parecera ser, revelou-se, afinal, um tipo misógino e vingativo: no auge do ressabiamento, telefonou para o ex-marido de Amélia; identificou-se, pediu desculpa pelos procedimentos anteriores — “qual é o homem que não aproveita, não é?” —, declarou-se solidário com a sua situação de marido enganado e pediu solidariedade para a sua similar situação de amante traído. Por palavras hábeis, demonstrou como ambos tinham sido atirados para a mesma humilhante condição por uma mesma pessoa, uma mulher volúvel, sem caráter. A terminar, indicou pormenorizadamente o local onde ela se encontrava com o novo namorado.

Lourenço, querendo recuperar alguma dignidade que julgava perdida, dispôs-se a mostrar firmeza conjugal. Dirigiu-se ao local indicado e efetivamente apanhou os amantes em flagrante. Uma moca de Rio Maior, que nessa altura era muito popular nas lutas políticas norte-sul, foi a ajudante que convocou para dar o necessário corretivo na ex-mulher. Deixou-a inanimada com escoriações e hematomas nas pernas, nas costas, no peito e um traumatismo craniano. O namorado escapou antes que Lourenço pudesse apanhá-lo.

A Polícia tomou conta da ocorrência e o processo da agressão foi a tribunal em novembro. Depois de ouvir as queixas de uma e as razões de outro, o despacho do juiz foi claro: admoestava-se o ex-marido pela conduta descontrolada, mas tomava-se em conta a humilhação a que tinha sido sujeito. Verberava-se com ênfase a conduta traiçoeira de Amélia, causa primeira das posteriores agressões. Referia-se que, felizmente para ela, já não se apedrejavam adúlteras, como era de lei nos tempos sagrados relatados na Bíblia.

De nada valeu que o advogado de Amélia lembrasse que não era ela que estava a ser julgada, que ela é que fora agredida barbaramente, e que era uma injustiça culpabilizar a vítima.

Amélia ouviu uma repreensão verbal por conduta indigna; o ofendido um pedido de comiseração, tendo em conta os tempos desvairados que se atravessavam. A mulher saiu calada. Sentiu-se outra vez género menor. Percebeu que a onda de liberdade e luz que a sociedade cavalgava não tinha tocado alguns setores.

Pouco depois, o golpe contra-revolucionário de 25 de novembro de 75 punha um ponto final nas aspirações progressistas pós-ditadura de Salazar. Nada que ainda causasse perplexidade a Amélia. Claramente, o 25 de abril não chegara à Justiça, mas também já não ia chegar. Três meses depois, aceitou a carta de chamada de um primo e mudou-se para o Canadá. De vez.

Joaquim Bispo

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Este conto, com o título “Cinzas da vida”, foi um dos selecionados para a 32ª edição (março/abril de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 114 a 116).

https://drive.google.com/file/d/1G3VbQg7s19peE-PweF0EsaN7FZO9JfIB/view

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Também com o título “Cinzas da vida”, integra a coletânea “Direitos humanos e minorias” da Revista Gueto, 2º semestre de 2017, edição especial, pp. 64–66.

https://gueto.files.wordpress.com/2018/01/gueto_especial_02.pdf

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Imagem: José de Brito, Mártir do Fanatismo, c. 1895.

Coleção Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa.

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10/03/2022

A final olímpica

 


Quando acordou, Victor Sooter percebeu que o estranho sonho da final olímpica de Matança em Massa, em que, minutos antes, estivera envolvido, fora desencadeado pela final do jogo de basquetebol entre os Estados Unidos e a Sérvia, nos Jogos Olímpicos do Rio de 2016, a que assistira, com o seu filho John, de nove anos, na tarde do dia anterior. A partida tivera vários momentos de grande disputa e pai e filho tinham apoiado com saltos e urros a equipa pátria. Finalmente a América vencera. Como sempre. Com uma vantagem esmagadora: 96–66.


No sonho de Sooter, o vencedor da modalidade olímpica de Matança em Massa não é previsível. Há vários concorrentes com boas possibilidades, mas vão-se combatendo e eliminando uns aos outros. No fim, o Estado Islâmico sobrepõe-se a outros assassinos em massa e ascende a adversário dos Estados Unidos na final. A cada operação americana, o Estado Islâmico responde com a eliminação de mais uns quantos militantes curdos ou mais uns quantos aldeãos sírios.

Victor Sooter tem um papel importante na disputa: como na vida real, é controlador de drones de guerra. Como num jogo de vídeo, multiplica-se em disparos sobre alvos inimigos: um comboio de abastecimentos, uma reunião rebelde, o carro de um dirigente de milícias. Os marcadores de baixas rodam ininterruptamente. Os Estados Unidos estão em risco de não conseguir a medalha de ouro, como tinham conseguido facilmente em 2004 e 2008 contra o Iraque, e em 2012, contra a Líbia e a Síria.

