10/01/2022

Meia dúzia de safanões

 



«O novo panorama terrorista mundial obriga-nos a gastar muitos recursos e a equacionar outras formas de guerra.» — alertava a caixa introdutória do artigo da revista. O assunto interessava a Patrício Neves. Verificou as outras “gordas”: «Até aonde devemos ir no combate ao terror? De quanta humanidade estamos dispostos a abdicar? Devemos aceitar descer aos níveis de desumanidade dos terroristas, desde que nos salvemos e aos nossos compatriotas?»

Enquanto os colegas analisavam o conteúdo de uma escuta à comunicação de um suspeito, foi lendo o corpo do artigo. De repente, cresceu a agitação à sua volta. Parecia que as semanas de vigilância nas comunicações tinham dado frutos. Hasnain, o intérprete que trabalhava para os serviços secretos, foi perentório:

Bomba! Eles falar em bomba. Falar “Baixa-Chiado”. Passar gravação outra vez!

Não foi possível detetar a origem da chamada, mas o SS já conhecia a morada do recetor: uma casa decrépita na zona da Mouraria.

Eram sete e meia da manhã quando os agentes entraram na rua do Capelão, já de saídas bloqueadas. O suspeito, um paquistanês de menos de 30 anos, não ofereceu qualquer resistência. Uma busca minuciosa encontrou uma dúzia de telemóveis e uns vinte sacos, de cinco quilos, de farinha. Antes das nove, iniciou-se o interrogatório nas instalações dos Serviços. Ahmid, o suspeito, garantia que não sabia quem lhe tinha telefonado.

Tu não me venhas com tretas! Quem é que te telefonou? Era uma ordem para um atentado? Fala, senão faço-te engolir esses dentes! — irritava-se o agente Moreira.

Eu não sabe. Telefone tocar, Ahmid ouvir.

Parecia sincero, mas com terroristas nunca se sabe.

Mas quem foi e o que queria?

Não sabe. Falar Lisboa, perguntar loja fruta.

Não se passou disto toda a manhã, até que, pelas duas da tarde, os quatro agentes envolvidos na detenção, cansados e irritados, resolveram fazer uma pausa para comer qualquer coisa. Um deles sugeriu uma conhecida adega do Lumiar, ali perto. Àquela hora já devia ter lugares.

Assim que se sentaram, veio o assunto de serviço à baila:

Eh, pá, não podemos ficar nisto, conversa, conversa… e nada — equacionava o Martins.

E uma chapada de vez em quando — brincava o Mendes. — Só para aquecer…

Isto se fosse na América não ficava por aqui. O Trump já disse que os serviços lhe garantiram que a tortura resulta — lançava o Moreira. — «Absolutely!»

Eles lá não são de modas. Vai tudo a waterboarding — concordava o Martins.

Mas eles não tinham proibido isso? O Obama!

Esta cena da verdade alternativa, de que agora se fala muito, já tem muita tradição por aquelas bandas — teorizava Neves, o mais calado. — Eles têm um problema com a verdade. Condenaram a Manning; e vão engavetar o Snowden e o Assange, se os apanharem lá. A verdade está amordaçada e emparedada nas masmorras da Administração.

Eh, lá! Temos poeta — ironizava o Mendes.

Quando atacaram o “borrego no forno”, passaram a falar abertamente da técnica de tortura conhecida como waterboardind ou afogamento simulado, talvez por uma mórbida associação de carnes indefesas.

Dizem que aquilo resulta mesmo. Porque o tipo com o pano encharcado na cara não consegue respirar, porque, se respirar, respira água. Se a água entra na faringe, o tipo engasga-se e a sensação de morte iminente por afogamento é avassaladora — explicava o Martins.

Eh, pá, como é que sabes isso tudo? — perguntava o Mendes. — Andaste a pesquisar... Não me digas que queres aplicar isso ao nosso Ahmid?

Mendes! Porra. Contém-te! — ralhou o Martins, que parecia a voz que congregava as dos outros. — Mas temos da fazer alguma coisa — adiantou em voz baixa, enquanto rastreava o resto da sala.

Eu também acho — apoiava o Moreira. — Até uma gaja como a Meryl Streep disse uma vez que, meditando sobre o assunto, chegou à conclusão que, se a tortura de um suspeito de terrorismo evitar milhares de mortos, então acha a tortura aceitável.

Nem de propósito — atalhou o Neves, enquanto sacava do bolso interior do casaco a revista que estava a ler nessa manhã. — Em 1932, Oliveira Salazar dizia isto: “Os presos maltratados eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas. Só depois de empregar meios violentos é que eles se decidiam a dizer a verdade. E eu pergunto a mim próprio se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não justifica, largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras.” Salazar e Meryl Streep, a mesma luta...

— “Meia dúzia de safanões”… O tipo era um cómico — ironizava o Mendes, refeito.

Eh pá, não vamos misturar — reagia o Moreira. — Esta gaja é lá dos direitos humanos e dessas merdas, que agora até disse, referindo-se ao Trump, que “desrespeito convida ao desrespeito e violência incita à violência”.

Adoro coerências — adiantou o Neves. — O desrespeito do Trump incomoda-a, mas estava disposta a torturar prisioneiros.

Para salvar vidas…

Eh, pá, se a gente cede nos princípios, às tantas estamos a fazer o mesmo que os terroristas — reincidia o Neves.

Nós estamos a defender os nossos concidadãos. Esses terroristas não têm nada que ver com os nossos valores, com a nossa cultura. Se for preciso dar a volta a algum… temos pena.

Os nossos valores... antes ou depois de torturarmos pessoas?

Arre, que é estúpido! — exagerou o Moreira. — Desculpa. Ó Neves, porra!; não somos todos iguais. Eles são outra coisa. E se ainda por cima nos querem matar…

Eu também já li — defendia-se o Neves. — Parece que aquilo é lixado. Mesmo que o tipo desconfie que é simulação, nunca tem a certeza. A aflição é aterradora. O tipo fica traumatizado durante muito tempo. E há tipos que desistem e deixam entrar demasiada água nos pulmões e, se não morrerem, ficam com sequelas graves. Mas o mais ingrato, nesta cena de torturar ou não torturar, é que os resultados não são fiáveis. Um tipo nessas circunstâncias diz qualquer coisa para se livrar do que lhe parece uma morte certa.

É isso que é preciso, que fale, que diga o que nos interessa. Achas que um tipo a afogar-se vai pensar em dizer uma mentira? — racionalizava o Martins.

Se ele não tiver uma verdade para dizer, ou se a verdade que está a dizer não for aceite, ele diz o que lhe vier à cabeça. É o caso dos inocentes.

Sempre me saíste um lírico, ó Neves… Achas que aquele tipo que lá temos está inocente? Achas que não sabe quem lhe estava a telefonar? O Hasnain ouviu bem falar em bomba. Eh, pá, temos que dar este pequeno passo. Para defendermos a vida dos nossos concidadãos, que é a nossa missão sagrada. Ficas de consciência tranquila se falharmos e explodir uma bomba na estação de metro da Baixa-Chiado? Era uma carnificina.