O polegar direito de Sooter metralha continuamente, enquanto a mão esquerda coordena com grande perícia o sobrevoo do drone. As explosões no solo sucedem-se, o marcador dos Estados Unidos avança, mas o do Estado Islâmico parece descontrolado. Sooter faz um esforço — o esforço que a pátria espera —, toma o comando de vários drones ao mesmo tempo e metralha alucinadamente, acionando os botões de disparo em sucessão coordenada e eficaz. No solo, uma sequência ininterrupta de explosões indica-lhe que a sua missão patriótica está a ser bem sucedida. O contador de baixas roda vertiginosamente. A tensão é grande. Quem vencerá? Será preciso lançar outra vez a bomba atómica?


Horas mais tarde, na base de comando de drones, em Houston, Victor Sooter recebe ordem de pilotagem remota de um drone da base de Bagram, no Afeganistão, e ataque a uma aldeia das zonas tribais do Paquistão. A inteligência aliada tinha detetado movimentações suspeitas em área de influência rebelde. Depois de receber indicações da total operacionalidade do aparelho, confirmar o acesso a todos os comandos necessários, a qualidade das comunicações com os satélites geoestacionários e das imagens de todas as suas 16 câmaras, Sooter descolou e rumou para as coordenadas indicadas, à altitude habitual, indetetável sem aparelhagem sofisticada.

Quase hora e meia depois, sobrevoava a região montanhosa procurada, e logo o estreito planalto onde assentava a aldeia referida. Sooter confirmou, pelas imagens conjugadas, que decorria uma reunião de uma dúzia de homens adultos, dispostos em semicírculo, vestidos de claro e ostentando algo na cabeça, talvez turbantes regionais, cada um com a sua espingarda nos joelhos.

Deviam estar a preparar o ataque a uma esquadra de polícia ou a algum quartel, como habitualmente. Várias daquelas aldeias eram controladas por tribos rebeldes, responsáveis por várias ofensivas contra forças da ordem. A uma vintena de metros do grupo armado, percebia-se um ajuntamento de outros adultos e vários jovens e mulheres, vultos reconhecíveis pelas indumentárias coloridas.

Era um risco. Mesmo acertando apenas no meio do grupo armado, era possível que muitas das pessoas próximas fossem mortas ou estropiadas. De qualquer modo, não lhe competia decidir.

Meu major, foram assinalados vários civis muito perto do inimigo. Que faço?

O superior hierárquico observou as imagens, por um momento.

Esborracha essa mosquitagem toda! Quantos menos sobrarem, menos picadas depois.

Sooter posicionou o aparelho nas coordenadas adequadas e, após estabilizá-lo, movimentou lentamente o controlo do disparador. Quando o cursor se imobilizou bem a meio do grupo inimigo, fez uma verificação dos outros parâmetros e comandos. Rodou a pequena tampa do botão vermelho de disparo, destravou-o e fez o relatório final:

Tudo pronto, meu major: aparelho estabilizado, alvo enquadrado, mísseis prontos. Aguardo autorização de disparo.

Dá-lhes com tudo o que tens! — gritou o oficial.

Sooter recolheu-se por um momento. Sentiu o poder. O domínio absoluto. A vida daqueles inimigos da América completamente nas suas mãos. A certeza de ser o instrumento da justiça possível encheu-o de uma serenidade solene. Carregou no botão vermelho. A partir daquele momento, ele sabia algo terrível que os inimigos desconheciam. A morte estava a caminho e eles nem desconfiavam. Estavam mortos e não sabiam. Muitos daqueles malditos, agora tão seguros e enérgicos, daí a momentos não passariam de bocados de pasta mole e sangrenta. Não voltariam a ser empecilhos da ordem democrática que os Estados Unidos ofereciam ao mundo. Era desagradável, mas necessário; era a guerra.

Os treze segundos passavam lentamente, mas Sooter sabia o que veria dentro em pouco: os rastos instantâneos dos mísseis e logo as explosões enegrecendo a imagem. Aquele terreiro tão liso ficaria crivado de crateras. O seu olhar vagueou pelo grupo, pelo terreno, a apreciar a ilusória imagem de ordem aldeã, o passado. Pareceu-lhe reconhecer grandes letras ocidentais nos limites do terreno da reunião rebelde. Julgou ler NOT, mas as manchas do que pareciam letras confundiam-se com a restante cor do solo. Como em certos testes de daltonismo. Tentou decifrar a linha de manchas, em vão; as explosões ofuscaram a imagem de seguida.

Não pensou mais nisso. De qualquer modo, nada daquilo já interessava. Calma e eficazmente, levou o avião drone de volta à base no Afeganistão, em total segurança.

Duas horas depois, de regresso à sua vida de família, Sooter fazia a vontade ao filho e assistia ao concerto na escola em que o menino aprendia clarinete. Gostava tanto de música! Quem sabe se não seguiria essa inclinação? Viviam no país das oportunidades, onde era possível ser o que se quisesse, desde que se lutasse por isso. Era um grande país! Tinha orgulho nele.


Uns dias antes, numa aldeia remota do Paquistão, Samir, um menino de nove anos, dirigia-se para a escola, por um caminho poeirento e ia lançando olhares apreensivos para o céu. Era um brilhante aluno da escola paquistanesa. A sua irmã, três anos mais velha, não tivera esse privilégio. Fora prometida a um amigo do pai e ia casar em breve. A boda traria à aldeia vários dias de comida, bebida e dança, ao som de uma orquestra de dutares, um instrumento de cordas tradicional. Porém, sagaz como era, o menino reconheceu o perigo na forma dos instrumentos musicais, que, de longe, podiam ser confundidos com espingardas tradicionais. Na escola, pediu ao professor que lhe ensinasse certas palavras em inglês. Assim que terminou as aulas, correu para o terreiro da festa e, em grande azáfama, iniciou a grande tarefa de juntar e dispor muitas pedras a formar uma mensagem para possíveis drones americanos: DUTARS NOT GUNS [Dutares não armas].

Dias depois, decorria a reunião festiva. A refeição fora farta e saborosa; aguardava-se que a orquestra iniciasse a música para todos dançarem. Reinava a alegria, exceto para Samir que continuava a lançar uma angustiada mensagem mental aos céus, em inglês: Read my stones [Leiam as minhas pedras]!


Joaquim Bispo


Imagem: Drone americano MQ-9 Reaper. Da net.

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Este conto integra a coletânea A Arte do Terror — edição especial — História, da Elemental Editoração, 2017, pp. 61–63.

https://www.smashwords.com/books/view/758968


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10/02/2022

As tentações de São Batráquio

 

Ao depararem-se com uma capelinha perdida junto à desolada foz do Sorraia, poucos saberão as peripécias por que passou o santo do seu orago.

São Batráquio nasceu em Sarilhos Pequenos numa família de apanhadores de amêijoas. Moço calado e solitário, desde cedo manifestou problemas de relacionamento e comportamentos desviantes. Era presa frequente de terrores noturnos e várias vezes desapareceu de casa, sendo sempre encontrado escondido em locais isolados, como casebres em ruínas ou abrigos de pescadores em canaviais. Mostrando-se avesso à apanha de bivalves, acabou por aceitar tarefas de sacristão na igreja de uma terra próxima, o que custou ao pai umas boas sacadas de amêijoas para o senhor padre da dita freguesia. Tinha então dezassete anos.

Durante meses, o serviço foi aceitável, com exceção do irritante jeito de imitar amiúde e em surdina o som de algum dos animais com que se cruzara, sobretudo gaivotas e rãs. Era muito prestável no apoio ao padre, no preparo dos paramentos e das alfaias litúrgicas, na limpeza da igreja e no arranjo dos altares e dos santos aí expostos. Quando não havia serviços religiosos, refugiava-se no despojado cubículo da pia batismal, em busca de solidão, ou no escuro e reservado confessionário. O que poderia ser um tempo de relaxamento e reflexão tornava-se, frequentemente, em eternidades de pesadelo. É que o demónio sabe todas as fraquezas de cada homem. Conhece as suas aspirações mais inconfessáveis, os seus anseios mais pecaminosos. E se, com muitas pessoas, — que alegremente se entregam aos prazeres mais obscenos —, nem se dá ao trabalho de as tentar, em relação a São Batráquio sabia que ele procurava resistir, se amarfanhava de desejos reprimidos, lutava com quantas forças tinha. Por isso o diabo tinha de lançar ilusões e insinuar as doçuras e os encantos das práticas pecaminosas. Os cálices pareciam abarrotar de iguarias, fazendo São Batráquio salivar e resmungar:

Huarrh!

As portinholas de todas as caixas de esmolas abriam-se por si, oferecendo-se ao futuro santo em dezenas de moedas brilhantes. E ele, de mãos trementes, grasnava:

Huarrh!

Pelos espaços vazios da igreja o diabo fazia desfilar belezas femininas de provocante luxúria, de irresistível apetibilidade. E ostentavam o rosto angélico das santas dos altares. O pecador, fremente de desejo, coaxava:

Huarrh!

Estas eram as fases de maior penar, os tempos infindos em que ele agonizava de dores do espírito, tentando conter-se. De dia, geralmente, conseguia. Cravava as unhas na pele, lavava o rosto com pedras de gelo, açoitava-se com o azorrague dos carrascos de Cristo atado à coluna. À noite, era mais difícil. Muitas vezes, sucumbia: empanturrava-se da bolacha de hóstias e do vinho de missa; com demorado empenho e habilidade, conseguia retirar algumas moedas das caixas; acariciava com redobrada sensibilidade os contornos dos rostos sagrados de Santa Eufémia e da Virgem da Assunção e as pregas da madeira pintada dos seus vestidos, temente, mesmo assim, de se atrever a imaginar o hipotético corpo santo que se esconderia por dentro.

Huarrh!

Depois, relaxava. Parecia que os seus atos não tinham consequências, chegava a sentir-se feliz e confiante. Mas então, vinham as penas. Os remorsos faziam-no amarrotar-se por dentro, o medo dos infernos fazia-o tremer e chorar convulsivamente. Tudo piorou, depois de ter bisbilhotado alguns livros de arte do padre e se ter deparado com as estampas das pinturas de Jerónimo Bosch. Via demónios que ameaçavam esquartejá-lo com navalhas de amanho de peixe e arpões, com redes que o arrastavam para o fundo das águas, criaturas horrendas cujos olhos lançavam fogo, cuja urina derretia as lajes da igreja e cuja boca cuspia vermes e exalava miasmas nauseabundos.