O Mendes tinha-se calado de vez. As piadas não cabiam ali. O Moreira estava intimamente satisfeito com a argumentação do Martins. Concordava a cem por cento. O Neves sentia-se desconfortável, mas tinha dificuldade em arranjar argumentos. Não era fácil contrapor postura humanista, civilizacional, ao perigo de atentado potencial. Como arriscar? Havia uma enorme assimetria de risco envolvido.

Sem autorização de cima, temos de ser muito cautelosos. Não podemos forçar demasiado. Se o tipo não falar às primeiras, paramos, ok? — tentou ainda o Neves.

De regresso aos Serviços, passaram o resto da tarde com perguntas marginais.

Para que queres tanta farinha em casa? É para fazer uma bomba lenta?

Fazer frito, senhor. Ahmid vende na loja.

E os telemóveis?

Ahmid arranja.

Depois de todo o pessoal administrativo ter saído, levaram o suspeito para uma garagem e amarraram-no de costas sobre uma bancada, com a cabeça um pouco mais baixa.

— “It’s now or never”, Ahmid. Ou falas agora ou já não falas mais. Quem é que te telefonou?

O paquistanês apresentava um olhar aterrado. Até ali, tudo tinha sido mais ou menos esperado, mesmo as bofetadas. Agora as movimentações dos quatro homens indicavam que vinha aí violência extrema. Esqueceu-se até de responder. Um dos agentes colocou-lhe um pano sobre a cara, enquanto outro começou a verter água de um jarro sobre a zona entre boca e nariz. Ahmid manteve a boca fechada por uns momentos, sentindo alguma a inundar o nariz e a entrar para a garganta. Aguentou quase meio minuto sem respirar, mas um engasgamento irrefreável tomou conta do seu corpo. Conseguiu expelir alguma água, mas outra entrava e nenhum ar. Tossia água para fora e para dentro. Começou a estrebuchar violentamente. Uma angústia terrível assaltou-o. O coração ribombava. A morte devia ser aquilo. Lançou um último e desordenado pensamento para o seu jovem irmão que ficara no Paquistão.

Quem é que te telefonou? — foi o som que se ordenou um pouco, depois de lhe tirarem o pano da cara. O coração batia freneticamente. Inspirou num urro, tossiu convulsivamente, sentiu o ar a queimar nos pulmões. — Quem, quem? — repetia a voz. Antes que lhe colocassem o pano de novo sobre a cara, Ahmid gritou:

Allahu Akbar!

Eu não disse? — afirmava-se o Moreira, segurando o pano ensopado sobre o rosto de Ahmid. — Dá-lhe mais!

Pessoal, calma! Tínhamos combinado não exagerar — afligia-se o Neves.

Alguns sons sarcásticos dos colegas foram a primeira resposta.

Ó Neves, estamos nisto juntos — ripostou o Martins. — Se não assumes as tuas responsabilidades, sai daqui. Cá estão os colegas para fazer o trabalho que o menino não quer fazer. Sem problema. Vai! Vai lá! Mas já sabes… Não fales disto a ninguém, ok? Ok?

Neves aceitou a sugestão ordenada e humilhante. Meteu-se no carro e foi para casa, profundamente deprimido. Sentia-se incompetente e desenraizado. Começava a questionar seriamente a sua vocação para agente secreto. Parecia ser uma questão de estômago.

Joaquim Bispo

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Imagem: Fernando Botero, Abu Ghraib (série), 2005.

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Este texto foi um dos selecionados para a 30ª edição (novembro/dezembro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 134 a 138).

https://drive.google.com/file/d/1qxX4CyYq2aNHEmXCLUBZOq6w0gIc__-y/view

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Também integra a coletânea Civilização e Barbárie da Revista Gueto, 1º semestre de 2017, edição especial, pp. 63–68.

https://gueto.files.wordpress.com/2017/07/001_revista_especial.pdf

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10/12/2021

Um gesto ou dois

 

O homem tinha a cara enrugada, poucos dentes e um aspeto decrépito. Teria bem mais de 70 anos e adivinhava-se-lhe já pouco préstimo para o trabalho do campo. O patrão contratou-o por um misto de piedade e oportunidade. Chegou ao monte para guardar o “vazio”, isto é, o pequeno rebanho de carneiros e de outros ovinos que não estavam “cheios” — prenhes —, mas também ajudava em inúmeras outras tarefas da horta e da casa. Havia sempre lenha para cortar e água para acartar.

Era por meados da década de 50. O contrato era de 100 escudos por mês e “de comer”. Ficou a dormir num catre no palheiro e arranjou-se-lhe uma mesinha onde comer logo à esquerda da porta de entrada, separada do lume pelo monte de lenha. Os patrões e o filho pequeno comiam a dois metros dele, numa mesinha igualmente pequena e sentados em bancos rasteiros. Os dois cães de caça andavam sempre por ali, à espera que algo caísse da mesa.

A casa dos patrões era ampla e contígua ao palheiro. No verão, enchia-se de moscas, devido à proximidade com os animais, e também não faltavam pulgas. Só tinha a estrutura interna em taipa de dois quartos e um “peneirador” onde também se guardavam a masseira, a salgadeira, a bilha do azeite, a talha das azeitonas e duas arcas. Por cima deste conjunto, um sobrado onde se espalhavam as batatas e as cebolas para o ano inteiro. O resto era espaço amplo de telha vã, com um grande arcaz, o pote da água de usos de cozinha, uma cantareira com uma bilha de água de beber, e uma mesa enorme, só usada quando era preciso sentar muita gente numa matança do porco. O lume era feito num canto, no chão, onde se cozinhavam as refeições em panelas de ferro, e o fumo escoava-se pelas telhas. À noite, além do lume, só tremeluzia a chama de um candeeiro a petróleo, que se perdia na vastidão da casa.

Os tempos eram outros. Não havia eufemismos — empregados, trabalhadores agrícolas, assalariados —, só patrões e criados. A penúria dos agricultores rendeiros era quase tão grande como a dos criados, e não só na Beira Baixa. No entanto, vincavam bem as diferenças. Por isso o ti Mné Lucas — como o chamavam — sentava-se a uma mesa separada da dos patrões. E comia pão centeio. E dormia no palheiro.

A situação era “natural”, mas, de qualquer modo, o velhote estava por tudo. Nunca reclamava, nunca se queixava, nunca pedia nada; aceitava o que lhe davam ou o que achasse natural apanhar: figos, maçãs, ameixas. Certa vez, ralharam com ele, por ter apanhado mais de dois quilos de “lenticão” — uma excrescência da espiga do centeio —, vendido para remédios, e que rendia bom dinheiro. E foi motivo de galhofa quando uma vez pediu um martelo para bater um prego nas decrépitas botas de sola de borracha, remediadas com pregos. Um andava a entrar-lhe na carne.

Para o miúdo da casa, um catraio de seis ou sete anos, a chegada de um velhote carcomido, mas simpático, prometia animar o ramerrame campestre. Sentiu curiosidade, alegria, carinho. Certa vez, pediu mesmo aos pais que o deixassem acompanhá-lo no seu percurso matinal com o rebanho. Foi uma longa e monótona caminhada pelas encostas circundantes, mas o velhote acabou por animar o garoto ao construir um pequeno redil de brincar com muros de pedrinhas, e cancelas feitas de pauzinhos. Quando chegou a hora de comer, partilharam ambos o pão centeio dele, com algum conduto — certamente azeitonas, talvez queijo —, e ainda hoje o rapazito gosta da côdea queimada do pão centeio.

A rotina de saídas dos patrões era irem à terra de quinze em quinze dias, a uns doze quilómetros, onde a patroa tinha a mãe e duas irmãs mesmo do outro lado da rua. Até aos sete anos do garoto, iam os três na garupa da égua: o pai escarranchado, a mãe sentada de lado, atrás dele, e o miúdo ao colo da mãe, de pernas penduradas. Depois, já iam de carroça, sempre com carga extra de trigo para moer, ovos para vender, e outras cargas circunstanciais.

Nunca passavam o Natal no campo. Não faziam festa ou ceia especial de Natal, mas era uma data que nunca falhavam na terra. Exceto daquela vez: havia um assunto que o patrão não quis deixar entregue a outros, talvez uma vaca a parir por aqueles dias. Portanto, ficaram todos no monte. E nem avisaram ninguém, porque para isso era preciso ir até à terra mais próxima, a três quilómetros, e enviar uma carta. Não valia a pena; quando se fizesse dez ou onze da noite, os familiares certamente suspeitariam que tinha acontecido um dos inúmeros inesperados que aconteciam na vida do campo e descansariam.

A ceia desse Natal foi como a de muitas outras noites: batatas cozidas com couves, acompanhadas com uma fatia de toucinho, rodelas de farinheira e morcela. A única diferença foi que, apesar de não se fazer habitualmente qualquer ceia especial, todos sabiam que era noite de Natal, até porque nesse dia a patroa tinha amassado as filhós e tinham estado a fritá-las na caldeira de cobre antes da ceia. E havia um certo sentimento de complacência no ar. A patroa murmurou qualquer coisa para o patrão, este meditou uns segundos e chamou:

Ó ti Manel, hoje é noite de Natal. Venha aqui para a nossa mesa!

E pela primeira vez em três ou quatro anos, o ti Mné Lucas foi comensal dos patrões. A princípio, não se falou muito mais do que nas outras noites, mas o ambiente era afetuoso e no fim comeram-se filhós à roda do lume. Nessa noite, para além de algumas histórias já conhecidas, o ti Manel contou como acontecera o seu casamento: era marujo embarcado e, certa vez, ao atracar em Lisboa, soube por um conterrâneo que a sua noiva estava para casar com outro. Meteu-se logo no comboio a caminho da terra, “pôs tudo em pratos limpos” e casou ele com ela. Sentia-se-lhe na voz um misto de alegria pela evocação de um episódio tão especial, e uma nostalgia de tempos desaparecidos. Quando, pouco depois, se foram deitar, todos levavam um aconchego de alma inusitado.

No dia seguinte, o almoço foi guisado de batatas com um coelho bravo que o patrão caçou nessa manhã. O ti Mné Lucas não estava presente, porque andava com o rebanho, mas, à noite, quando chegou ao lugar habitual, atrás da porta, foi mimado com um pouco do guisado do almoço. Ainda antes de se sentar, meteu a mão num dos bolsos do casacão remendado e amarrotado que usava, tirou uma pequena escultura de uma ovelha, talhada à navalha num tronquinho de giesta, e estendeu-a ao deslumbrado miúdo.

Andava o rapaz já pelos quinze anos, quando o pai, na expectativa de uma vida menos áspera como operário fabril, decidiu desistir da lavoura, deixar os vários arrendamentos, vender rebanhos, vacas e o carro de bois e abalarem todos para a aldeia. Nunca mais viram o ti Mné Lucas. Parece que tencionava ir ter com uma filha a Lisboa. Souberam que morreu talvez um ano ou dois depois.

Passaram entretanto muitos anos, quase todos os protagonistas desta história já morreram, mas a criança de então mantém um especial carinho por ela e pela pequena escultura. Ainda hoje a guarda e de vez em quando gosta de a ter exposta. Mesmo agora estará a contemplá-la, ali na segunda prateleira da estante.

Joaquim Bispo

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Este conto obteve o 2º lugar na categoria Conto internacional, no 5° Concurso Literário Internacional Castro Alves da Academia Rio-Grandina de Letras, Rio Grande, Rio Grande do Sul, Brasil, 2019–2021.

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Imagem: Carlos Relvas, Mendigo, (prova em albumina), c. 1862–1870.

Casa dos Patudos, Alpiarça.

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10/11/2021

O passeante invisível

 

Nunca ninguém o viu. Nunca ninguém se deparou com ele ao dobrar uma esquina, fosse noite ou dia. Mas nunca ninguém duvidou que ele se passeava invisível por toda a cidade. Alguns afirmavam ter entrevisto sombras que eram, indubitavelmente, projeções da figura fantástica do passeante invisível. Outros garantiam ter ouvido sons abafados, momentâneos arrastamentos como de passos, que comprovavam que ele se passeava por ali.

A cidade é feita de muitas estruturas artificiais. Físicas e organizativas. Os homens precisam de um lugar coletivo para viver. Estarem juntos dá conforto e segurança, mas demasiada proximidade torna-se inquietante. Estar a sós com outro homem numa rua deserta, noite alta, é tão ou mais assustador do que enfrentar os silêncios e os ruídos da noite na floresta, na serra, no campo. Os homens precisam de estruturas, muros que os separem dos outros homens.

O passeante invisível construíra a cidade, mantinha as estruturas fortes, escorraçava os inimigos, assegurava os fornecimentos. Ele é forte e destemido; passeia-se por toda a cidade, sobretudo no ermo da noite. Dizem. Porque veem sombras, ouvem certos sons reveladores, porque só pode andar por lá, invisível.

Olhem, lá vai a sombra dele, por entre os pilares daquelas arcadas — grita um.

Olhem, é ele, no reflexo do vidro daquela montra — clama outro.

Ninguém punha em dúvida estes avistamentos fantasmáticos. Toda a gente sabia que o passeante invisível andava por lá. Nalgum sítio havia de estar: nas arcadas, nos vãos das portas, nas gares rodoviárias ou marítimas. Os seus sinais vislumbravam-se sempre a desaparecer por detrás de alguma estrutura da cidade. Ele andava lá, mas invisível.