Huarrh!

Então o santo pecador jurava ser ainda mais forte da próxima vez que as tentações o assaltassem. Mas os demónios que regem as pulsões dos sentidos não desaparecem nunca. Às vezes parece que estão esquecidos, que o pobre mortal foi relegado para a montureira dos objetos usados e vencidos, mas há sempre um outro dia que amanhece maldito. E mesmo os futuros santos, antes de vencerem os seus demónios, são marionetas nas mãos nefandas do demo. E os pobres pecadores voltam aos velhos pecados, com a mesma certeza do condenado perante o cadafalso, mas com o entusiasmo das alegrias do êxtase. Nunca tão bem é aplicado o conceito de “ciclo vicioso”.

Este jovem pecador escolhia sempre o fim do dia para pôr em prática os seus desvarios mais obscenos, com os quais mais se comprazia o diabo. Depois de a igreja se esvaziar e o padre sair, fechava as portas, apagava as luzes e mantinha acesa só meia dúzia de velas elétricas das promessas. Certa vez, foi negligente. Não vendo o padre nem na nave, nem na sacristia, convenceu-se de que ele já tinha saído. Na verdade, o clérigo ficara sentado no confessionário, após uma confissão particularmente deprimente, meditando nas atribulações das vidas dos pobres, e acabou por adormecer. Quando saiu de trás do pano, deparou com o jovem sacristão em cima do altar de Santa Iria, roçando-se e acariciando a escultura da santa, com as roupas descompostas.

Huarrh!

Ao pecador apanhado não pareceram muito diferentes os tratos que o padre lhe aplicou, dos habituais pesadelos pós-pecado. Mas, desta vez, o verdugo brandia uma vara de marmeleiro e envergava batina. Durante uma semana, mal conseguiu conciliar o sono, com as dores que o percorriam. Curiosamente, parecia que os açoites tinham afastado os pesadelos. Durante meses, o pecador não se atreveu a pensar em santas, de modo carnal. Até o padre começou a pensar que talvez o corretivo tivesse sido remédio santo. Mas o mafarrico está sempre à espreita. Só ele terá congeminado um plano tão malévolo: conseguiu que este eficaz padre fosse deslocado para a igreja de uma das freguesias de Alcochete, a freguesia deste que tal vos conta. E terá incutido na ideia do padre de que era melhor levar aquele problemático sacristão, então com 20 anos, do que deixá-lo ao cuidado incerto de um incerto substituto. Quando São Batráquio viu o interior da nova igreja e as formosas santas que ocupavam os altares, temeu pela tentação. Santa Teresinha pareceu-lhe a mais sensual. De olhos ingénuos, não era uma santa de madeira pintada como as que conhecia — um manto branco cobria o burel que lhe vestia o corpo, sob o qual apareciam dois pezinhos descalços...

Huorrh!

O diabo que nele habitava sabia que a partir daquele momento o trajeto de pecado do nóvel sacristão estava traçado. Era uma questão de tempo e oportunidade. E ela chegou tão cedo quanto esperava. Foi no domingo de Páscoa. Padre e sacristão percorreram toda a freguesia, casa por casa, a dar o Senhor a beijar. Depois das maratonas de confissões próprias da época, aquela correria de sobe e desce escadas deixaram o clérigo de rastos. Percebia-se que iria tombar na cama exausto. São Batráquio manteve-se acordado no escuro do seu quarto, como presa encurralada. Pelas três da manhã, decidiu-se. Abriu a porta em silêncio e deixou-se conduzir pelas sombras das ruas desertas, a caminho da igreja. Ao entrar, sussurrou:

Huorrh!

Fechou tudo, deixou só a lamparina do Santíssimo, para conferir um certo mistério exaltante, tapou com um pano negro os rostos das outras figuras sagradas, Sagrado Coração de Jesus incluído, para não sentir os seus olhares nas costas, e trepou para o altar onde Santa Teresinha parecia esperá-lo.

Huorrh!

Como seria acariciar aquelas vestes? Sentiria logo as formas que se escondiam no interior? O coração batia-lhe. Seria capaz de meter a mão por dentro do hábito? A excitação emocionava-o.

Huorrh!

Acariciou a face sedosa da imagem. Abriu-lhe o manto, contemplando a graciosidade austera do hábito. A mão hesitou em tocar a sua superfície. Era denso e rústico. Percorreu-o, tentando encontrar as formas do corpo da santa francesa. Avançou mais e mais, mas os seus dedos não encontravam qualquer resistência. Num desvario aterrado, agarrou o hábito com ambas as mãos, em vão. Finalmente, em urgência, abaixou-se e levantou-o por inteiro.

Huorrh!

Manteve-se por muitos segundos, boquiaberto, sem atinar no sentido do que via: a santa era um cabide só com pés e cabeça, em que estavam dependurados o manto e o hábito. Apenas. Não havia corpo algum. Apenas um espaço vazio por baixo do hábito. Em vez da sensualidade esperada, aquela estrutura transmitia escárnio. Zombaria. Imaginou quanto terá rido o sádico santeiro, ao fazer aquela artimanha. Em que ele tinha caído.