Conta-se que, em tempos que ninguém já recorda, um jovem, irreverente como todos os jovens, ao ouvir alguém asseverar, pela milésima vez, que acabara de avistar a silhueta do passeante invisível, não se conteve, como seria prudente:

O passeante invisível é uma invenção das vossas mentes sedentas de graça e do deslumbramento mitómano da primeira infância!

Um grande burburinho se gerou entre os que ouviram tal dislate. Quiseram bater-lhe, ou então que retirasse o que tinha dito, que pedisse desculpa.

Quem achas tu que construiu a nossa cidade, mantém as estruturas fortes, afasta os nossos inimigos e assegura os fornecimentos de que a cidade precisa? — confrontaram-no.

Fomos nós e os nossos avós que assim a moldaram; somos nós que a mantemos a funcionar com a eficácia possível. “Passeante invisível” é só uma expressão que reflete toda a nossa incapacidade de assumir que, em conjunto, conseguimos gerar obra com qualidades maravilhosas.

O jovem persistia no erro, mas, em breve, compreendeu que estava isolado e desacreditado. Pediu desculpa.

O alcaide, no entanto, não hesitou em tomar medidas que devolvessem à população toda a confiança eventualmente perdida e até a reforçassem. Emitiu um edital anunciando que, como, representante do passeante invisível, iria tornar possível e incontestável a identificação do protetor da cidade. Quem quisesse ver a roupa por ele usada, bastaria dirigir-se à alcaidaria, onde estaria exposta numa câmara junto à entrada.

Os muitos cidadãos que lá acorreram viram o que parecia andrajos de mendigo, dado o seu aspeto miserável, mas todos compreenderam que eram os mais adequados para alguém tão humilde que evitava mostrar-se. A confiança de todos fortaleceu-se. O passeante invisível continuava a proteger a cidade e agora podia ser visto. E mais frequentemente passaram a avistá-lo nas arcadas, nos vãos das portas, em outros abrigos precários. Se não era ele, parecia, pelos trajes.


Joaquim Bispo

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Este texto foi um dos selecionados para a 29ª edição (setembro/outubro de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 93 a 94).

https://drive.google.com/file/d/1ep-dEpKzatqGxEec-M-ag8pVvyNn2QIC/view

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Imagem:

Maria Helena Vieira da Silva (1908–1992), O passeante invisível, 1949–51.

Museum of Modern Art, San Francisco, EUA.

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10/10/2021

O Mestre

 


No dia em que comerdes desse fruto,

se abrirão os vossos olhos;

e sereis como deuses,

conhecendo o bem e o mal.

Gn 3,5


Professor, quando é que nos mostra as suas últimas pinturas? ― lançou Gisela, juvenilmente provocadora.

Não as trago para a faculdade, Gisela, que são muito grandes ― gracejou o professor de Pintura III ―, mas terei muito gosto em mostrá-las no ateliê da minha casa de Sintra.

Tinha uma daquelas figuras tutelares que impressionam algumas alunas ― sobre o alto, barba, cabelo grisalho farto e um pouco revolto ― e, sobretudo, dava gosto ouvir as suas aulas. Fora da sala, adornava-lhe as mãos ou o queixo um cachimbo, donde se escapava um aroma de tabaco Mayflower.

E quando é que o professor lá está a pintar? ― avançou a aluna, interessada.

Aproveito todas as tardes de sábado. Apareça! A morada vem na lista ― disse o professor, a despachar.

Então, posso lá passar no próximo sábado, com o meu namorado? Ele também gosta muito de pintura. É de História d’Arte.

Com certeza, Gisela. Terei muito prazer em vos receber. Até lá!


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O mestre já tinha esquecido a promessa da aluna, quando ouviu a campainha.

Entrem! ― convidou. ― Sejam muito bem-vindos.

É o Januário, o meu namorado; Jorge Ávila, o meu professor de Pintura ― apresentou, Gisela. ― Estou um pouco emocionada. Visitar o ateliê de um pintor como o senhor!

Cumprimentos feitos, Ávila levou os convidados a visitar o pequeno pavilhão onde pintava e lhe servia de armazém.

Aqui já não tenho nenhuma das minhas obras mais antigas. Iam beber bastante ao neorrealismo.

Nós conhecemos, professor. Estão em todas as obras de referência da pintura do século XX.

Depois vieram essas, com influências das colagens de Matisse; e estas, em cujos traços marotos se adivinha alguma inspiração na fase “minotauromáquica” de Picasso, não acham? Não que eu o reconheça, oficialmente ― ironizava o pintor, rindo.

Gosto mais das suas, professor, talvez por serem mais esquemáticas ― avaliava Gisela, em tom aprovador. ― O Picasso é demasiado explícito para o meu gosto.

Olha aquela, Gisela! ― Divertido, Januário apontava para uma tela, onde era evidente um coito sobre um fundo de linhas de projeto de arquitetura.

Nesta zona ― continuou Ávila ― estão as poucas que restaram da fase neoexpressionista, baseada na mancha e na gestualidade da pincelada. A partir daqui, são coisas muito recentes, quase todas neofigurativas.

Tanto nu, professor!

O nu transmite mais facilmente a essência do Homem ainda não contaminado pela civilização. Além disso, a roupa fixa uma época à cena e impede que a sua mensagem seja vista como um valor intemporal.

Aquela paisagem no cavalete é no que está a trabalhar?

Sim, é um esboço de fundo de Éden para uma série sobre a Criação ― uma encomenda de um particular. Nesta tela, em especial, vou representar Adão e Eva, no momento exato em que Eva já deu uma dentada na maçã e Adão inicia a primeira dentada, isto é, o instante em que “toda a humanidade” acede ao conhecimento que lhe estava vedado ― um momento muito especial. A Gisela é que faria uma excelente Eva ― o cabelo liso, comprido e louro, os olhos azuis, um certo ar de pureza primordial.

Fazer de modelo para si?... ― O tom de suave crítica não evitou um lampejo no olhar de Gisela.

Não me interprete mal. Eu só estava a fazer uma avaliação de conformidade estética. Longe de mim pedir-lhe que pose para mim.

Quanto tempo é que demora a pintar uma tela deste tamanho?

Espero acabá-la em duas ou três tardes de sábado.

Mas, tinha de me despir, não?

Claro, é a Eva; mas os olhos de um artista são como os de um médico ― seletivamente focados nas questões técnicas. O que avaliam são perspetivas, linhas de contorno, sombras, tonalidades cromáticas. Mas não quero que se sinta pressionada.

O que achas, Januário? ― perguntou Gisela ao namorado.

Se te sentes à vontade…

Eu estou muito segura do meu corpo e, às vezes, tenho fantasias de posar para um grande artista, cujo nome e mestria valorizassem o modelo. Achava piada dar comigo, um dia, na exposição de uma grande galeria.

O Januário não quer experimentar, também? ― perguntou o pintor. ― Eu preciso de um Adão, e o seu perfil adequa-se ao que eu procuro ― cabelo preto, que podemos desgrenhar um pouco, barba… Deixe-a crescer mais!