Huooooorrh! — berrou.

Enlouquecido, começou a pontapear todo aquele embuste. Saltou para o chão, arrancou as toalhas dos altares, derrubou lampadários e tocheiros, partiu quanto pôde. O incêndio começou na precária lamparina do Santíssimo e rapidamente alastraria à igreja inteira, mas São Batráquio, assustado, subiu à torre sineira e tocou a rebate. Apareceu muito povo e uma ambulância acabou por levar o tresloucado.

Quando teve alta, São Batráquio não voltou para nenhuma das suas igrejas. Caminhou sem destino e foi assentar-se num lameiro perto da foz do Sorraia, na freguesia de Póvoa de Santa Clara. Aí passou a alimentar-se de moscas, imitando as rãs. De vez em quando, oferecia punhados de moscas aos pescadores que por ali passavam. Foram eles que lhe criaram a fama de santo. As moscas que ele lhes oferecia eram um isco milagroso na pesca. E foram eles que lhe deram o nome. Na verdade, São Batráquio fora batizado como Eustáquio, mas a parcial semelhança fónica, os sons que emitia e a sua atividade de caça-moscas, como os batráquios, fizeram o resto.

Quando morreu de pneumonia, ergueram-lhe uma capelinha no meio do lameiro, toda forrada por dentro de painéis de azulejos com cenas da sua vida. Fazem-lhe uma festa em maio, a que acorrem quase todos os habitantes da Póvoa de São Batráquio — o novo nome da terra. A sua imagem, que ostenta na mão o atributo de um pequeno mata-moscas, é levada em andor em volta da capela. Dizem que ajuda nas artes da pesca, protege dos incêndios e cura resfriados.

Joaquim Bispo

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Imagem: Santa Beatriz da Silva

Casa-Museu Santa Beatriz da Silva, Campo Maior.

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Este texto foi um dos selecionados para a 31ª edição (janeiro/fevereiro de 2022) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 82 a 86).

https://drive.google.com/file/d/1aHqFkXwMRwbb3-YxgZi2wSUxZLIvNDyU/view

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10/01/2022

Meia dúzia de safanões

 



«O novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos terroristas, desde que nos salvemos e aos nossos compatriotas?»

Enquanto os colegas analisavam o conteúdo de uma escuta à comunicação de um suspeito, foi lendo o corpo do artigo. De repente, cresceu a agitação à sua volta. Parecia que as semanas de vigilância nas comunicações tinham dado frutos. Hasnain, o intérprete que trabalhava para os serviços secretos, foi perentório:

Bomba! Eles falar em bomba. Falar “Baixa-Chiado”. Passar gravação outra vez!

Não foi possível detetar a origem da chamada, mas o SS já conhecia a morada do recetor: uma casa decrépita na zona da Mouraria.

Eram sete e meia da manhã quando os agentes entraram na rua do Capelão, já de saídas bloqueadas. O suspeito, um paquistanês de menos de 30 anos, não ofereceu qualquer resistência. Uma busca minuciosa encontrou uma dúzia de telemóveis e uns vinte sacos, de cinco quilos, de farinha. Antes das nove, iniciou-se o interrogatório nas instalações dos Serviços. Ahmid, o suspeito, garantia que não sabia quem lhe tinha telefonado.

Tu não me venhas com tretas! Quem é que te telefonou? Era uma ordem para um atentado? Fala, senão faço-te engolir esses dentes! — irritava-se o agente Moreira.

Eu não sabe. Telefone tocar, Ahmid ouvir.

Parecia sincero, mas com terroristas nunca se sabe.

Mas quem foi e o que queria?

Não sabe. Falar Lisboa, perguntar loja fruta.

Não se passou disto toda a manhã, até que, pelas duas da tarde, os quatro agentes envolvidos na detenção, cansados e irritados, resolveram fazer uma pausa para comer qualquer coisa. Um deles sugeriu uma conhecida adega do Lumiar, ali perto. Àquela hora já devia ter lugares.

Assim que se sentaram, veio o assunto de serviço à baila:

Eh, pá, não podemos ficar nisto, conversa, conversa… e nada — equacionava o Martins.

E uma chapada de vez em quando — brincava o Mendes. — Só para aquecer…

Isto se fosse na América não ficava por aqui. O Trump já disse que os serviços lhe garantiram que a tortura resulta — lançava o Moreira. — «Absolutely!»

Eles lá não são de modas. Vai tudo a waterboarding — concordava o Martins.

Mas eles não tinham proibido isso? O Obama!

Esta cena da verdade alternativa, de que agora se fala muito, já tem muita tradição por aquelas bandas — teorizava Neves, o mais calado. — Eles têm um problema com a verdade. Condenaram a Manning; e vão engavetar o Snowden e o Assange, se os apanharem lá. A verdade está amordaçada e emparedada nas masmorras da Administração.

Eh, lá! Temos poeta — ironizava o Mendes.

Quando atacaram o “borrego no forno”, passaram a falar abertamente da técnica de tortura conhecida como waterboardind ou afogamento simulado, talvez por uma mórbida associação de carnes indefesas.

Dizem que aquilo resulta mesmo. Porque o tipo com o pano encharcado na cara não consegue respirar, porque, se respirar, respira água. Se a água entra na faringe, o tipo engasga-se e a sensação de morte iminente por afogamento é avassaladora — explicava o Martins.

Eh, pá, como é que sabes isso tudo? — perguntava o Mendes. — Andaste a pesquisar... Não me digas que queres aplicar isso ao nosso Ahmid?

Mendes! Porra. Contém-te! — ralhou o Martins, que parecia a voz que congregava as dos outros. — Mas temos da fazer alguma coisa — adiantou em voz baixa, enquanto rastreava o resto da sala.

Eu também acho — apoiava o Moreira. — Até uma gaja como a Meryl Streep disse uma vez que, meditando sobre o assunto, chegou à conclusão que, se a tortura de um suspeito de terrorismo evitar milhares de mortos, então acha a tortura aceitável.

Nem de propósito — atalhou o Neves, enquanto sacava do bolso interior do casaco a revista que estava a ler nessa manhã. — Em 1932, Oliveira Salazar dizia isto: “Os presos maltratados eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas. Só depois de empregar meios violentos é que eles se decidiam a dizer a verdade. E eu pergunto a mim próprio se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não justifica, largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras.” Salazar e Meryl Streep, a mesma luta...

— “Meia dúzia de safanões”… O tipo era um cómico — ironizava o Mendes, refeito.

Eh pá, não vamos misturar — reagia o Moreira. — Esta gaja é lá dos direitos humanos e dessas merdas, que agora até disse, referindo-se ao Trump, que “desrespeito convida ao desrespeito e violência incita à violência”.

Adoro coerências — adiantou o Neves. — O desrespeito do Trump incomoda-a, mas estava disposta a torturar prisioneiros.

Para salvar vidas…

Eh, pá, se a gente cede nos princípios, às tantas estamos a fazer o mesmo que os terroristas — reincidia o Neves.

Nós estamos a defender os nossos concidadãos. Esses terroristas não têm nada que ver com os nossos valores, com a nossa cultura. Se for preciso dar a volta a algum… temos pena.

Os nossos valores... antes ou depois de torturarmos pessoas?

Arre, que é estúpido! — exagerou o Moreira. — Desculpa. Ó Neves, porra!; não somos todos iguais. Eles são outra coisa. E se ainda por cima nos querem matar…

Eu também já li — defendia-se o Neves. — Parece que aquilo é lixado. Mesmo que o tipo desconfie que é simulação, nunca tem a certeza. A aflição é aterradora. O tipo fica traumatizado durante muito tempo. E há tipos que desistem e deixam entrar demasiada água nos pulmões e, se não morrerem, ficam com sequelas graves. Mas o mais ingrato, nesta cena de torturar ou não torturar, é que os resultados não são fiáveis. Um tipo nessas circunstâncias diz qualquer coisa para se livrar do que lhe parece uma morte certa.

É isso que é preciso, que fale, que diga o que nos interessa. Achas que um tipo a afogar-se vai pensar em dizer uma mentira? — racionalizava o Martins.

Se ele não tiver uma verdade para dizer, ou se a verdade que está a dizer não for aceite, ele diz o que lhe vier à cabeça. É o caso dos inocentes.

Sempre me saíste um lírico, ó Neves… Achas que aquele tipo que lá temos está inocente? Achas que não sabe quem lhe estava a telefonar? O Hasnain ouviu bem falar em bomba. Eh, pá, temos que dar este pequeno passo. Para defendermos a vida dos nossos concidadãos, que é a nossa missão sagrada. Ficas de consciência tranquila se falharmos e explodir uma bomba na estação de metro da Baixa-Chiado? Era uma carnificina.

O Mendes tinha-se calado de vez. As piadas não cabiam ali. O Moreira estava intimamente satisfeito com a argumentação do Martins. Concordava a cem por cento. O Neves sentia-se desconfortável, mas tinha dificuldade em arranjar argumentos. Não era fácil contrapor postura humanista, civilizacional, ao perigo de atentado potencial. Como arriscar? Havia uma enorme assimetria de risco envolvido.

Sem autorização de cima, temos de ser muito cautelosos. Não podemos forçar demasiado. Se o tipo não falar às primeiras, paramos, ok? — tentou ainda o Neves.

De regresso aos Serviços, passaram o resto da tarde com perguntas marginais.

Para que queres tanta farinha em casa? É para fazer uma bomba lenta?

Fazer frito, senhor. Ahmid vende na loja.

E os telemóveis?

Ahmid arranja.

Depois de todo o pessoal administrativo ter saído, levaram o suspeito para uma garagem e amarraram-no de costas sobre uma bancada, com a cabeça um pouco mais baixa.

— “It’s now or never”, Ahmid. Ou falas agora ou já não falas mais. Quem é que te telefonou?