Eu? ― surpreendeu-se Januário. ― Eu não sei se tenho coragem.

Não custa nada, é como estar numa praia de nudistas. E ainda ganham uns trocos para a discoteca. A tabela! Mas, como disse à Gisela, estejam à vontade para recusar. Não ficarei contrariado se optarem por não posar para mim. Eu sou pela transparência de processos e pela liberdade de decisão.

Com tal franqueza, os jovens não recearam experimentar uma atividade que, pela peculiaridade e pela aura cultural, os entusiasmava interiormente. Começaram nesse mesmo dia. O pintor colocou-os na posição pretendida: Eva, à direita, estendia o braço e oferecia uma maçã, já mordida, à boca de Adão, que esticava o rosto e lhe ferrava os dentes. O seio direito de Eva mostrava-se generosamente exposto envolvido pelos cabelos; o esquerdo deixava transparecer apenas a sombra rosada da aréola encimada pelo mamilo. Os sexos estavam patentes na sua candura virginal. A cena ressumava uma sensualidade imaculada.


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No sábado seguinte, o casal chegou cedo e autoconfiante. Tinha gostado da experiência, porque a incomodidade própria da exposição fora atenuada com duas paragens para chá e torradas, em que se trocaram ideias sobre questões de verdade e representação. Surpreenderam-se de encontrar na tela o rosto de Ávila, pintado como Deus, no limiar do jardim do Éden.

Por definição, Deus está presente, embora não seja visto ― explicou o pintor. ― Sabe o que vai acontecer, ou não conhecesse Ele a natureza humana, que espicaçou com a proibição de comer daquele fruto.

A pintura ia adiantada. Acreditava-se que podia ser acabada ainda nesse dia. No regresso do primeiro intervalo, porém, Ávila deu sinais de incomodidade. Soltava monossílabos em surdina e fazia alguns curtos gestos de impaciência.

Algum problema, professor? ― perguntou Gisela, a quem não escapara a perturbação do pintor.

Eu devia ter previsto isto. Não consigo obter o efeito que quero.

Quer que corrijamos alguma posição?

Não, estão muito bem. Esqueçam! Acho que esta pintura não se vai concluir. Eu já sabia!

Não diga isso, professor! Há alguma coisa que possamos fazer?

Poder, podem, mas eu não me atrevo, sequer, a falar nisso. Esqueçam! Vamos terminar.

Diga o que precisa, professor, seja o que for. Sem saber é que não podemos ajudá-lo.

Não, não! É impensável. O que eu precisava é que Eva tivesse um orgasmo comigo.

Gisela e Januário entreolharam-se silenciosos. O pintor continuou:

Pronto, já disse, mas não é um pedido, muito menos uma proposta. Aliás, estou envergonhadíssimo. Desculpem! Acabou. Vamos ficar por aqui.

Ao fim de uns momentos, Gisela quebrou o silêncio só matizado com os sons de Ávila a arrumar os acrílicos e a lavar os pincéis:

Importava-se de explicar, professor?

A questão é de autenticidade, do brilho no olhar, que só se consegue com uma condição física específica, a da excitação sexual orgástica ― começou o mestre, após alguns momentos. ― Eva soube que a maçã era boa, acabou de experimentar esse prazer. O seu rosto deve refletir esse entusiasmo, um empolgamento que convença o seu companheiro. Adão deve ver no olhar de Eva algo melhor do que o Paraíso. Isso deve transparecer no quadro. Eu preciso de apreender esse brilho, essa centelha de divino que se desprende da alma e brota no olhar, no momento do delírio orgástico. E não o posso apreender, na sua incomensurabilidade, se não estiver, eu próprio, a viver em comunhão essa emoção que nos liga ao supra-humano. A sua compreensão é da área do sensível e não do racional. Se não conseguir transmitir para a tela a transcendência do desejo no seu auge, a banalidade da obra está garantida. Não vou mostrá-la.

O mestre calou-se, preparando-se para arrumar a tela. Os jovens olhavam-no, como se esperassem alguma outra conclusão ou estivessem a processar o que tinham ouvido. Depois, Gisela aproximou-se do namorado e conferenciou com ele em surdina:

«O que é que achas? Parece-te sincero? O que havemos de fazer?»

«Não sei.»

«E se eu fosse para a cama com ele?»

«Não sei… Eras capaz?»

«Acho que sim. É apenas sexo… E tu, não te importas?»

«Hum! É chato! Mas o corpo é teu.»

«Não ficas zangado comigo?»

«Não... Vai lá.»

Comunicaram a decisão ao pintor, que recebeu a informação com calma e sisudez. Voltou a colocar a tela no cavalete e pôs os materiais à mão. Ficou um momento a avaliar a tela, depois disse a Januário:

Relaxe um pouco que nós não demoramos. Se quiser, pode voltar a ensaiar a posição e focar-se mentalmente no ato de trincar a maçã.

Foi o que Januário fez. Nu, sozinho no ateliê, aflorou, com os lábios, a superfície suave da maçã, depois os dentes avaliaram a firmeza do fruto, tentando interiorizar o seu simbolismo, como corpo de Eva, e entrar no espírito da cena bíblica, anunciador do conhecimento. A polpa foi cedendo à pressão penetrante, o seu palato foi percebendo o doce e o agre do suco que o fruto ressumava, pareceu-lhe que os seus olhos se reabriam. Revelou-se-lhe, então, na sua estonteante beleza, o engenhoso mecanismo da seleção natural, ao ouvir, não distantes, os gemidos de prazer que Gisela soltava.

Joaquim Bispo

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Este conto foi a base do roteiro da curta-metragem de animação (técnica de stop motion) executada pela realizadora Margarida Moreira.

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Imagem: Festivais em que a curta-metragem de animação participou e prémios obtidos.

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10/09/2021

Os ardis de Amaltescher

 

Amaltescher é uma colónia penal alucinante — sei que dificilmente me vão entender.

Na altura, eu pertencia à célula de Lisbuhan dos Albertianos — um movimento que tinha como referência os ensinamentos teóricos de Leon Battista Alberti e propugnava uma imaginária com a excelência representacional dos chamados pintores do século XV da era antiga. Éramos quase todos ex-estudantes de arquitetura que, por uma razão ou outra, nos tínhamos tornado representadores. «Com efeito, foi do pintor que o arquiteto tomou as arquitraves, os capitéis, as colunas e tudo o que faz o mérito dos edifícios» — argumentávamos a quem manifestasse estranheza pela opção que tomáramos. Usávamos quase sempre tecnologia eletrónica, mas, às vezes, preferíamos os métodos e os suportes analógicos, como adesão superlativa às práticas obsoletas dos criadores de imagens de há oitocentos anos, como Piero della Francesca ou Durer. A esta veneração interpúnhamos o filtro da naturalidade. Rejeitávamos as artificialidades, ainda que perspeticamente corretas, como os trompe l’oeil, mas abominávamos especialmente tudo o que indiciasse intenções de manipulação do espírito, como as deformações de El Greco, evidentes, ou as de Michelangelo, subtis.

Era esta recusa do artificialismo que nos levava a abdicar das representações holográficas, apesar da sua popularidade e da facilidade de criação que os equipamentos de última geração proporcionavam. Apenas a representação a duas dimensões perspeticamente inatacável, composicionalmente deleitosa e de matização venusta era o desafio que sempre procurávamos ultrapassar. E mensalmente fazíamos o nosso próprio certame expositivo — uma fila de ecrãs a todo o comprimento parietal de uma ala no centro discente, matizado com um ou outro suporte arcaico. Era a nossa vaidade e a nossa coragem. Percorríamos a exposição vezes sem conta em pequenos grupos a admirar e a criticar o que víamos.

Os aspetos que nos mereciam apreço eram invariavelmente brindados com uma citação do De pictura, de Alberti, que quase todos sabíamos de cor: «O maior trabalho do pintor não é fazer um colosso, mas uma história.»; «Não vejo caminho mais seguro do que observar a Natureza.»

Qualquer desatenção perspética, qualquer deformação ou incoerência detetada, era apontada de braço estendido e alvo de sarcasmos ruidosos, evocando aos gritos a norma hereticamente transgredida: «Esperamos que uma pintura pareça em relevo e que ela se assemelhe o mais possível aos corpos reais»; «Numa história, é preciso que todos os corpos se harmonizem pela estatura e pela função.» Quando o caso era grave, chegava-se frequentemente à execução sumária da obra e até a algumas vergastadas decididas pelo Coletivo Albertiano e aplicadas pelo Veteranus Albertianorum.

Só me alonguei nesta explicação para que percebam o contexto por detrás do que aconteceu e me deem razão no que fiz. Nessa noite tinha ido alimentar-me com dois colegas a um fornecedor alimentar, numa zona fora das nossas rotas habituais. A certa altura reparámos que havia umas quantas pinturas analógicas nas paredes, supostamente para as adornar. Levantei-me e fiz o giro de análise. O que vi não podia deixar-me mais irritado: eram umas pinturazinhas a tinta biótica, representando edifícios arcaicos das zonas reservadas, até com um apreciável tratamento lumino-cromático, mas… O ignorante que produzira aquilo nunca tinha ouvido falar em ponto de fuga — o rudimento dos rudimentos perspéticos. As linhas das cimalhas apontavam para uma zona do céu e as linhas dos lintéis das janelas e das portas apontavam para uma zona do piso a meio da rua. Chamei os meus colegas e, com a constatação daquela aberração representacional, começámos a lançar citações de Alberti: «Imaginar sempre uma linha transversal cortada por uma linha perpendicular, a fim de determinar na pintura uma posição fixa do ponto de vista.» A ira crescia dentro de nós. «Para um corpo retangular feito de ângulos retos, não se podem ver, com uma olhada, mais do que duas superfícies contíguas tocando o solo.» No auge da exaltação, peguei no forco da pasta proteica e desatei a esburacar aquelas indignidades. Logo um dos alimentários, um velho enrugado de cabelo pintado — que eu soube mais tarde que era o executante responsável — correu para mim, a tentar segurar-me os braços. Percebia-se que procurava defender aquela imundície. Não pensei ou talvez tenha pensado no que havia a fazer. Espetei-lhe o forco com força na lateral do pescoço. O que se seguiu nublou-se na minha memória, mas sei que senti uma grande serenidade, como quando se faz o que se espera de nós.

O processo judicial foi rápido e resultou num veredito cruel: ostracismo em Amalteia. O juiz devia ser um pós-picassiano: não teve em conta a atenuante de eu ter livrado a sociedade daquelas enormidades. Aliás, nem sequer proibiu o velho — que sobreviveu — de continuar a pintar. Tentou ainda dissolver a comunidade albertiana, mas isso não conseguiu. A ideia que a animava era mais intensa e íntima que a mera brandura conjuntural. Sei que o grupo continua a reunir-se, a espalhar os ensinamentos albertianos e a aprofundar a ligação entre os membros. Como tenho saudades do grupo e desses tempos! A vida em Amalteia era de uma crueldade sem nome, sobretudo para um homem com a minha preparação mental.

Amalteia ou Júpiter V é um dos satélites mais próximos de Júpiter. Minúsculo, é desde há uns quarenta anos usado como colónia de reeducação. Uma da dezena fora do planeta-mãe. O juiz não podia ter escolhido mais “acertadamente” o local de cumprimento da sanção. Claro que foi devido ao parecer do Conselho Normalizador que estudou o meu caso. Para me fazer sofrer. Tendo em conta o meu percurso de educação e de vida, as minhas escolhas, o meu pensamento, o que sou. Aquele mundo não fazia sentido. Depois de lá chegar, percebi muito bem por que há quem lhe chame Amaltescher, em referência ao alucinado criador de representações absurdas, irrealidades em imagem — Escher.

Com uma gravidade extremamente baixa, é um misto de anacronismos anatómicos, paradoxos geométricos e sobrepopulação. Tudo embebido num éter transparente, viscoso mas respirável, que deforma a perceção das formas. A fauna é variada, mas infinitamente metamorfoseável, quase fluida, resultado de evolução em condições de subgravidade. Como se percebe, é um mundo avesso a tudo em que acredito — rigidez, precisão, previsibilidade —, pelo que me era extremamente penoso viver ali. Era como se aquele mundo me estivesse continuamente a desmentir, a agredir, a humilhar. Nas primeiras semanas, eu e o grupo que chegou comigo, fomos obrigados a caminhar insensatamente numa espécie de sem-fins, para nos adaptarmos às condições singulares de gravidade e ilusão ótica. Durante horas incontáveis descíamos escadarias, sempre a descer, sempre a descer, mas não chegávamos a pisos inferiores — mantínhamo-nos no mesmo nível do edifício. Cruzavam-se connosco reeducandos de um grupo mais avançado, que subiam as mesmas escadas, interminavelmente. Mais tarde, passámos para um “nível” mais difícil: eram torres, edifícios, estruturas “impossíveis”, em que colunas da frontal do edifício sustentavam as traseiras do piso acima; em que cúpulas, a um tempo, eram abóbadas depois; em que escadas a ligar andares baixos e altos pareciam poder ser percorridas quer na sua parte de “gravidade normal”, como de “gravidade invertida” ou “lateralizada”, isto é, havia a ilusão de se poder caminhar tanto pelas paredes como pelos tetos.

Imaginem o que isso fazia à minha sanidade mental. Chamarem-lhe “reeducação” é de uma maldade obscena. Apetecia-me gritar: «Está bem, já percebi, estúpidos pós-naturalistas, já vi as vossas armadilhas surrealistas, mas não pensem que alteram a minha maneira de pensar. Na minha Terra é o rigor albertiano que explica a realidade. Isso é o que tenho de mais íntimo, de mais pessoal. Não se pode converter alguém que não queira. As inquisições descobriram-no pelo cansaço. Podem continuar com os paradoxos, que eu não abdicarei da minha certeza!»