O paquistanês apresentava um olhar aterrado. Até ali, tudo tinha sido mais ou menos esperado, mesmo as bofetadas. Agora as movimentações dos quatro homens indicavam que vinha aí violência extrema. Esqueceu-se até de responder. Um dos agentes colocou-lhe um pano sobre a cara, enquanto outro começou a verter água de um jarro sobre a zona entre boca e nariz. Ahmid manteve a boca fechada por uns momentos, sentindo alguma a inundar o nariz e a entrar para a garganta. Aguentou quase meio minuto sem respirar, mas um engasgamento irrefreável tomou conta do seu corpo. Conseguiu expelir alguma água, mas outra entrava e nenhum ar. Tossia água para fora e para dentro. Começou a estrebuchar violentamente. Uma angústia terrível assaltou-o. O coração ribombava. A morte devia ser aquilo. Lançou um último e desordenado pensamento para o seu jovem irmão que ficara no Paquistão.

Quem é que te telefonou? — foi o som que se ordenou um pouco, depois de lhe tirarem o pano da cara. O coração batia freneticamente. Inspirou num urro, tossiu convulsivamente, sentiu o ar a queimar nos pulmões. — Quem, quem? — repetia a voz. Antes que lhe colocassem o pano de novo sobre a cara, Ahmid gritou:

Allahu Akbar!

Eu não disse? — afirmava-se o Moreira, segurando o pano ensopado sobre o rosto de Ahmid. — Dá-lhe mais!

Pessoal, calma! Tínhamos combinado não exagerar — afligia-se o Neves.

Alguns sons sarcásticos dos colegas foram a primeira resposta.

Ó Neves, estamos nisto juntos — ripostou o Martins. — Se não assumes as tuas responsabilidades, sai daqui. Cá estão os colegas para fazer o trabalho que o menino não quer fazer. Sem problema. Vai! Vai lá! Mas já sabes… Não fales disto a ninguém, ok? Ok?

Neves aceitou a sugestão ordenada e humilhante. Meteu-se no carro e foi para casa, profundamente deprimido. Sentia-se incompetente e desenraizado. Começava a questionar seriamente a sua vocação para agente secreto. Parecia ser uma questão de estômago.

Joaquim Bispo

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Imagem: Fernando Botero, Abu Ghraib (série), 2005.

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Este texto foi um dos selecionados para a 30ª edição (novembro/dezembro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 134 a 138).

https://drive.google.com/file/d/1qxX4CyYq2aNHEmXCLUBZOq6w0gIc__-y/view

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Também integra a coletânea Civilização e Barbárie da Revista Gueto, 1º semestre de 2017, edição especial, pp. 63–68.

https://gueto.files.wordpress.com/2017/07/001_revista_especial.pdf

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10/12/2021

Um gesto ou dois

 

O homem tinha a cara enrugada, poucos dentes e um aspeto decrépito. Teria bem mais de 70 anos e adivinhava-se-lhe já pouco préstimo para o trabalho do campo. O patrão contratou-o por um misto de piedade e oportunidade. Chegou ao monte para guardar o “vazio”, isto é, o pequeno rebanho de carneiros e de outros ovinos que não estavam “cheios” — prenhes —, mas também ajudava em inúmeras outras tarefas da horta e da casa. Havia sempre lenha para cortar e água para acartar.

Era por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e “de comer”. Ficou a dormir num catre no palheiro e arranjou-se-lhe uma mesinha onde comer logo à esquerda da porta de entrada, separada do lume pelo monte de lenha. Os patrões e o filho pequeno comiam a dois metros dele, numa mesinha igualmente pequena e sentados em bancos rasteiros. Os dois cães de caça andavam sempre por ali, à espera que algo caísse da mesa.

A casa dos patrões era ampla e contígua ao palheiro. No verão, enchia-se de moscas, devido à proximidade com os animais, e também não faltavam pulgas. Só tinha a estrutura interna em taipa de dois quartos e um “peneirador” onde também se guardavam a masseira, a salgadeira, a bilha do azeite, a talha das azeitonas e duas arcas. Por cima deste conjunto, um sobrado onde se espalhavam as batatas e as cebolas para o ano inteiro. O resto era espaço amplo de telha vã, com um grande arcaz, o pote da água de usos de cozinha, uma cantareira com uma bilha de água de beber, e uma mesa enorme, só usada quando era preciso sentar muita gente numa matança do porco. O lume era feito num canto, no chão, onde se cozinhavam as refeições em panelas de ferro, e o fumo escoava-se pelas telhas. À noite, além do lume, só tremeluzia a chama de um candeeiro a petróleo, que se perdia na vastidão da casa.

Os tempos eram outros. Não havia eufemismos — empregados, trabalhadores agrícolas, assalariados —, só patrões e criados. A penúria dos agricultores rendeiros era quase tão grande como a dos criados, e não só na Beira Baixa. No entanto, vincavam bem as diferenças. Por isso o ti Mné Lucas — como o chamavam — sentava-se a uma mesa separada da dos patrões. E comia pão centeio. E dormia no palheiro.

A situação era “natural”, mas, de qualquer modo, o velhote estava por tudo. Nunca reclamava, nunca se queixava, nunca pedia nada; aceitava o que lhe davam ou o que achasse natural apanhar: figos, maçãs, ameixas. Certa vez, ralharam com ele, por ter apanhado mais de dois quilos de “lenticão” — uma excrescência da espiga do centeio —, vendido para remédios, e que rendia bom dinheiro. E foi motivo de galhofa quando uma vez pediu um martelo para bater um prego nas decrépitas botas de sola de borracha, remediadas com pregos. Um andava a entrar-lhe na carne.