Mais tarde, passei para o “convívio” com outros seres. Chamar-lhes seres é arrojado. Pareciam-me mais materializações ilusórias de formas de seres do meu planeta, como se aquele satélite captasse o meu pensamento, o interpretasse e o representasse. De maneira totalmente “herética”, para usar a minha tão cara terminologia albertiana. Um sofrimento intelectual permanente. Uma tortura. Uma impiedade. Cruzavam-se uns com os outros num trânsito compacto e inextricável. Continuamente alteravam as formas de modo a cruzarem-se sem se tocar. Os seres que passavam como um grupo de tartarugas, mais à frente já eram lagartos e depois abelhas, borboletas, aves, peixes. Em sentido contrário deslizavam cavalos, aves, peixes, formigas. Mas nas transições passavam por formas desconhecidas para mim, embora me fizessem lembrar formas da Terra. A única regra parecia ser a de evitar espaços vazios. Alguma diferenciação de cor era o fugaz alívio percetivo, ao permitir distinguir a demarcação entre seres.

Descobri a vulnerabilidade do sistema, por acaso. Todas aquelas formas eram bastante paradoxais e incongruentes, mas eram neutras, inócuas, quase decorativas. Discorrendo, pensei que o tormento de lhes estar exposto só era penoso intelectualmente. Bem pior seria se, além de aberrantes, aquelas formas fossem assustadoras, como as de Bosch. Automaticamente, visualizei um pormenor de uma pintura dele: um homem com uma cobra enrolada às pernas a ser engolido por um enorme sapo com botas bicudas. A este pensamento inquietado, uma forte flutuação do fluido imersor transmitiu-se às formas imediatamente. Os peixinhos a metamorfosearem-se em aves mudaram para peixes monstruosos, de bocarras assustadoras cheias de dentes, em vias de devorar pássaros de aspeto jurássico; cavalos não apenas deformados ganharam desfigurações doentias, tumores e pústulas, enquanto escaravelhos repugnantes lhes devoravam o pus. De repente, todo o espaço que me circundava era uma representação alucinante e amedrontadora das Tentações de Santo Antão.

Suspeitando do que acontecera, rapidamente me controlei. Fora muito evidente que a perturbação se devera à influência do meu pensamento. Outras experiências com evocações de obras de De Chirico e Dali convenceram-me disso. Mais tarde, percebi que a chave não era apenas a evocação, mas alguma perturbação de medo ou inquietação, no meu espírito. O que não acontecia com outras emoções. O que havia a fazer? Como poderia aproveitar aquela singularidade ambiental em meu proveito? Talvez… A ideia fulgurou no meu espírito: treinar-me para sentir apreensão, receio, medo, mas por imagens que me agradassem.

Pensam que é fácil? Havia que evocar imagens como A Virgem dos rochedos, sugestionar-me para sentir medo delas e, quando o fluido imersor gerasse o universo sereno e deleitoso da imagem, conseguir manter um sentimento de medo, enquanto tentava fruir aquela paz. A ambivalência de sentimentos necessária tornava a experiência extenuante, devido à concentração exigida. A princípio, o fingimento não resultou, mas depois tornei-me eficaz a interiorizar medo no meu espírito. Quando o consegui, pude sentir a harmonia, o apaziguamento, em ambientes de Piero della Francesca ou de Da Vinci. E, de vez em quando, permitia-me uma incursão em Botticelli. Mas era de mais. O medo construído começava a misturar-se com alguma aversão verdadeira. Então regressava a Ticiano, a Giorgione. Parecia que tinha conseguido escapar dos paradoxos e das aberrações. Parecia que conseguira burlar o sistema. Nada de mais errado.

Muito tempo depois, apercebi-me da armadilha. Cada vez era mais fácil recear as imagens de que gostava. O fingido ia passando a sentido. A certa altura, já sentia medo genuíno até da placidez de Bellini. E atrás da emoção incómoda de medo vinham sentimentos de desagrado, de asco, de rejeição. Sofria muito. Evocar uma imagem, mesmo a mais deleitosa, era equivalente a experimentar emoções de náusea e ódio. Paradoxo puro. Não tinha descanso. Não tinha para onde fugir. Nem daquele mundo, nem de mim. Estava desesperado.

Certo dia, recebi uma ordem de transferência. Não sei por que motivo, tinham resolvido comutar-me a reeducação em Amalteia para guarda no Museu do Renascimento em Lisbuhan. Conclusões e decisões do Conselho Normalizador... Não sei se tenho razões para me alegrar. Deambulando pelas galerias repletas de obras de arte, tenho um só truque; não para burlar o sistema, mas para sobreviver: limito-me a caminhar de olhos no chão, para não vislumbrar sequer as obras expostas. Não posso ver, não posso espreitar, não posso permitir que o meu olhar caia sobre alguma. Não posso sequer imaginá-las. Tento manter vazio o espírito, sempre ameaçado pelos terrores e os paradoxos imagéticos de Amaltescher. Assim sobrevivo.

Joaquim Bispo

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Imagem: M. C. Escher, O Encontro, 1944.

Coleção Elisha Whittelsey, Museu “Met”, Nova Iorque.

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10/08/2021

As mulheres da Ourela

 

As mulheres da Ourela são o amparo da casa. Robustas e determinadas, ganharam admiração e proteção das deusas primordiais. A sua aldeia fica encravada entre montes atulhados de pinheiros nas faldas da serra da Gardunha, onde só é possível cultivar estreitas leiras junto ao pontos mais profundos dos vales. Por isso, sempre tiveram de obter complemento económico fora da pequena agricultura de subsistência. Às vezes, em atividades inesperadas e até longe da sua terra. São vistas desde sempre a carregar pesos à cabeça. Em grupo, em rancho. Decididas, caminhando e equilibrando os carregos, balançando as ancas cheias. Como os deuses gostam de contemplar o seu caminhar! Talvez por isso as tenham colocado ali, na Ourela, para lhes fruírem os meneios, em vez da rigidez de antanho.

Na década de 40, era comum vê-las a carregar caldeiros cheios de pedras com volfrâmio. O dinheiro do minério já lhes permitia comprar alguma massa ou arroz na venda da aldeia. Todas se lembravam e queriam afastar os tempos penosos da Guerra Civil de Espanha, com racionamentos e contrabandos. Os homens manejavam as enxadas a esburacar terrenos, e as picaretas a desfazer calhaus, um pouco por todos os montes das redondezas, onde vissem ou suspeitassem encontrar o apetecido minério negro e brilhante.

Elas enchiam as vasilhas, punham-nas à cabeça e, pelo meio dos pinheiros, dos matos, das pedras, por fim por veredas, carregavam-nas até pontos combinados, onde as mulas podiam chegar. De etapa em etapa, o minério lá acabava por chegar aos Aliados. E aos Nazis. O comércio não tem ideologia. Umas atrás das outras, em filas espontâneas, tenteando o peso, abanando as ancas, iam e vinham lançando um ou outro canto com temática religiosa, mas reconforto pagão. Por vezes, Atena apiedava-se do esforço brutal das suas amadas ourelenses e, disfarçada como uma delas, ajudava-as, sem que elas percebessem. E afugentava algum condutor de mulas que, fiado no ermo dos pinhais, se preparasse para abusar de alguma delas.

Na década de 50, com a II Guerra acabada, já ninguém queria saber do volfrâmio. As mulheres da Ourela voltaram à agricultura, ou antes, ao trabalho sazonal nos grandes terrenos planos a sul da serra, por conta de proprietários ou rendeiros. Os homens iam para as grandes ceifas do Alentejo, elas ficavam-se por zonas não tão distantes. Aí por princípios da primavera, ora um ora outro agricultor aparecia na terra depois da missa de domingo e propunha o trabalho. O acordo não tinha nada que negociar: era um terço da produção para todas. Por isso lhes chamavam “terceiras”. Às vezes, já apalavradas de antemão, repetiam o lavrador de um ano para o outro.

Constituído o rancho, apresentavam-se ao trabalho depois das ceifas, por meados de julho e mantinham-se até final de setembro. Regavam milheirais, melanciais e aboborais, colhiam a produção na altura certa, ajudavam a transportá-la para as tulhas ou para a eira, descamisavam as maçarocas, malhavam-nas, limpavam o grão. O trabalho mais demorado era o da apanha do feijão frade, em setembro, feijoeiro a feijoeiro. Calcorreavam extensões enormes, dobradas, apanhando as vagens maduras para as cestas, que eram despejadas em panais, que eram atados em trouxas quando as pilhas transbordavam, que eram carregadas para o carro de vacas, que as levava para a eira.

Vendo-as em tão grandes penares de labuta campestre, Deméter, disfarçada como uma delas, imiscuía-se frequentemente no rancho, colhendo as vagens agilmente, aliviando a dureza da lida.

A mais nova estava encarregue de, ao longo do dia de calor inclemente, ir buscar água a alguma fonte ou mina, numa bilha à cabeça, e dessedentá-las. Também era a aguadeira que ia adiantando os cozinhados de todas, em panelinhas de ferro individuais. Muita solidariedade coletiva, muita comunhão de quase tudo, mas mantinham áreas de reserva individual: a comida, os homens e a religiosidade pessoal. Uma fogueira, uma dúzia de panelinhas em redor, cozendo batatas ou feijão. Com um naco de toucinho cozido ou um pedaço de morcela, estava a ceia feita.

Se houvesse lua e trabalho na eira, era possível que Zeus, Dioniso ou outro deus igualmente lúbrico incentivasse os cantares e as danças, disfarçado de ganhão ou pastor. Sileno nunca perdia uma desfolhada. E um beijo por outro não desonra ninguém.

Iam à terra no sábado à tardinha e voltavam segunda ao alvorecer. Uma cesta à cabeça, umas atrás das outras. Cantando, galhofando, calando. Como os deuses gostam de ver o balanço das suas ancas!

Na década de 60, os namorados foram combater para África, os maridos foram trabalhar para França. Algumas foram com eles. A salto. Malas à cabeça. As que ficaram na Ourela amanharam-se como puderam. Rezavam, teciam, cuidavam dos filhos, tratavam de uma horta, iam à lenha. Traziam os molhos à cabeça. Os faunos dos pinhais gostavam de as ver calcorrear veredas. Meneando as ancas.

Mesmo com poucos homens na terra, não deixaram morrer a romaria da Senhora do Alto. No quarto domingo de maio, partiam ao princípio da manhã, com o tabuleiro da merenda à cabeça, cantando glórias à Virgem. Oscilando as ancas, aos poucos iam vencendo os vários quilómetros que separavam a aldeia da capela, sempre a subir. Depois da missa, derramavam-se pelas sombras, saboreando a merenda, rodeadas da filharada e de uma ou outra deusa disfarçada de romeira e saudosa de convívio humano. Pagas as promessas, feita a procissão, regressavam à Ourela, cantando modas menos religiosas que à ida.

Na década de 70, acreditaram na mudança prometida. Ouviram os militares, os políticos, fizeram reivindicações, conseguiram um lavadouro público coberto. Com a vulgarização do gás e a chegada da eletricidade, deixaram de ir à lenha. Os incêndios sucederam-se nos pinhais atulhados de mato. As fontes tornavam-se frequentemente chafurdos de cinzas.

As mulheres da Ourela punham os cântaros à cabeça e percorriam distâncias, até alguma mina que não fora atingida. Por veredas serpenteantes, uma após outra, traziam para casa o líquido mais precioso. Como os deuses apreciam o seu caminhar!

Algumas convenceram os maridos a regressar, fizeram reuniões, dançaram. Dioniso não deixava de aparecer, sempre que havia folia. Finalmente, chegou a água canalizada e uma estrada de alcatrão. Algumas famílias compraram carro. Ou motoreta.

Aos poucos, as mulheres da Ourela deixaram de calcorrear lonjuras com pesos à cabeça. Os deuses ficaram melancólicos. Alguma graça no mundo se perdera. Chegaram a pensar devolvê-las aonde tinham ido buscá-las. Lá onde, rígidas e pétreas, eram o sustentáculo de arquitraves e platibandas clássicas. E a quem os mortais chamam cariátides. Além disso, estavam a ficar cheiinhas e roliças.

Felizmente, Hera, também com um pouco de peso a mais, lançou a moda de andar a pé, para emagrecer, e precisou de companhia. As veredas da Ourela voltaram a encher-se de mulheres que caminham. Embora sem pesos à cabeça. Mas ainda com o tão admirável meneio de ancas. E os deuses voltaram a ostentar um sorriso deleitado no rosto divino.


Joaquim Bispo

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Com o título “As mulheres da Paradanta”, este conto integra a coletânea resultante do X Concurso Literário da Cidade de Presidente Prudente, Brasil, de 2016.

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Em 2021, também com o título “As mulheres da Paradanta”, foi um dos selecionados para a 28ª edição (julho/agosto de 2021) da Revista LiteraLivre, em formato e-book (páginas 103 a 105).

http://revistaliteralivre.blogspot.com/2021/07/revista-literalivre-28-edicao.html

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Uma versão reduzida deste conto foi publicada na edição número 1703, de 18/08/2021, do jornal Gazeta do Interior.

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Imagem: Cariátides [figuras femininas esculpidas, servindo como suportes de arquitetura — colunas ou pilares] do templo Erectéion, Acrópole de Atenas, obra de 421–406 a.C. atribuída ao arquiteto Mnésicles.

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