Para o miúdo da casa, um catraio de seis ou sete anos, a chegada de um velhote carcomido, mas simpático, prometia animar o ramerrame campestre. Sentiu curiosidade, alegria, carinho. Certa vez, pediu mesmo aos pais que o deixassem acompanhá-lo no seu percurso matinal com o rebanho. Foi uma longa e monótona caminhada pelas encostas circundantes, mas o velhote acabou por animar o garoto ao construir um pequeno redil de brincar com muros de pedrinhas, e cancelas feitas de pauzinhos. Quando chegou a hora de comer, partilharam ambos o pão centeio dele, com algum conduto — certamente azeitonas, talvez queijo —, e ainda hoje o rapazito gosta da côdea queimada do pão centeio.

A rotina de saídas dos patrões era irem à terra de quinze em quinze dias, a uns doze quilómetros, onde a patroa tinha a mãe e duas irmãs mesmo do outro lado da rua. Até aos sete anos do garoto, iam os três na garupa da égua: o pai escarranchado, a mãe sentada de lado, atrás dele, e o miúdo ao colo da mãe, de pernas penduradas. Depois, já iam de carroça, sempre com carga extra de trigo para moer, ovos para vender, e outras cargas circunstanciais.

Nunca passavam o Natal no campo. Não faziam festa ou ceia especial de Natal, mas era uma data que nunca falhavam na terra. Exceto daquela vez: havia um assunto que o patrão não quis deixar entregue a outros, talvez uma vaca a parir por aqueles dias. Portanto, ficaram todos no monte. E nem avisaram ninguém, porque para isso era preciso ir até à terra mais próxima, a três quilómetros, e enviar uma carta. Não valia a pena; quando se fizesse dez ou onze da noite, os familiares certamente suspeitariam que tinha acontecido um dos inúmeros inesperados que aconteciam na vida do campo e descansariam.

A ceia desse Natal foi como a de muitas outras noites: batatas cozidas com couves, acompanhadas com uma fatia de toucinho, rodelas de farinheira e morcela. A única diferença foi que, apesar de não se fazer habitualmente qualquer ceia especial, todos sabiam que era noite de Natal, até porque nesse dia a patroa tinha amassado as filhós e tinham estado a fritá-las na caldeira de cobre antes da ceia. E havia um certo sentimento de complacência no ar. A patroa murmurou qualquer coisa para o patrão, este meditou uns segundos e chamou:

Ó ti Manel, hoje é noite de Natal. Venha aqui para a nossa mesa!

E pela primeira vez em três ou quatro anos, o ti Mné Lucas foi comensal dos patrões. A princípio, não se falou muito mais do que nas outras noites, mas o ambiente era afetuoso e no fim comeram-se filhós à roda do lume. Nessa noite, para além de algumas histórias já conhecidas, o ti Manel contou como acontecera o seu casamento: era marujo embarcado e, certa vez, ao atracar em Lisboa, soube por um conterrâneo que a sua noiva estava para casar com outro. Meteu-se logo no comboio a caminho da terra, “pôs tudo em pratos limpos” e casou ele com ela. Sentia-se-lhe na voz um misto de alegria pela evocação de um episódio tão especial, e uma nostalgia de tempos desaparecidos. Quando, pouco depois, se foram deitar, todos levavam um aconchego de alma inusitado.

No dia seguinte, o almoço foi guisado de batatas com um coelho bravo que o patrão caçou nessa manhã. O ti Mné Lucas não estava presente, porque andava com o rebanho, mas, à noite, quando chegou ao lugar habitual, atrás da porta, foi mimado com um pouco do guisado do almoço. Ainda antes de se sentar, meteu a mão num dos bolsos do casacão remendado e amarrotado que usava, tirou uma pequena escultura de uma ovelha, talhada à navalha num tronquinho de giesta, e estendeu-a ao deslumbrado miúdo.

Andava o rapaz já pelos quinze anos, quando o pai, na expectativa de uma vida menos áspera como operário fabril, decidiu desistir da lavoura, deixar os vários arrendamentos, vender rebanhos, vacas e o carro de bois e abalarem todos para a aldeia. Nunca mais viram o ti Mné Lucas. Parece que tencionava ir ter com uma filha a Lisboa. Souberam que morreu talvez um ano ou dois depois.

Passaram entretanto muitos anos, quase todos os protagonistas desta história já morreram, mas a criança de então mantém um especial carinho por ela e pela pequena escultura. Ainda hoje a guarda e de vez em quando gosta de a ter exposta. Mesmo agora estará a contemplá-la, ali na segunda prateleira da estante.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 2º lugar na categoria Conto internacional, no 5° Concurso Literário Internacional Castro Alves da Academia Rio-Grandina de Letras, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil, 2019–2021.

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Imagem: Carlos Relvas, Mendigo, (prova em albumina), c. 1862–1870.

Casa dos Patudos, Alpiarça.

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